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30 novembro 2010

O SENHOR DIABO




Eça de Queiroz

Como está provado que sou redondamente inapto para escrever Revistas, dizer finamente das Modas, e falar da literatura contemporânea herdeira honesta do defunto sr. Prudhomme, é justo, ao menos, que de vez em quando conte uma história amorosa, uma daquelas historias femininas e macias, que nos seroes de Trieste faziam adormecer nas suas cadeiras douradas as senhoras arquiduquesas de Áustria.
Conhecem o Diabo?
Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!
O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensangüentam o corpo. E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade jr.
É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.
É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César.
O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez nostalgia do Céu!
Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lúcifer, o que leva a luz, revolta-se contra Jeová e comanda uma grande batalha entre as nuvens.
Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Jó, tortura Sara e em Babilônia é jogador, palhaço, difamador, libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas úmidas da Gália e embarca expedições olímpicas nos navios do imperador Constâncio. Cheio de medo diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente.
Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria, oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny, espicaçava os olhos de S. Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela de Savonarola.
Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da Alemanha jogar, com os frades mendicantes, sentados na relva, sobre a sela do seu cavalo.
Intentava processos contra a Virgem; e era o pontífice da missa negra, depois de ter inspirado os juízes de Sócrates. Nos seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha, deu-se ao pecado da gula.
E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas.
O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários desertos, escreve suas memórias e num dia enevoado, depois de ter dito adeus aos seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então Ceranger escreve-lhe o epitáfio.
O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas. Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aventuras da noite, S. Tomás revelou seu destino. Torquemada disse a sua maldade, e Pedro de Lancre a sua inconstância jovial. João Dique escreveu sobre sua eloquência e Jacques I de Inglaterra fez a corografia de seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua tragédia. Os monges ergueram-lhe estátuas. O seu sepulcro é a Natureza.
O Diabo amou muito.
Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras. Foi querido, na Antigüidade, da mãe de César e na Meia Idade foi amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de um mercador. Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou duas gerações. Era o namorado das frescas serenatas das mulheres dos mercadores de Veneza.
Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha.
Feminae in illius amore delectantur, diz tragicamente o abade César de Helenbach. No século 12, tentava com olhares cheios de sol as mães melodramáticas dos Burgraves. Na Escócia havia grande miséria sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings o amor das mulheres dos highlanders e pagava com o dinheiro falso que fabricava em companhia de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe, o Belo, do rei João, de Luís XI, de Henrique II, com o mesmo cobre de que se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros falsos.
Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do Diabo, nas terras do Norte.
Ó mulheres! Vós todas que tendes dentro do peito o mal que nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos, nem as rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir essa história florida!
Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto.
AA casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz do senhor arcebispo de Ulm.
Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras, de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de marfim. As plantas limpavam piedosamente com as suas mãos de folhas, o sangue das chagas, as pombas, com o calor do
seu colo, aqueciam os pés doloridos. No fundo da casa, o pai dela, o velho, bebia a cerveja de Heidelberg, os vinhos da Itália, e as cidras da Dinamarca. Era vaidoso, gordo, sonolento e mau.
E sempre a rapariga fiava. Preso à roca por um fio branco, sempre o fuso saltava; preso ao seu coração por uma tristeza, sempre pulava um desejo.
E todo o dia fiava.
Ora debaixo da varanda passava um lindo moço, delicado, melodioso e tímido. Vinha e encostava-se ao pilar fronteiro.
Ela, sentada junto ao crucifixo, cobria os pés de Jesus com os seus grandes cabelos louros.
As plantas, as folhagens, em cima, cobriam de frescura e de sombra a cabeça da imagem. Parecia que toda a alma de Cristo estava ali — consolando, em cima, sob a forma de planta, amando, em baixo, sob a forma de mulher.
Ele, o branco moço, era o peregrino daquela santa. E o seu olhar procurava sempre o coração da doce rapariga e o olhar dela, séria e branca, ia procurar a alma do caro bem-amado.
Os olhos investigavam as almas. E vinham radiosos, como mensageiros de luz, contar o que tinham visto: era um encanto!
— Se tu soubesses! — dizia um olhar. — A alma dela é imaculada.
— Se tu visses! — dizia o outro. — O coração dele é sereno, forte e vermelho.
— É consolador, aquele peito onde há estrelas!
— É purificador, aquele seio onde há bênçãos!
E olhavam ambos, silenciosos, extáticos, perfeitos. E a cidade vivia, as arvores rosnavam sob o balcão dos eleitores, a trompa de caça soava nas torres, os cantos dos peregrinos nas estradas, os santos liam nos seus nichos, os diabos escarneciam na grimpa das igrejas, as amendoeiras tinham flor e o Reno cantigas de ceifeiras.
E eles olhavam-se, as folhagens aninhavam os sonhos, e Cristo aninhava as almas.
Ora, uma tarde, as ogivas estavam radiosas como mitras de arcebispos, o ar estava meigo, o sol descido, os santos de pedra estavam corados, ou dos reflexos da luz, ou dos desejos da vida. Maria na varanda fiava a sua estriga. Jusel, encostado ao pilar, fiava os seus desejos.
Então, no silêncio, ao longe, ouviram gemer a guitarra de Inspruck que os pastores de Helyberg enroscam de hera, e uma voz robusta cantar:
Os teus olhos, bem-amada, São duas noites cerradas. Mas os lábios são de luz Lá se cantam alvoradas. Os teus seios, minha graça,
São duas portas de cera, Fora a minha boca um sol Como ele as derretera! Os teus lábios, flor de carne, São portas do Paraíso: E o banquinho de S. Pedro É no teu dente do siso. Queria ter uma camisa De um tecido bem fiado Feita de todos os ais Que o teu peito já tem dado. Quando nos formos casar Canta missa o rouxinol E o teu vestido de noiva Será tecido de sol! A bênção nos deitará Algum antigo carvalho! E por enfeites de boda Teremos gotas de orvalhos!
E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez de mármore. Tinha os olhos negros como dois sóis legendários do país do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes. Tinha presa ao peito do corpete uma flor vermelha de cacto.
Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas que fizeram da Grécia a lenda da beleza. Andava convulsivamente como se ferisse os pés no lajedo. Tinha os olhos inertes e fixos dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos saía um cheiro de ambrosia. A testa era triste e serena como as dos que têm a saudade imortal de uma pátria perdida. Trazia na mão uma ânfora esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade dos néctares olímpicos.
O homem da palidez de mármore veio até junto a varanda e, entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente:
— A gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes beiços de homem vão, como dois peregrinos corados de sol, em doce romaria de amor, das suas mãos ao seu colo?
E olhando para Jusel, que desfolhava uma margarida, cantou lentamente, com grandes risadas frias e metálicas:
Quem depena um rouxinol
E rasga uma triste flor,
Mostra que dentro do peito
Só tem farrapos de amor.
E ergueu para a varanda os seus olhos terríveis e desoladores, como blasfêmias de luz. Maria tinha levantado a sua roca e só havia na varanda as aves, as flores e Jesus.
— A toutinegra voou — disse jovialmente.
E indo para Jusel:
— É que talvez sentisse a vizinhança do abutre. Que diz o Bacharel?
Jusel, com os olhos serenos, desfolhava a margarida.
— No meu tempo, senhor Suspiro — disse o homem dos olhos negros, cruzando lentamente os braços — já havia aqui duas espadas, a fazer rebentar na sombra flores de faíscas. Mas os heróis vão-se, e os homens nascem cada vez mais da dor das mulheres. Vejam isso! É um coração com gibão e gorra. Mas coração branco, pardo, alvacento, de todas as cores, menos vermelho e sólido. Pois bem! Aquela rapariga tem uns cabelos louros que dizem bem com os meus cabelos pretos. As cintas delgadas querem braços fortes. Os lábios vermelhos de desejam gostam as armas vermelhas de sangue. É minha a dama, senhor Bacharel!
Justel tinha descido as suas grandes pálpebras elegíacas e via as pétalas arrancadas da margarida caírem como desejos assassinados, desprendidos do seu peito.
O homem dos olhos resplandecentes tomou-lhe rigidamente a mão.
— Bacharel Ternura — disse — há aqui perto um lugar onde os goivos nascem expressamente para os inocentes que morrem. Se tens alguns bens a deixar, recomendo-te este excelente Rabil. — Era o pajem. — É necessário proteger as aves da noite. Os abutres bocejam desde que findou a guerra. Vou-lhes dar ossos tenros. Se queres deixar o coração à bem-amada, à moda dos trovadores, eu me encarrego de lho trazer, bem embalsamado, em lama, na ponta da espada. Tu és formoso, amado, branco, delicado, perfeito. Vê-me isto, Rabil. É uma farsa bem feita ao Compadre lá de cima dos sóis, dilacerar-lhe esta beleza! Se namoravas alguma estrela, eu lhe mandarei por bom portador os teus últimos adeuses. Enquanto aos sacramentos, são inúteis; eu me encarrego de te purificar pelo fogo. Rabil, toca na guitarra o rondoó de defuntos: anuncia no Inferno, o Bacharel Suspiro! A caminho, meus filhos! Ah! Mas em duelo secreto, armas honradas!
