O blog
publica às sextas-feiras decisões da Primeira Turma do Colegiado
Recursal dos Juizados Especiais de Vitória, no biênio 2004/2006,
período em que tive a honra de integrar aquele dinâmico sodalício.
Não há compromisso de publicação da integralidade dos julgados
nem com a identificação das partes, vez que interessa apenas
revelar alguns temas interessantes que são debatidos no cotidiano
dos Juizados Especiais, os quais inegavelmente deram uma nova
dinâmica ao judiciário brasileiro. E de tal sorte que cada vez mais
são ampliadas suas competências. Pelo andar da carruagem, em breve
o que era especial passará a ser comum, o que faz alguns preverem em
futuro próximo o sepultamento das varas cíveis comuns, onde ou se
consegue um provimento cautelar ou antecipatório ou não se vê
resultado concreto em pelo menos longos anos de litígio.
Hoje
a questão versa sobre rejuste de plano de saúde de idoso e a
abusividade de sua aplicação por mudança de faixa etária, nos
termos abaixo:
RECURSO
INOMINADO Nº 6.249/05
ACÓRDÃO
EMENTA: RECURSO INOMINADO.
PLANO DE SAÚDE. DUPLA MAJORAÇÃO DE MENSALIDADE, POR MUDANÇA DE
FAIXA ETÁRIA E REAJUSTE ANUAL, SUPERANDO 120%. IMPOSSIBILIDADE.
ABUSIVIDADE FLAGRANTE.
1.-USUÁRIA DE PLANO DE SAÚDE HÁ
MAIS DE NOVE ANOS E RIGOROSAMENTE EM DIA COM AS PRESTAÇÕES DE SUAS
MENSALIDADES, CONTANDO 61 ANOS DE IDADE.
2.- O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
APLICA-SE AOS CONTRATOS DE ADESÃO E ALEATÓRIOS, COMO OS PLANOS DE
SAÚDE, MORMENTE QUANDO ASSINADOS NA SUA VIGÊNCIA, INTERPRETANDO-SE
SUAS CLÁUSULAS EM PROL DO ADERENTE, PERMITIDA A REVISÃO CONTRATUAL
PARA EXCLUSÃO DE CLÁUSULAS ABUSIVAS OU DE EXCESSIVA ONEROSIDADE.
3.- A MAJORAÇÃO EM MAIS DE 99% POR
FAIXA DE IDADE ACRESCIDA DE 12,74% A TÍTULO DE REAJUSTE ANUAL
REFLETE INDISCUTÍVEL ABUSIVIDADE E EXCESSIVA ONEROSIDADE AO
CONSUMIDOR, MORMENTE AO CONSUMIDOR-IDOSO.
4.-EXCLUSÃO DO PERCENTUAL REFERENTE A
MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA POR PROIBIÇÃO LEGAL – ARTGO 15, § 3º
DA LEI Nº 10.741/2003-ESTATUTO DO IDOSO.
5.- RECURSO IMPROVIDO.
Vistos,
relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Juízes da Primeira
Turma Recursal do Colegiado Recursal dos Juizados Especiais de
Vitória, ES, à unanimidade, conhecer do recurso, mas negar
provimento, nos termos do voto do Relator que deste passa a fazer
parte integrante.
Vitória,
ES, de julho de 2005.
RELATÓRIO
A
autora compareceu pessoalmente perante o Juizado Especial alegando
que possui o plano de saúde desde 03/03/1995 pagando as despesas do
plano desde então no valor de R$ 232,69 e nunca atrasou. No mês de
maio de 2004 a mensalidade veio com um aumento abusivo, vez que não
recebeu nenhum aviso prévio de que a mensalidade aumentaria e o
contrato não estipula o aumento no índice realizado. Alega que é
pessoa idosa e depende do plano, sendo um absurdo pagar agora R$
460,13. Requereu a restituição do valor pago a mais e que sejam
adequadas as demais mensalidades às suas condições financeiras.
Após
regular instrução, sobreveio a r.sentença de fls. 114/115, que
julgou procedente em parte o pedido para que se proceda a revisão da
cláusula XI do contrato, estabelecendo-se como percentual de
reajuste de mudança de faixa etária a taxa de 50%, que deverá
incidir sobre o valor da mensalidade cobrada até o dia anterior à
mudança de faixa etária, determinando sejam compensados os valores
pagos a mais até que possa ser liquidado o crédito acumulado,
indeferindo a restituição integral do valor.
