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23 novembro 2009

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA OU BAGATELA





Fernando Capez

Procurador de Justiça Licenciado; Deputado Estadual/SP; Doutor pela PUC-SP; Professor da Escola Superior do MP e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas.

RESUMO: Segundo o princípio da insignificância, não cabe ao Direito Penal preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o bem jurídico. Tem encontrado, tal princípio, ampla acolhida na jurisprudência pátria, tanto que o Supremo Tribunal Federal assentou "algumas circunstâncias que devem orientar a aferição do relevo material da tipicidade penal". Percebe-se que ele constitui um relevantíssimo instrumento para que se avalie se determinada ação prevista como crime revestiu-se, no caso concreto, de conteúdo ontológico que a possa caracterizar como tal. Conclui-se que a norma penal não é somente a que formalmente descreve um fato; ao contrário, o tipo incriminador deverá obrigatoriamente selecionar apenas o comportamento humano que possua lesividade social.

PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Insignificância. Tipo Penal. Furto. Bem Jurídico. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

TITLE: Insignificance principle or bagatelle.

ABSTRACT: According to the principle of insignificance, it is not responsibility of Criminal Law to worry about bagatelles, the same way that inculpatory types that describe conducts that are completely inoffensive or incapable to damnify juridical good cannot be admitted. Such principle has been finding wide reception in our legal system, so that STF established "some circumstances that should guide the evaluation of material relevance of criminal typicality". We can see that the principle of insignificance is a relevant instrument to evaluate if a determined action that is described as crime is wrapped in ontological content, in the concrete case, that may characterize the action as crime. We conclude saying that criminal rule is not only the one that formally describes a fact; on the contrary, inculpatory type must, compulsorily, select only the human behavior that has potential to injure society.

KEYWORDS: Insignificance Principle. Criminal Type. Theft. Juridical Good. Principle of the Dignity of the Human Being.


Originário do Direito Romano, e de cunho civilista, o princípio da insignificância ou bagatela funda-se no conhecido brocardo de minimis non curat praetor. Em 1964, acabou sendo introduzido no sistema penal por Claus Roxin, tendo em vista sua utilidade na realização dos objetivos sociais traçados pela moderna política criminal.

Segundo tal preceito, não cabe ao Direito Penal preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o bem jurídico.

Nesse contexto, se a finalidade do tipo penal é assegurar a proteção de um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de ofender o interesse tutelado, não haverá adequação típica.

Cumpre que não se confunda delito insignificante ou de bagatela com crimes de menor potencial ofensivo. Estes últimos são definidos pelo art. 61 da Lei nº 9.099/95 e submetem-se aos Juizados Especiais Criminais, sendo que neles a ofensa não pode ser acoimada de insignificante, pois possui gravidade ao menos perceptível socialmente, o que repele a incidência do princípio em comento.

Note-se que o sobredito princípio não é aplicado no plano abstrato. Não é possível, por exemplo, afirmar que todas as contravenções penais são insignificantes, pois, dependendo do caso concreto, isto não se pode revelar verdadeiro. Dessa forma, andar pelas ruas armado com uma faca é um fato contravencional que não se reputa insignificante. São de menor potencial ofensivo, subordinam-se ao procedimento sumaríssimo, beneficiam-se de institutos despenalizadores (transação penal, suspensão condicional do processo etc.), mas não são, a priori, insignificantes.

Desse modo, referido preceito deverá ser verificado em cada caso concreto, de acordo com as suas especificidades. O furto, abstratamente, não é uma bagatela, mas a subtração de um chiclete pode ser. Em outras palavras, nem toda conduta subsumível ao art. 155 do Código Penal é alcançada por este princípio.

Vale mencionar que o Supremo Tribunal Federal assentou "algumas circunstâncias que devem orientar a aferição do relevo material da tipicidade penal", tais como: "(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada" (STF, 1ª T., HC 94439/RS, Rel. Min. Menezes Direito, j. 03.03.09). Assim, já se considerou que não se deve levar em conta apenas e tão-somente o valor subtraído (ou pretendido à subtração) como parâmetro para aplicação do princípio da insignificância. "Do contrário, por óbvio, deixaria de haver a modalidade tentada de vários crimes, como no próprio exemplo do furto simples, bem como desapareceria do ordenamento jurídico a figura do furto privilegiado (CP, art. 155, § 2º). (...) O critério da tipicidade material deverá levar em consideração a importância do bem jurídico possivelmente atingido no caso concreto. No caso em tela, a lesão se revelou significante não obstante o bem subtraído ser inferior ao valor do salário mínimo". Vale ressaltar que há informação nos autos de que o valor "subtraído representava todo o valor encontrado no caixa, sendo fruto do trabalho do lesado que, passada a meia-noite, ainda mantinha o trailer aberto para garantir uma sobrevivência honesta" (STF, 2ª T., RHC 96813/RJ, Relª Minª Ellen Gracie, j. 31.03.09).