E batendo heroicamente nos copos da espada:
— Eu tenho aqui esta debilidade, onde está a tua força?
— Ali! — respondeu Jusel, mostrando Cristo na varanda, entre a folhagem, agonizante entre as palpitações das asas.
— Ah! — disse cavamente o homem da flor de cacto. A mim, Rabil! Lembras-te de Actéon, de Apolo, de Derceto, de Íaco e de Marte?
— Eram os meus irmãos — disse lentamente o pajem, hirto como uma figura de pedra.
— Pois bem, Rabil, para a frente, através da noite. Cheira-me aqui às terras de Jerusalém.
Na noite seguinte havia pela Alemanha um grande luar purificador. Maria estava debruçada na varanda. Era a hora celeste em que os jasmins concebem. Em baixo, o olhar de Jusel, que estava encostado aopilar, suspirava para aquele corpo feminino e branco, como nos jardins a água que sobe em repuxo suspira para o azul.
Maria disse suspiradamente:
— Vem.
Jusel subiu à varanda, radioso. Sentaram-se ao pé da imagem. O ar estava tão sereno como na pátria das armas. Os dois corpos dobraram-se, um para o outro, como se estivessem aproximando os braços de um Deus.
As folhagens escuras que envolviam Cristo estendiam-se sobre as duas cabeças louras com gestos de bênção. Havia na moleza das sombras um mistério nupcial. Jusel tinha as mãos dela presas como pássaros cativos e dizia:
— Queria bem ver-te, assim, ao pé de mim. Se soubesses! Tenho receios infinitos. És tão loura, tão branca! Tive um sonho que me assustou. Era num campo. Tu estavas de pé, imóvel. Ouviu-se um coro que cantava dentro do teu coração! Em redor andava uma dança nebulosa de espíritos. E diziam uns: “Aquele coro é dos mortos: são os amantes infelizes que choram no coração daquela mulheres.” Outros diziam: “Sim, aquele coro é de mortos: são os nossos deuses queridos que choram ali no exílio.” E então adiantei-me e disse: “Sim, aquele coro é dos mortos, são os desejos que ela teve por mim, que se lembram e que gemem.” Que sonho tão mau, tão mau!
— Por que estás tu — dizia ela — todos os dias encostado ao pilar, com as mãos quase postas?
— Estou a ler as cartas de luz que os teus olhos me escrevem.
Calaram-se. Eles eram naquele momento alma florida da noite.
— Quais são os meus olhos? Quais são os teus olhos? Dizia Jusel. — Nem eu sei!
E ficaram calados. Ela sentia os desejos que se desprendiam dos olhos dele, virem, como pássaros feridos, que gemem, cair no fundo da sua alma, sonoramente.
E inclinando o corpo:
— Conheces meu pai? — disse ela.
— Não. Que importa?
— Ai, se tu soubesses!
— Que importa? Estou aqui. Se ele te quer bem, há de gostar deste meu amor, sempre aos teus pés, como um cão. És uma santa. Os cabelos de Jesus nascem do teu coração. O que quero eu? Ter a tua alma presa, bem presa, como um pássaro esquivo. Esta paixão toda, deixa-te tão imaculada, que se morresses podias ser enterrada na transparência do azul. Os desejos são uma hera: queres que os arranque? Tu és o pretexto da minha alma. Se me não
quisesses deixava-me andar esfarrapado. Tens lá a fé de Jesus e a saudade de tua mãe: deixa estar: damo-nos todos bem, lá dentro, contemplando o interior do teu olhar, como um céu estrelado. Que quero de ti? As tuas penas. Quando chorares, vem a mim. Farei a alma em farrapos para tu limpares os olhos. Queres tu? Casemo-nos no coração de Jesus. Dá-me essa agulheta, que tu prende o cabelo. Será a nossa estola.
E com a ponta da agulheta, gravou sobre o peito de Cristo as letras dos dois nomes enlaçadas — J. e M.
— É o nosso noivado — disse ele. O céu atira-nos os astros, confeitos de luz. Cristo não se esquecerá deste amor que chora aos seus pés. As exalações divinas que saírem do seu peito aparecerão, lá em cima, com a forma das nossas letras. Deus saberá este segredo. Que importa? Eu já lho tinha dito, a ele, às estrelas, às plantas, aos pássaros, porque, vês tu? As flores, as constelações, a graça, as pombas, tudo isso, toda esta efusão de bondade, de inocência, de graça, era simplesmente, ó adorada, um eterno bilhete de amor que eu te escrevia.
E ajoelhados, extáticos, calados, sentiam misturar-se ao seu coração, às suas confidências, aos seus desejos, toda a vaga e imensa bondade da religião da graça.
E as suas almas falavam cheias de mistério.
— Vês tu? — dizia a alma dela — Quando te vejo, parece que Deus diminui, e se contrai, e se vem aninhar todo no teu coração; quando penso em ti, parece-me que o teu coração se alarga, se estende, abrange o céu, e os universos, e encerra por toda a parte Deus!
— O meu coração — suspirava a alma dele — é uma concha. O teu amor é o mar. Muito tempo esta concha viverá afogada e perdida neste mar. Mas se tu expulsares de ti, como numa concha abandonada se ouve ainda o rumor do mar, no meu coração abandonado se escutará sempre o sussurro do meu amor!
— Olha — dizia a alma dela — eu sou com um campo. Tenho árvores e relvas. O que há em mim de maternidade é árvore para te cobrir, o que há em mim de paixão é relva para tu pisares!
— Sabes tu? — dizia a alma dele — No céu há uma floresta invisível de que apenas se vêem as pontas das raízes que são as estrelas. Tu eras a toutinegra daqueles arvoredos. Os meus desejos feriram-te. Eu, há muito que te vejo vir caindo pelo ar, gemendo, resplandecente, se o sol te alumia, triste, se a chuva te molha. Há muito que te vejo descendo — quando cairás tu nos meus braços?
E a alma dela dizia: “Cala-te”. Não falavam.
E as duas almas, desprendidas dos corpos bem-amados, subiam, tinham o céu por elemento, os seus risos eram os astros, a sua tristeza a noite, a sua esperança a madrugada, o seu amor a vida, e sempre mais ternas e mais vastas envolviam tudo o que do mundo sobre de justo, perfeito, casto, as orações, os prantos, os ideais, e estendiam-se por todo o céu, unidas e imensas — para Deus passar por cima!
E então à porta da varanda houve uma risada metálica, imensa e sonora. Eles ergueram-se resplandecentes, puros, vestidos de graça. À porta estava o pai de Maria, hirto, gordo, sinistro. Atrás, o homem de palidez de mármore balançava vaidosamente a pluma escarlate da gorra. O pajem ria, fazendo uma claridade na sombra.
O pai lentamente foi para Jusel e disse, com escárnio:
— Onde queres ser enforcado, vilão?
— Pai, pai! — E Maria, aflita, com uma convulsão de lágrimas, enlaçava o corpo do velho. — Não. É meu marido, casamos as almas. Olhe, ali está. Veja! Ali, na imagem!
— O quê?
— Ali, no peito, veja. Os nossos nomes enlaçados. É meu marido. Só me quer bem. Mas seja, sobre o peito de Jesus, no lugar do coração. Mesmo sobre o coração. E ele, o doce Jesus, deixou que lhe fizessem mais esta ferida!
O velho olhava as letras como uns esponsais divinos que se tinham refugiado no seio de Cristo.
— Raspa, meu velho, que isso é marfim! — gritou o homem dos olhos negros.
O velho foi para a imagem com a faca no cinturão. Tremia. Ia arrancar as raízes daquele amor, até ao peito imaculado de Jesus!
E então a imagem, sob o justo e incorruptível olhar da luz, despregou uma das suas mãos feridas, e cobriu sobre o peito as letras desposadas.
— É ele, Rabil! — gritou o homem da flor de cacto.
O velho soluçava.
E entoa o homem pálido, que tocava guitarra, veio tristemente junto da imagem, enlaçou os braços dos namorados, como se vê nas velhas estampas alemãs, e disse ao pai:
— Abençoa-os, velho!
E saiu batendo rijamente nos copos da espada.
— Mas quem é? — disse o velho apavorado.
— Mais baixo! — disse o pajem da ânfora de Mileto — É o senhor Diabo... Mil desejos, meus noivos.
Pelas horas da madrugada, na estrada, o homem dos cabelos negros dizia ao pajem:
— Estou velho. Vai-se-me a vida. Sou o último dos que combateram nas estrelas. Os abutres já me apupam. É estranho: sinto nascer cá dentro, no peito, um rumor de perdão. Gostava daquela rapariga. Lindos cabelos louros, quem vos dera no tempo do céu. Já não estou para aventuras de amor. A bela Impéria diz que me vendi a Deus.
— A bela Impéria! — disse o pajem. — As mulheres! Vaidades, vaidades.! As mulheres belas foram-se com os deuses belos. Hoje os homens são místicos, frades, santos, namorados,
trovadores. As mulheres são feias, avaras, magras, burguesas, finadas de cilícios, com uma pouca de alma incomoda, e uma carne tão diáfana que se vê através do lodo primitivo.
— Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem de medo e de dor. A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear o sangue pelo mundo. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo. Se eu no fim da vinha tinha de me entreter perdoando e consolando — para noa morrer de tédio. Fica-te em paz, mundo! Sê infame, lamacento, podre, vil e imundo, e sê, todavia, um astro no céu, impostor! E todavia o homem não mudou. É o mesmo. Não viste? Aquele, para amar, feriu com uma agulheta o peito da imagem. Como nos tempos antigos, o homem não começa a gozar um bem, sem primeiro rasgar a carne a um Deus! É esta minha última aventura. Vou para o meio da Natureza, para junto do livre mar, pôr-me sossegadamente a morrer.
— Também os diabos se vão. Adeus, Satã!
— Adeus, Ganímedes!
E o homem e o pajem separaram-se na noite.
A poucos passos, o homem encontrou um cruzeiro de pedra.
— Estás também deserto — disse, olhando para a cruz. Os infames pregaram-te e voltaram-te as costas! Foste maior que eu. Sofreste calado.
E sentando-se nos degraus do cruzeiro, enquanto vinha a madrugada, afinou a guitarra e cantou no silêncio:
Quem vos desfolhou estrelas,
Dos arvoredos da luz?
E com uma risada melancólica:
Chegará o Outono ao Diabo?
Virá o Inverno a Jesus?