Inconformada,
a operadora interpôs recurso inominado em fls. 117/122, alegando que
o reajuste aplicado encontrava-se previsto no contrato, que o
percentual aplicado estava de acordo com os índice autorizado pela
SUSEP e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar e que o
percentual aplicado pelo magistrado não tem qualquer parâmetro que
o justifique porque não observa nenhum critério, requerendo seja a
sentença rebatida reformada para declarar legítimo o percentual de
reajuste aplicado no plano da autora e ainda a condenação da
recorrida ao pagamento das custas sucumbenciais previstas em lei,
sendo os honorários fixados em 20% do valor da causa.
Contra-razões
a fls. 134/141, requerendo seja negado provimento ao recurso.
É
o relatório.
V
O T O
PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL
PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL
Alega
a operadora que tanto a aplicação do percentual por ela pretendido
quanto aquele determinado na sentença, multiplicado pelas prestações
extrapola o teto previsto para o juizado especial, dado que o
contrato é por prazo indeterminado.
No
juízo monocrático a questão foi bem apreciada, quer na audiência
de instrução, onde consignou tratar-se de relação de consumo,
quer na sentença, onde acrescentou que a autora busca provimento
mandamental, não se cuidando de condenação e, portanto, não
podendo ser calculado o valor da causa na exdrúxula interpretação
dada pela recorrente de multiplicar indefinidamente qualquer
percentual sobre as prestações.
Vale registrar que o contrato é de adesão e de trato sucessivo, mas é reajustado anualmente, não cabendo a absurda alegação de que se deve multiplicar o percentual indefinidamente.
Vale registrar que o contrato é de adesão e de trato sucessivo, mas é reajustado anualmente, não cabendo a absurda alegação de que se deve multiplicar o percentual indefinidamente.
O
contrato não tem valor determinado, não cabendo cogitar-se de
impossibilidade de sua apreciação no juizado especial pelo valor da
causa que, aliás, tendo sido atribuído na peça inicial o valor de
uma prestação, a recorrente dele não discordou e muito menos
impugnou.
Assim
sendo, rejeito a preliminar.
M
É R I T O
A
recorrida, na qualidade de usuária há mais de nove anos do plano de
saúde da recorrente e rigorosamente em dia com o pagamento de suas
mensalidades, diz-se surpreendida com o exagerado percentual de
reajuste a partir de maio/2005 de quase 100%, a título de mudança
de faixa etária, sobre o qual ainda foi acrescido o percentual de
12,74%, a título de reajuste anual.
A
operadora alega que tais reajustes foram elaborados com base na
legislação, ou seja, artigo 35-E, inciso I, da Lei 9.656/98, com a
alteração inserida pela MP nº 2177-44, de 24/08/2001.
Alega,
ainda, que os reajustes foram aprovados pela SUSEP –
Superintendência de Seguros Privados e pela ANS – Agência
Nacional de Saúde Suplementar.
Trata-se,
no caso, de relação de consumo, que se submete às regras do Código
de Defesa do Consumidor, onde as cláusulas contratuais serão
interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor, nos expressos
termos do artigo 47 da lei consumerista.
Tal
codificação é de ordem pública, de modo que o juiz deve apreciar
até mesmo de ofício qualquer questão relativa às relações de
consumo, não incidindo o princípio dispositivo. Não se pode
cogitar de preclusão e as questões surgidas no embate judicial
podem ser decididas e revisadas a qualquer tempo e em qualquer grau
de jurisdição.
Alega
a recorrida abusividade na aplicação do reajuste.
No
ponto, ministra o Professor NELSON NERY JÚNIOR;
“Constitui
direito básico do consumidor a “modificação das cláusulas
contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua
revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas” (art. 5º, V, do CDC). Este princípio
modifica inteiramente o sistema contratual do direito privado
tradicional, mitigando o dogma da intangibilidade do conteúdo do
contrato, consubstanciado no antigo brocardo pact sunt servanda.”
(A
Defesa do Consumidor no Brasil, Revista de Direito Privado nº, 18,
p.259).