Cumpre asseverar que o reconhecimento da insignificância da conduta praticada pelo réu não conduz à extinção da punibilidade do ato, mas à atipicidade do crime e à consequente absolvição do acusado (STF, 2ª T., HC 98.152-6/MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. 19.05.09).

O aludido princípio, portanto, tem encontrado ampla acolhida na jurisprudência pátria. Vejamos alguns exemplos:

a) no crime de descaminho: considerou-se que falta justa causa para a ação penal por crime de descaminho quando a quantia sonegada não ultrapassar o valor previsto no art. 20 da Lei nº 10.522/02, o qual determina o arquivamento das execuções fiscais, sem baixa na distribuição, se os débitos inscritos como dívida ativa da União forem iguais ou inferiores a R$ 10.000,00 (valor modificado pela Lei nº 11.033/04) (STF, 2ª T., HC 96374/PR, Relª Minª Ellen Gracie, j. 31.03.09);

b) nos crimes ambientais: há julgado da Suprema Corte no sentido de que, em matéria ambiental, surgindo a insignificância do ato em razão do bem protegido, impõe-se a absolvição do acusado (STF, Tribunal Pleno, AP 439/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 12.06.08). De forma contrária, já se decidiu que "a preservação ambiental deve ser feita de forma preventiva e repressiva, em benefício de próximas gerações, sendo intolerável a prática reiterada de pequenas ações contra o meio ambiente, que, se consentida, pode resultar na sua inteira destruição e em danos irreversíveis" (TRF, 1ª R., ACR 2003.34.00.019634-0/DF, 3ª T., Rel. Des. Olindo Menezes, j. 14.02.06);

c) no crime de furto: "tratando-se de furto de dois botijões de gás vazios, avaliados em R$ 40,00 (quarenta reais), não revela o comportamento do agente lesividade suficiente para justificar a condenação, aplicável, destarte, o princípio da insignificância" (STF, AgRg no REsp 1043525/SP, Rel. Min. Paulo Gallotti, j. 16.04.09, DJe 04.05.09). Da mesma maneira, a conduta perpetrada pelo agente – tentativa de furto qualificado de dois frascos de xampu, no valor total de R$ 6,64 (seis reais e sessenta e quatro centavos) –, insere-se na concepção doutrinária e jurisprudencial de crime de bagatela (STJ, 5ª T., HC 123981/SP, Relª Minª Laurita Vaz, j. 17.03.09, DJe 13.04.09). E, ainda: "A subtração de gêneros alimentícios avaliados em R$ 84,46, embora se amolde à definição jurídica do crime de furto, não ultrapassa o exame da tipicidade material, uma vez que a ofensividade da conduta se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade do comportamento foi de grau reduzidíssimo e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva, porquanto os bens foram restituídos" (STJ, 5ª T., HC 110932/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 10.03.09, DJe 06.04.09);

d) nos crimes praticados contra a Administração Pública: há uma celeuma em torno da questão, pois se argumenta que a norma busca tutelar não somente o aspecto patrimonial, mas também moral da Administração. Nesse contexto, já se manifestou o Supremo Tribunal Federal no sentido de que, em tais casos, "descabe agasalhar o princípio da insignificância – consoante o qual hão de ser levados em conta a qualificação do agente e os valores envolvidos – quando se trata de prefeito e de coisa pública" (STF, 1ª T., HC 88941/AL, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 19.08.08). Em sentido oposto: TRF, 1ª R., Inquérito 9301242141, Corte Especial, Rel. Mário Cesar Ribeiro, julgado em 26.09.96.

Percebe-se, por derradeiro, que o princípio da insignificância constitui um relevantíssimo instrumento que possibilita ao operador do direito avaliar se determinada ação prevista como crime revestiu-se, no caso concreto, de conteúdo ontológico que a possa caracterizar como tal.

Tipos penais que se limitem a descrever formalmente infrações penais, independentemente de sua efetiva potencialidade lesiva, atentam contra a dignidade da pessoa humana.

É possível, assim, concluir que a norma penal em um Estado Democrático de Direito não é somente a que formalmente descreve um fato como infração penal, pouco importando se ele ofende ou não o sentimento social de justiça; ao contário, sob pena de colidir com a Constituição Federal, o tipo incriminador deverá obrigatoriamente selecionar, dentre todos os comportamentos humanos, apenas aqueles que realmente possuam lesividade social. Qualquer construção típica, cujo conteúdo contrariar e afrontar a dignidade humana, será materialmente inconstitucional, posto que atentatória ao próprio fundamento da existência de nosso Estado.

Extraído de Newsletter Magister 1013, 17/11/2009

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