Extraído do site Domínio Público.

DUAS CRIANÇAS CANADENSES RETORNAM AO PAÍS DE ORIGEM EM CUMPRIMENTO À CONVENÇÃO DE HAIA

Depois do rumoroso caso do menino norte-americano Sean, o Brasil finalmente internalizou o cumprimento da Convenção de Haia através da Advocacia Geral da União, que estruturou um órgão próprio para atuar nesses casos de brasileiros que ingressam no país trazendo ilegalmente filhos gerados no exterior.
Abaixo mais um caso que foi resolvido com rapidez se considerarmos que foi analisado por três instâncias judiciárias: um juiz monocrático e dois tribunais.
A Advocacia-Geral da União (AGU) garantiu, na Justiça, em cumprimento à Convenção de Haia a devolução de dois irmãos, menores de idade, ao Canadá. As crianças estavam retidas indevidamente no Brasil pela mãe, desde setembro de 2009.

A mãe das crianças tentou suspender no Tribunal Regional Federal da 3ª Região os efeitos da ordem judicial de 1ª instância que determinou o retorno das crianças ao Canadá. Entretanto, a atuação do Departamento Internacional e da Procuradoria Regional da União da 3ª Região (PRU3) conseguiu manter a decisão. Inconformada, a mãe das crianças recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

No STJ, o Departamento Internacional da Procuradoria-Geral da União (PGU) conseguiu manter a decisão de 1ª instância. Na defesa apresentada pela AGU, os advogados alegaram que as nações que aderiram à Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças se comprometeram a devolver imediatamente menores ilegalmente transferidos para qualquer estado contratante.

O Superior Tribunal de Justiça acolheu os argumentos da AGU e manteve a ordem judicial expedida em 1ª instancia concedida pela 1ª Vara Federal de São Bernardo dos Campos (SP). As crianças retornaram ao Canadá no dia 12 de novembro.

Convenção de Haia

A Convenção foi promulgada no Brasil pelo Decreto 3.413/00 e determina que os estados participantes devem tomar as medidas apropriadas para assegurar nos respectivos territórios a concretização e os objetivos estabelecidos.  A PRU3 e o Departamento Internacional são unidades da PGU, órgão da AGU. O processo tramita em segredo de justiça.
Informações da AGU.

SUCESSÃO DO COMPANHEIRO. O POLÊMICO ARTIGO 1790 DO CC E SUAS CONTROVÉRSIAS PRINCIPAIS-2



Flávio Tartuce
Advogado e Consultor Jurídico em São Paulo; Professor da EPD e do Curso FMB; Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP; Doutorando em Direito Civil pela USP.
(Estudo dedicado à Prof. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka).