Mais
adiante, acrescenta:
“O
juiz, reconhecendo que houve cláusula estabelecendo prestação
desproporcional ao consumidor ou que houve fatos supervenientes que
tornaram as prestações excessivamente onerosas para o consumidor,
deverá solicitar das partes a composição no sentido de modificar a
cláusula ou rever efetivamente o contrato. Caso não haja acordo, na
sentença deverá o magistrado, atendendo aos princípios da boa-fé,
da equidade e do equilíbrio que devem presidir as relações de
consumo, estipular a nova cláusula ou as novas bases do contrato
revisto judicialmente. Emitirá sentença determinativa, de conteúdo
constitutivo-integrativo e mandamental, vale dizer, exercendo
verdadeira atividade criadora, completando ou mudando alguns
elementos da relação jurídica de consumo já constituída.”
(Op.cit.p.260).
Ora,
no caso dos autos salta aos olhos a forma abusiva como a recorrente
agiu em face da recorrida. Primeiro, reajustou em 99,74% a título de
mudança de faixa etária. E em seguida, aplicou novo reajuste de
12,74%, a título de reajuste anual, o que corresponde ao absurdo
índice de mais de 120% (CENTO E VINTE POR CENTO).
De
outro lado, a fixação do percentual de 50% para reajuste da
mensalidade da recorrida arbitrado na sentença também não encontra
qualquer amparo legal, vez que o juiz não detém o arbítrio de
fixar percentual, devendo, quando necessário, agir em conformidade
com a legislação e fundamentando devidamente a decisão, sob pena
de nulidade do decisum, nos termos do artigo 93, inciso IX, da
Constituição Federal.
A jurisprudência reconhece em situação como a dos autos, evidente abusividade, como demonstra o seguinte julgado:
Recurso-2004.0001727-3 - Recurso Inominado
Ação
Originária-2003.70702A jurisprudência reconhece em situação como a dos autos, evidente abusividade, como demonstra o seguinte julgado:
Recurso-2004.0001727-3 - Recurso Inominado
Comarca de Origem-Curitiba - 7º JEC
Juiz Relator-JUCIMAR NOVOCHADLO
Livro-50, folha 211-215
Data do Julgamento-24/08/2004
EMENTA
: PLANO
DE SAÚDE.
AUMENTO DA MENSALIDADE. MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA. CLÁUSULA
CONTRATUAL QUE NÃO ESCLARECE OS CRITÉRIOS E ÍNDICES DE REAJUSTE.
APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. VIOLAÇÃO DO DEVER
DE INFORMAR, DA BOA-FÉ. VEDAÇÃO DE ALTERAÇÃO UNILATERAL DO
PREÇO. AUTORIZAÇÃO DA SUSEP. 1. Não se divisando do contrato
cláusula expressa da qual se possa aferir, de forma clara e
ostensiva, os critérios e índices de reajuste de mensalidade em
caso de deslocamento de faixa etária, permitindo ao usuário que
tivesse conhecimento do gravame que teria de suportar, quando
atingisse as idades limítrofes, não há como acolher o aumento
unilateral em quase 100% da contraprestação pecuniária, ante a
flagrante onerosidade excessiva e violação dos princípios da
informação e da boa-fé objetiva. 2. A autorização da SUSEP não
tem o condão de tornar lícito o percentual de reajuste cobrado ou
afastar a aplicação das disposições e princípios do Código de
Defesa do Consumidor. Recurso provido. Decisão: ACORDAM os Juízes
da Turma Recursal Única dos Juizados Especial Cível e Criminal do
Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em dar provimento ao
recurso.
Constatada
a abusividade do reajuste, verifica-se, ainda, que a recorrida é
pessoa idosa, assim considerada pela Lei nº 10.741, DE 01/10/2003,
que dispôs sobre o Estatuto do Idoso, que entrou em vigor em
01/01/2004, o qual proíbe qualquer discriminação em função da
idade.
A
esse propósito o Professor RIZZATTO NUNES, em artigo publicado na
internet (saraivajur/doutrina), com o título “Consumidor-idoso em
face do Estatuto do Idoso”, assinala que:
“Os
artigos 15 a 19 estabelecem algumas regras de proteção à saúde do
idoso. Não há novidade que demande comentário, à exceção
daquela estabelecida no § 3º do art. 15. Recentemente, o Supremo
Tribunal Federal declarou inconstitucional o art. 35-E da lei
9.656/98 (a que regula o setor de planos privados de assistência à
saúde). No inciso I desse artigo estava estabelecido que qualquer
aumento de prestação a ser cobrado dos usuários dos planos de
saúde com mais de sessenta anos deveria ter prévia autorização da
ANS (Agência Nacional de Saúde), ouvido o Ministério da Fazenda.