Superada a controvérsia a respeito da sucessão híbrida, seguindo na leitura e estudo do art. 1.790 do CC, preconiza o seu inciso III que se o companheiro ou convivente concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança. Como outros parentes sucessíveis, leiam-se os ascendentes e os colaterais até quarto grau. Como se verá, há julgados que reconhecem a inconstitucionalidade dessa previsão, por colocar o companheiro em possível desfavorável em relação a parentes longínquos, com os quais muitas vezes não se têm contato social. Ora, muitas vezes não se sabe sequer o nome de um tio-avô, de um sobrinho-neto ou mesmo de um primo. Deve ficar claro que este autor está filiado à tese de inconstitucionalidade do comando.
Por fim, consagra o inciso IV do art. 1.790 do CC que não havendo parentes sucessíveis – descendentes, ascendentes e colaterais até o quarto grau – o companheiro terá direito à totalidade da herança.
Superada a leitura do art. 1.790 do CC, outra questão controvertida a respeito da sucessão do companheiro se refere ao direito real de habitação sobre o imóvel do casal, eis que o CC/02 não o consagra expressamente. Todavia, apesar do silêncio do legislador, prevalece o entendimento pela manutenção de tal direito sucessório. Nesse sentido, o Enunciado nº 117 CJF/STJ da I Jornada de Direito Civil: "O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei nº 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88". Como se nota, dois são os argumentos que consta do enunciado doutrinário. O primeiro é que não houve a revogação expressa da Lei nº 9.278/96, na parte que tratava do citado direito real de habitação (art. 7º, parágrafo único). O segundo argumento, mais forte, é a prevalência do citado direito diante da proteção constitucional da moradia, retirada do art. 6º da CF/88, o que está em sintonia com o Direito Civil Constitucional. De fato, esse entendimento prevalece na doutrina nacional. Na citada tabela doutrinária, assim deduzem Christiano Cassettari, Giselda Hironaka, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Maria Helena Daneluzzi, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira, Sílvio de Salvo Venosa e Zeno Veloso; além deste autor 5. Não é diferente a conclusão da jurisprudência, havendo inúmeros julgados que concluem pela manutenção do direito real de habitação a favor do companheiro (por todos: TJSP, AI 990.10.007582-9, Acórdão nº 4569452, Araçatuba, 1ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. De Santi Ribeiro, j. 29.06.10, DJESP 28.07.10, Fonte: DVD Magister, versão 33, ementa 65844081, Editora Magister, Porto Alegre, RS TJRS, AC 7002961683, Porto Alegre, 7ª CC, Rel. Des. André Luiz Planella Villarinho, j. 16.12.09, DJERS 06.01.10, p. 35; TJDF, Recurso 2006.08.1.007959-5, Acórdão nº 355.521, 7ª T.Cív., Relª. Desª. Ana Maria Duarte Amarante Brito, DJDFTE 13.05.09, p. 145; TJSP, Ap. 573.553.4/2, Acórdão nº 4005883, Guarulhos, 4ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 30.07.09, DJESP 16.09.09; TJSP, Apelação com revisão nº 619.599.4/5, Acórdão nº 3692033, São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Percival Nogueira, j. 18.06.09, DJESP 14.07.09).
De toda sorte, a conclusão não é unânime, pois há quem entenda que tal direito não persiste mais, tendo o legislador feito silêncio eloquente: Francisco José Cahali, Inácio de Carvalho Neto e Mário Luiz Delgado. No mesmo sentido podem ser encontradas algumas ementas (cite-se: TJSP, Apelação 991.06.028671-7, Acórdão nº 4621644, São Paulo, 20ª Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Campos Mello, j. 26.07.10, DJESP 12.08.10 – Fonte: DVD Magister, versão 33, ementa 65861416 – Editora Magister, Porto Alegre, RS e TJSP, Apelação com revisão nº 473.746.4/4, Acórdão nº 4147571, Fernandópolis, 7ª Câmara de Direito Privado B, Relª. Desª. Daise Fajardo Nogueira Jacot, j. 27.10.09, DJESP 10.11.09).
Questão de maior relevo refere-se à suposta inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC, o que é suscitado por alguns dos nossos maiores sucessionistas. De início, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka é uma das juristas que sustenta ser o dispositivo inconstitucional, por desprezar a equalização do companheiro ao cônjuge constante do art. 226, § 3º, da CF/88 6. Do mesmo modo, Zeno Veloso lamenta a redação do comando, lecionando que "as famílias são iguais, dotadas da mesma dignidade e respeito. Não há, em nosso país, família de primeira classe, de segunda ou terceira. Qualquer discriminação, neste campo, é nitidamente inconstitucional. O art. 1.790 do Código Civil desiguala as famílias. É dispositivo passadista, retrógrado, perverso. Deve ser eliminado, o quanto antes. O Código ficaria melhor – e muito melhor – sem essa excrescência" 7.
A tese da inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC encontra amparos em inúmeros julgados dos Tribunais, mas com uma grande variação de entendimentos, conforme se pode extrair do resumo a seguir:
"- Existem julgados que reconhecem a inconstitucionalidade somente do inciso III do art. 1.790, ao prever que o companheiro recebe 1/3 da herança na concorrência com ascendentes e colaterais até quarto grau. Repise-se que este autor é favorável à tese de inconstitucionalidade somente desse inciso, por ser mesmo desproporcional, desprestigiando a união estável. Nesse sentido: ‘INVENTÁRIO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. DIREITO À TOTALIDADE DA HERANÇA. PARENTES COLATERAIS. EXCLUSÃO DOS IRMÃOS DA SUCESSÃO. INAPLICABILIDADE DO ART. 1790, III, DO CC/02. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 480 DO CPC. Não se aplica a regra contida no art. 1.790, inciso III, do CC/02, por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento. Assim, devem ser excluídos da sucessão os parentes colaterais, tendo o companheiro o direito à totalidade da herança. Incidente de inconstitucionalidade arguido, de ofício, na forma do art. 480 do CPC. Incidente rejeitado, por maioria. Recurso desprovido, por maioria.’ (TJRS, AI 70017169335, Porto Alegre, 8ª CCiv., Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 08.03.07, DJERS 27.11.09, p. 38. Concluindo do mesmo modo: TJSP, AI 654.999.4/7, Acórdão nº 4034200, São Paulo, 4ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Teixeira Leite, j. 27.08.09, DJESP 23.09.09; e TJSP, AI. 609.024.4/4, Acórdão nº 3618121, São Paulo, 8ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 06.05.09, DJESP 17.06.09)
- Há ementas que sustentam a inconstitucionalidade de todo art. 1.790 do CC, por trazer menos direitos sucessórios ao companheiro, se confrontado com os direitos sucessórios do cônjuge (art. 1.829). Assim: ‘BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA DA COMPANHEIRA COM FILHOS COMUNS E EXCLUSIVO DO AUTOR DA HERANÇA. OMISSÃO LEGISLATIVA NESSA HIPÓTESE. IRRELEVÂNCIA. Impossibilidade de se conferir à companheira mais do que teria se casada fosse. Proteção constitucional a amparar ambas as entidades familiares. Inaplicabilidade do art. 1.790 do CC. Reconhecido direito de meação da companheira, afastado o direito de concorrência com os descendentes. Aplicação da regra do art. 1.829, I, do Código Civil. Sentença mantida. Recurso não provido.’ (TJSP, Apelação 994.08.061243-8, Acórdão nº 4421651, Piracicaba, 7ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Élcio Trujillo, j. 07.04.10, DJESP 22.04.10).
- Ainda podem ser encontradas decisões que suspendem o processo até que o Órgão Especial do Tribunal reconheça ou não a constitucionalidade da norma: ‘ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE ACATADA PELO MAGISTRADO DE 1º GRAU. ART. 1.790, III, DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO QUE VISA O RECONHECIMENTO DA CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA LEGAL. COMPETÊNCIA PARA JULGÁ-LA DO ÓRGÃO ESPECIAL. ART. 97 DA CF. SUSPENSÃO DO JULGAMENTO DO RECURSO DE AGRAVO. REMESSA DOS AUTOS AO ÓRGÃO ESPECIAL. 1. Nos tribunais em que há órgão especial, a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, tanto a hipótese de controle concentrado como na de incidental, por força da norma contida no art. 97 da CF, somente pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta dos membros que o compõem. 2. Se os integrantes do órgão fracionário – Câmara Cível – se inclinam em manter a arguição de inconstitucionalidade formulada pelos recorridos em 1º grau, o julgamento do recurso de agravo de instrumento deve ser suspenso, com a remessa dos autos ao órgão especial para que o incidente de inconstitucionalidade seja julgado, ficando a câmara, quando os autos lhe forem restituídos para que o julgamento do recurso tenha prosseguimento, vinculada, quanto à questão constitucional, à decisão do órgão especial.’ (TJPR, AI 0536589-9, Curitiba, 12ª Câmara Cível, Rel. Des. Costa Barros, DJPR 29.06.09, p. 223 – Fonte: DVD Magister, versão 33, ementa 57305755 – Editora Magister, Porto Alegre, RS. Na mesma linha, remetendo os autos para o Órgão Especial: TJSP, Apelação com revisão nº 587.852.4/4, Acórdão nº 4131706, Jundiaí, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Piva Rodrigues, j. 25.08.09, DJESP 25.11.09).
- Curiosamente, consigne-se decisão do Tribunal paulista que sustenta a inconstitucionalidade do art. 1.790 por trazer mais direitos à companheira do que ao cônjuge. Ao final, a decisão determina a remessa dos autos ao Órgão Especial: ‘INVENTÁRIO. PARTILHA. MEAÇÃO DA COMPANHEIRA. DECISÃO QUE APLICA O ART. 1.790, II, DO CÓDIGO CIVIL. Determinação de concorrência entre a companheira e os filhos do de cujus quanto aos bens adquiridos na constância da união, afora a meação. Inconformismo. Alegação de ofensa ao art. 226, § 3º, da CF. Concessão de direitos mais amplos à companheira que a esposa Acolhimento da arguição de inconstitucionalidade. Questão submetida ao Órgão Especial. Incidência dos arts. 481, do CPC, e 97, da CF. Aplicação da Súmula Vinculante nº 10 do STF. Recurso conhecido, sendo determinada a remessa dos autos ao Órgão Especial, nos termos do art. 657, do Regimento Interno desta Corte.’ (TJSP, AI. 598.268.4/4, Acórdão nº 3446085, Barueri, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Grava Brasil, j. 20.01.09, DJESP 10.03.09).
- Por fim, existem decisões que concluem pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade no art. 1.790 do CC. Há variação na linha seguida para tal conclusão. De início, anota-se decisão que entendeu que a CF/1988 não equiparou a união estável ao casamento, o que justifica o tratamento diferenciado: ‘A CF não equiparou o instituto da união estável ao do casamento, tendo tão somente reconhecido aquele como entidade familiar (art. 226, § 3º, CF). Dessa forma, é possível verificar que a legislação civil buscou resguardar, de forma especial, o direito do cônjuge, o qual possui prerrogativas que não são asseguradas ao companheiro. Sendo assim, o tratamento diferenciado dado pelo Código Civil a esses institutos, especialmente no tocante ao direito sobre a participação na herança do companheiro ou cônjuge falecido, não ofende o princípio da isonomia, mesmo que, em determinados casos, como o dos presentes autos, possa parecer que o companheiro tenha sido privilegiado. O art. 1.790 do CC, portanto, é constitucional, pois não fere o princípio da isonomia.’ (TJDF, Recurso nº 2009.00.2.001862-2, Acórdão nº 355.492, 1ª T.Cív., Rel. Des. Natanael Caetano, DJDFTE 12.05.09, p. 81 – Fonte: DVD Magister, versão 33, ementa 48300815 – Editora Magister, Porto Alegre, RS). Anote-se, ato contínuo, que, em relação ao inciso III do art. 1.790 do CC, o Órgão Especial do TJRS julgou prejudicado o incidente de inconstitucionalidade (TJRS, Incidente nº 70032664054, Antônio Prado, Órgão Especial, Rel. Des. Luiz Felipe Silveira Difini, j. 16.11.09, DJERS 03.12.09, p. 1). Colaciona-se ainda julgado que concluiu pela inexistência de inconstitucionalidade no art. 1.790 pelo fato de o casamento estar em posição privilegiada em relação à união estável, premissa a qual não se filia: ‘UNIÃO ESTÁVEL. DIREITO SUCESSÓRIO. VANTAGENS E DESVANTAGENS DOS CÔNJUGES E COMPANHEIROS SEGUNDO A DISCIPLINA DO NOVO CÓDIGO CIVIL. PARTICIPAÇÃO DO CÔNJUGE, EM CONCORRÊNCIA COM OS DESCENDENTES, NA SUCESSÃO DOS BENS PARTICULARES DO DE CUJUS E SUA EXCLUSÃO DA HERANÇA NO QUE TANGE AOS BENS COMUNS, DOS QUAIS RECEBE APENAS A MEAÇÃO QUE SEMPRE LHE PERTENCEU. SITUAÇÃO EXATAMENTE INVERSA NA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO. Regra do art. 1.790 do Código Civil que, entretanto, não se considera inconstitucional, pois, na comparação global dos direitos concedidos a uns e outros pelo NCC, a conclusão é a de que o cônjuge restou mais beneficiado, não havendo assim ofensa ao art. 226, § 3º, da Carta Magna. Reconhecimento, no presente processo, do direito da agravante de concorrer com a filha do falecido na partilha da meação ideal pertencente ao mesmo no imóvel adquirido onerosamente durante a união estável. Direito real de habitação também reconhecido à agravante, em face da regra do art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 9278/96, não revogada pelo novo estatuto de direito privado. Recurso provido em parte.’" (TJSP, AI 589.196.4/4, Acórdão nº 3474069, Bragança Paulista, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Morato de Andrade, j. 03.02.09, DJESP 26.03.09)
A variação dos entendimentos dos julgados demonstra o sistema caótico existente no Brasil quanto à sucessão do companheiro. A constatação é que a Torre de Babel não é apenas doutrinária, mas também jurisprudencial.
A encerrar o estudo da sucessão do companheiro, pende ainda um problema, que é aquele relacionado à possibilidade de concorrência sucessória entre o cônjuge e o companheiro. Ora, o CC/02 admite que o cônjuge separado de fato tenha união estável (art. 1.723, § 1º, do CC). Então, imagine-se a situação, bem comum em nosso país, de um homem separado de fato que vive em união estável com outra mulher. Em caso de sua morte, quem irá suceder os seus bens? A esposa, com quem ainda mantém vínculo matrimonial, ou a companheira, com quem vive? O CC/02 não traz solução a respeito dessa hipótese, variando a doutrina nas suas propostas. Vejamos algumas interessantes:
"- Euclides de Oliveira propõe que os bens sejam divididos de forma igualitária entre o cônjuge e o companheiro 8.
- Para José Luiz Gavião de Almeida, o companheiro terá direito a um terço dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, o que é aplicação do inciso III do art. 1.790 do CC. O restante dos bens deve ser destinado ao cônjuge 9.
- Para Christiano Cassettari, a companheira deve receber toda a herança, eis que prevalece tal união quando da morte 10.
- Conforme consta da obra escrita com José Fernando Simão, o entendimento do presente autor é o seguinte: considerando-se toda a orientação jurisprudencial no sentido de que a separação de fato põe fim ao regime de bens, o patrimônio do falecido deve ser dividido em dois montes. O primeiro monte é composto pelos bens adquiridos na constância fática do casamento. Sobre tais bens, somente o cônjuge tem direito de herança. A segunda massa de bens é constituída pelos bens adquiridos durante a união estável. Quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a união, a companheira terá direito à herança. Em relação aos bens adquiridos a outro título durante a união estável, o cônjuge terá direito à herança." 11