Com o estabelecimento da regra do § 3º citado fica simplesmente
proibido o aumento da contraprestação pecuniária dos
usuários-idosos dos planos privados de assistência à saúde.”
(Grifei).
Também eu, em
“Estatuto do Idoso e Legislação Referenciada”,
edição limitada da Escola da Magistratura do Espírito Santo, 2004,
p.24/25, assentei:
“O
Estatuto determina ao Poder Público, através de seus órgãos de
saúde e da iniciativa privada conveniados o atendimento prioritário
e especializado, ao idoso, inclusive domiciliar, e o fornecimento
gratuito de medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim
como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento,
habilitação ou reabilitação. E corrige uma grave injustiça que
se cometia contra os idosos, que praticamente eram excluídos dos
planos de saúde em razão dos elevadíssimos valores das
mensalidades e que eram majoradas a cada mudança de faixa etária.
Com
a entrada em vigor deste Estatuto os Planos de Saúde não mais
poderão cobrar valores diferenciados para os usuários na faixa
etária acima dos 60(sessenta) anos, os quais passam a ter melhores
condições de se filiar e de se manter segurados pelos referidos
planos. Realmente alguma coisa precisava ser feita para propiciar aos
idosos tanto o ingresso quanto a permanência nos planos e seguros de
saúde.
Esta
medida é, pois, absolutamente necessária, mormente para a maioria
dos idosos aposentados, cujos proventos são de regra inferiores ao
que recebiam na ativa e ainda diante da obrigação legal de pagar
imposto de renda e até contribuir para a previdência mesmo depois
de aposentados.”
“Art.
15 - ...
§
3º- É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela
cobrança de valores diferenciados em razão da idade.”
Impõe-se,
portanto, no caso dos autos, excluir o percentual decorrente do
reajuste por mudança de faixa etária, cabendo, apenas, o reajuste
anual no percentual de 12,74%, devendo ser compensado o crédito
resultante da quantia paga a maior nas prestações sucessivas até a
liquidação da diferença entre o que a recorrida pagou a maior a
partir dos reajustes equivocadamente lançados.
Diante do
exposto, nego provimento ao recurso, condenando a recorrente no
pagamento de custas processuais e honorários advocatícios de R$
300,00 (trezentos reais), nos termos do artigo 55 da LJE c/c artigo
20 § 4º, do Código de Processo Civil.
É como voto.
ADENDO:
O superior
Tribunal de Justiça continua mantendo o mesmo entendimento conforme
demonstra o recentíssimo aresto abaixo:
AgRg no REsp 1336758 / RS
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2012/0163258-3
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2012/0163258-3
Relator(a) Ministro SIDNEI BENETI (1137)
Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA
Data do Julgamento 20/11/2012
Data da Publicação/Fonte DJe 04/12/2012
Ementa
AGRAVO
REGIMENTAL. PLANO DE SAÚDE. REAJUSTE DE MENSALIDADE EM RAZÃO DE
MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA. OMISSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO.
INEXISTÊNCIA. BENEFICIÁRIO. LEGITIMIDADE ATIVA. CLÁUSULA
CONSIDERADA ABUSIVA.
1.- Consoante dispõe o artigo 535 do CPC, destinam-se os Embargos de Declaração a expungir do julgado eventuais omissão, obscuridade ou contradição, não se caracterizando via própria ao rejulgamento da causa.
2.- Ainda que o plano de saúde seja contratado por intermédio de terceiro, que é o estipulante, o beneficiário é o destinatário final do serviço, sendo portanto, parte legítima para figurar no polo ativo de ação que busque discutir a validade das cláusulas do contrato.
3.- Desse modo, considerando que na estipulação em favor de terceiro, tanto o estipulante quanto o beneficiário podem exigir do devedor o cumprimento da obrigação (CC, art. 436, parágrafo único), não há que se falar, no caso, na necessidade de suspensão do presente feito até o julgamento final da ação proposta pela estipulante em nome de todos os contratados.
4.- A jurisprudência deste Tribunal consagrou o entendimento de ser abusiva a cláusula contratual que prevê o reajuste da mensalidade de plano de saúde com base exclusivamente em mudança de faixa etária, mormente se for consumidor que atingir a idade de 60 anos, o que o qualifica como idoso, sendo vedada, portanto, a sua discriminação.
5.- Agravo Regimental improvido.