A encerrar o assunto, como bem aponta Zeno Veloso, "estamos longe de ter a completa elucidação do problema que, no momento presente, está impregnado de perplexidade, confusão. Só a jurisprudência, mansa e pacífica, dará a palavra final. E vale registrar a ponderação de Eduardo de Oliveira Leite (Comentários ao novo Código Civil. Direito das Sucessões, cit., p. 230. v. 21.) de que, nesta questão, não se pode cair no perigoso radicalismo dos excessos, do tipo ‘tudo para o cônjuge, nada ao companheiro’, ou vice-versa, evitando-se medidas extremas, quase sempre injustas" 12.
NOTAS
5 - CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 189-192; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 228-229. v. 20; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil – Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: GEN/Método, 2010. p. 285. v. 6.
6 - Como se extrai da tese de titularidade defendida pela autora na Universidade de São Paulo, em setembro de 2010: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder. Passado e Presente da transmissão sucessória concorrente. São Paulo: Versão da Autora, 2010, p. 447-457.
7 - VELOSO, Zeno. Código Civil comentado. Ricardo Fiúza e Regina Beatriz Tavares da Silva (Coords.). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 1955.
8 - OLIVEIRA, Euclides de. Direito de herança. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 182.
9 - ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil comentado. Álvaro Villaça Azevedo (coord.). São Paulo: Atlas, 2003. p. 217. v. XVIII.
10 - CASSETTARI, Christiano. Direito Civil. Direito das Sucessões. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (orien.). Christiano Cassettari e Márcia Maria Menin (coords.). São Paulo: RT, 2008. p. 104
11 - TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: GEN/Método, 2010. p. 248-249. v. 6.
12 - VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 97.

Extraído de Editora Magister/doutrina

A INDENIZAÇÃO POR PERDA DA CHANCE NO STJ

Surgida na França e comum em países como Estados Unidos e Itália, a teoria da perda da chance (perte d’une chance), adotada em matéria de responsabilidade civil, vem despertando interesse no direito brasileiro – embora não seja aplicada com frequência nos tribunais do país.

A teoria enuncia que o autor do dano é responsabilizado quando priva alguém de obter uma vantagem ou impede a pessoa de evitar prejuízo. Nesse caso, há uma peculiaridade em relação às outras hipóteses de perdas e danos, pois não se trata de prejuízo direto à vítima, mas de uma probabilidade.

Não é rara a dificuldade de se distinguir o dano meramente hipotético da chance real de dano. Quanto a este ponto, a ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), avalia que “a adoção da teoria da perda da chance exige que o Poder Judiciário bem saiba diferenciar o ‘improvável’ do ‘quase certo’, bem como a ‘probabilidade de perda’ da ‘chance de lucro’, para atribuir a tais fatos as consequências adequadas”.




No STJ, um voto do ministro aposentado Fernando Gonçalves é constantemente citado como precedente. Trata-se da hipótese em que a autora teve frustrada a chance de ganhar o prêmio máximo de R$ 1 milhão no programa televisivo “Show do Milhão”, em virtude de uma pergunta mal formulada.

Na ação contra a BF Utilidades Domésticas Ltda., empresa do grupo econômico Silvio Santos, a autora pleiteava o pagamento por danos materiais do valor correspondente ao prêmio máximo do programa e danos morais pela frustração. A empresa foi condenada em primeira instância a pagar R$ 500 mil por dano material, mas recorreu, pedindo a redução da indenização para R$ 125 mil.

Para o ministro, não havia como se afirmar categoricamente que a mulher acertaria o questionamento final de R$ 1 milhão caso ele fosse formulado corretamente, pois “há uma série de outros fatores em jogo, como a dificuldade progressiva do programa e a enorme carga emocional da indagação final”, que poderia interferir no andamento dos fatos. Mesmo na esfera da probabilidade, não haveria como concluir que ela acertaria a pergunta.

Relator do recurso na Quarta Turma, o ministro Fernando Gonçalves reduziu a indenização por entender que o valor advinha de uma “probabilidade matemática” de acerto de uma questão de quatro itens e refletia as reais possibilidades de êxito da mulher.

De acordo com o civilista Miguel Maria de Serpa Lopes, a possibilidade de obter lucro ou evitar prejuízo deve ser muito fundada, pois a indenização se refere à própria chance, não ao lucro ou perda que dela era objeto.

Obrigação de meio

A teoria da perda da chance tem sido aplicada para caracterizar responsabilidade civil em casos de negligência de profissionais liberais, em que estes possuem obrigação de meio, não de resultado. Ou seja, devem conduzir um trabalho com toda a diligência, contudo não há a obrigação do resultado.

Nessa situação, enquadra-se um pedido de indenização contra um advogado. A autora alegou que o profissional não a defendeu adequadamente em outra ação porque ele perdeu o prazo para interpor o recurso. Ela considerou que a negligência foi decisiva para a perda de seu imóvel e requereu ressarcimento por danos morais e materiais sofridos.

Em primeira instância, o advogado foi condenado a pagar R$ 2 mil de indenização. Ambas as partes recorreram, mas o tribunal de origem manteve a sentença. No entendimento da ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso especial na Terceira Turma, mesmo que comprovada a culpa grosseira do advogado, “é difícil antever um vínculo claro entre esta negligência e a diminuição patrimonial do cliente, pois o sucesso no processo judicial depende de outros fatores não sujeitos ao seu controle.”
Apesar de discorrer sobre a aplicação da teoria no caso, a ministra não conheceu do recurso, pois ele se limitou a transcrever trechos e ementas de acórdãos, sem fazer o cotejo analítico entre o acórdão do qual se recorreu e seu paradigma.

Evitar o dano

Em outro recurso de responsabilidade civil de profissional liberal, o relator, ministro Massami Uyeda, não admitiu a aplicação da teoria da perda da chance ao caso, pois se tratava de “mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no âmbito da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável”.

No caso, um homem ajuizou ação de indenização por dano moral contra um médico que operou sua esposa, pois acreditava que a negligência do profissional ao efetuar o procedimento cirúrgico teria provocado a morte da mulher.

A ação foi julgada improcedente em primeira instância, sob três fundamentos: o autor deveria comprovar, além do dano, o nexo causal e a culpa do médico; as provas produzidas nos autos não permitem atribuir ao médico a responsabilidade pelos danos sofridos pelo marido; não há de se falar em culpa quando surgem complicações dependentes da condição clínica da paciente.

Interposto recurso de apelação, o tribunal de origem deu-lhe provimento, por maioria, por entender que o médico foi imprudente ao não adotar as cautelas necessárias. O profissional de saúde foi condenado a pagar R$ 10 mil por ter havido a possibilidade de evitar o dano, apesar da inexistência de nexo causal direto e imediato.

No recurso especial, o médico sustentou que tanto a prova documental quanto a testemunhal produzida nos autos não respaldam suficientemente o pedido do marido e demonstram, pelo contrário, que o profissional adotou todas as providências pertinentes e necessárias ao caso.

De acordo com o ministro Uyeda, “para a caracterização da responsabilidade civil do médico por danos decorrentes de sua conduta profissional, imprescindível se apresenta a demonstração do nexo causal”. Ele deu parcial provimento ao recurso para julgar improcedente a ação de indenização por danos morais.
Show do milhão
O juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo Sílvio de Salvo Venosa, autor de vários livros sobre direito civil, aponta que “há forte corrente doutrinária que coloca a perda da chance como um terceiro gênero de indenização, ao lado dos lucros cessantes e dos danos emergentes, pois o fenômeno não se amolda nem a um nem a outro segmento”.

Processos relacionados: REsp 788459 - REsp 965758 - REsp 1079185 - REsp 1104665

Informações do STJ.

29 novembro 2010

ELAS ADORAM OS MACHÕES

Extraído de Tiras Nacionais

STJ APROVA SÚMULA APLICANDO O CDC AOS PLANOS DE SAÚDE

A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com a relatoria do ministro Aldir Passarinho Junior, aprovou nova súmula com a seguinte redação:
Súmula 469:
“Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde”.
As referências da súmula são as leis n. 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor – CDC) e 9.656/1998, que dispõe sobre planos e seguros privados de assistência à saúde.

A súmula consolida o entendimento já pacificiado no STJ, de que “a operadora de serviços de assistência à saúde que presta serviços remunerados à população tem sua atividade regida pelo Código de Defesa do Consumidor, pouco importando o nome ou a natureza jurídica que adota”. (Resp 267.530/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJe 12/3/2001).

O CDC é aplicado aos planos de saúde mesmo em contratos firmados anteriormente à vigência do código, mas que são renovados. De acordo com voto da ministra Nancy Andrighi, no precedente, não se trata de retroatividade da lei. “Dada a natureza de trato sucessivo do contrato de seguro-saúde, o CDC rege as renovações que se deram sob sua vigência, não havendo que se falar aí em retroação da lei nova”.

O ministro Luis Felipe Salomão, em outro precedente, também adotou a mesma tese ao asseverar que: “Tratando-se de contrato de plano de saúde de particular, não há dúvidas de que a convenção e as alterações ora analisadas estão submetidas ao regramento do Código de Defesa do Consumidor, ainda que o acordo original tenha sido firmado anteriormente à entrada em vigor, em 1991, dessa lei. Isso ocorre não só pelo CDC ser norma de ordem pública (art. 5º, XXXII, da CF), mas também pelo fato de o plano de assistência médico-hospitalar firmado pelo autor ser um contrato de trato sucessivo, que se renova a cada mensalidade”. (Resp 418.572/SP. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 30/3/2009).

Também estão relacionados à nova súmula os seguintes recursos: Resp 251.024, Resp 986.947, Resp 1.046.355, Resp 1.106.789, AgRg no Ag 1.250.819, Resp 1.106.557, Resp 466.667 e Resp 285.618.


Informações do STJ

SUCESSÃO DO COMPANHEIRO. O POLÊMICO ARTIGO 1790 DO CC E SUAS CONTROVÉRSIAS PRINCIPAIS-1


Flávio Tartuce
Advogado e Consultor Jurídico em São Paulo; Professor da EPD e do Curso FMB; Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP; Doutorando em Direito Civil pela USP.

(Estudo dedicado à Prof. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka).

Um dos dispositivos mais criticados e comentados da atual codificação privada é o relativo à sucessão do companheiro, merecendo destaque especial para os devidos aprofundamentos:
"Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança."
Já de início, a norma está mal colocada, introduzida entre as disposições gerais do Direito das Sucessões. Isso se deu pelo fato do tratamento relativo à união estável ter sido incluído no CC/02 nos últimos momentos de sua elaboração. Pelo mesmo fato, o companheiro não consta da ordem de vocação hereditária, sendo tratado como um herdeiro especial.
Pois bem, como primeira premissa para o reconhecimento do direito sucessório do companheiro ou companheira, o caput do comando enuncia que somente haverá direitos em relação aos bens adquiridos onerosamente durante a união. Desse modo, comunicam-se os bens havidos pelo trabalho de um ou de ambos durante a existência da união estável, excluindo-se bens recebidos a título gratuito, por doação ou sucessão. Deve ficar claro que a norma não está tratando de meação, mas de sucessão ou herança, independentemente do regime de bens adotado. Por isso, em regra, pode-se afirmar que o companheiro é meeiro e herdeiro, eis que, no silêncio da partes, vale para a união estável o regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725 do CC).
Surge, como primeira polêmica, problema referente aos bens adquiridos pelo companheiro a título gratuito (v. g. doação). Se o companheiro falecido tiver apenas bens recebidos a esse título, não deixando descendentes, ascendentes ou colaterais, os bens devem ser destinados ao companheiro ou ao Estado? Filia-se ao entendimento de destino ao companheiro, pela clareza do art. 1.844 do CC, pelo qual os bens somente serão destinados ao Estado se o falecido não deixar cônjuge, companheiro ou outro herdeiro. Na famosa tabela doutrinária elaborada pelo Professor Francisco José Cahali, esse parece ser o entendimento majoritário, eis que exposta a dúvida em relação à possibilidade de o companheiro concorrer com o Estado em casos tais. A maioria dos doutrinadores respondeu negativamente para tal concorrência, caso de Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Mario Roberto de Faria, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Sílvio de Salvo Venosa; além do presente autor. Por outra via, sustentando que o companheiro deve concorrer com o Estado em casos tais: Francisco José Cahali, Giselda Hironaka, Inácio de Carvalho Neto, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira e Zeno Veloso 1.
Ato contínuo de estudo, nota-se que o art. 1.790 do CC reconhece direitos sucessórios ao convivente em concorrência com os descendentes do autor da herança. Nos termos do seu inciso I, se o companheiro concorrer com filhos comuns (de ambos), terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho. Por outra via, se concorrer com descendentes só do autor da herança (descendentes exclusivos), tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles. O equívoco é claro na redação dos incisos, uma vez que o primeiro faz menção aos filhos; enquanto que o segundo aos descendentes. Na esteira da melhor doutrina, é forçoso concluir que o inciso I também incide às hipóteses em que estão presentes outros descendentes do falecido. Nesse sentido, o Enunciado nº 266 CJF/STJ da III Jornada de Direito Civil: "Aplica-se o inciso I do art. 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns". Na tabela doutrinária de Francisco Cahali, tal conclusão é quase unânime, assim pensando Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Francisco Cahali, Giselda Hironaka, Inácio de Carvalho Neto, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, além do presente autor. Em sentido contrário, pela aplicação do inciso III do art. 1.790 do CC, em situações tais, apenas Maria Berenice Dias e Mário Roberto Carvalho de Faria 2.
Situação não descrita na norma refere-se à sucessão híbrida, ou seja, caso em que o companheiro concorre, ao mesmo tempo, com descendentes comuns e exclusivos do autor da herança. Não se olvide que a expressão sucessão híbrida foi cunhada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, professora titular da Universidade de São Paulo 3. Sobre tal problemática, existem três correntes fundamentais bem definidas:
"1ª Corrente – Em casos de sucessão híbrida, deve-se aplicar o inciso I do art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem comuns, já que filhos comuns estão presentes. Esse entendimento é o majoritário na tabela doutrinária de Cahali: Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Francisco Cahali, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Silvio de Salvo Venosa.
2ª Corrente – Presente a sucessão híbrida, subsume-se o inciso II do art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem exclusivos (só do autor da herança). Este autor está filiado a tal corrente, assim como Gustavo René Nicolau, Maria Helena Diniz, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso. Ora, como a sucessão é do falecido, em havendo dúvida por omissão legislativa, os descendentes devem ser tratados como sendo dele, do falecido. Anote-se que julgado do TJSP adotou essa corrente, concluindo que entender de forma contrária violaria a razoabilidade: ‘INVENTÁRIO. PARTILHA JUDICIAL. PARTICIPAÇÃO DA COMPANHEIRA NA SUCESSÃO DO DE CUJUS EM RELAÇÃO AOS BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA DA COMPANHEIRA COM DESCENDENTES COMUNS E EXCLUSIVOS DO FALECIDO. HIPÓTESE NÃO PREVISTA EM LEI. ATRIBUIÇÃO DE COTAS IGUAIS A TODOS. DESCABIMENTO. CRITÉRIO QUE PREJUDICA O DIREITO HEREDITÁRIO DOS DESCENDENTES EXCLUSIVOS, AFRONTANDO A NORMA CONSTITUCIONAL DE IGUALDADE ENTRE OS FILHOS (ART. 227, § 6º, DA CF). APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO ART. 1.790, II, DO CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE. Solução mais razoável que preserva a igualdade de quinhões entre os filhos, atribuindo à companheira, além de sua meação, a metade do que couber a cada um deles. Decisão reformada. Recurso provido.’ (TJSP, AI. 994.08.138700-0, Acórdão nº 4395653, São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Álvaro Passos, j. 24.03.10, DJESP 15.04.10. No mesmo sentido: TJSP, AI 652.505.4/0, Acórdão nº 4068323, São Paulo, 5ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Roberto Nussinkis Mac Cracken, j. 09.09.09, DJESP 05.10.09)
3ª Corrente – Na sucessão híbrida, deve-se aplicar fórmula matemática de ponderação para solucionar o problema. Entre tantas fórmulas, destaca-se a Fórmula Tusa, elaborada por Gabriele Tusa, com o auxílio do economista Fernando Curi Peres 4. A fórmula é a seguinte:
X = _________2 (F + S)_____________ x H 2 (F + S)2 + 2 F + S
C = __2F + S__ x X 2 (F + S)
Legenda
X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos.
C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.
H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente.
F = número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
NOTAS DO AUTOR:

1 - A famosa tabela doutrinária pode ser encontrada em: CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 189-192; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 228-229. v.. 20; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil – Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: GEN/Método, 2010. p. 285. v. 6.
2 - CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 189-192; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 228-229. v. 20; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. – Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: GEN/Método, 2010. p. 285. v. 6.
3 - Veja-se em: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 20.
4 - Ver em: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 66-67. v. 20; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil – Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: GEN/Método, 2010. p. 237. v. 6.
Extraído de Editora Magister/doutrina