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17 novembro 2010

COMENTÁRIOS ACERCA DA RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL, PRÉ-CONTRATUAL E PÓS-CONTRATUAL-2

Parte 2/4

Leonardo de Faria Beraldo
Advogado; Professor; Mestre em Direito pela PUC Minas. Especialista em Processo Civil; Membro da Lista de Árbitros e do Conselho Deliberativo da CAMARB – Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil.

3 Outras Questões Envolvendo as Responsabilidades Contratual e Extracontratual
3.1 Ainda Há Necessidade de se Diferenciar Estas Duas Espécies de Responsabilidade Civil?
A velha classificação da responsabilidade civil em contratual e extracontratual é uma necessidade ou um capricho?
A resposta, a nosso ver, é: uma necessidade, pelo menos enquanto não houver uma reforma legislativa deixando bem claras as coisas. Isto porque, como vimos no item anterior, várias são as diferenças entre as duas espécies clássicas de responsabilidade civil.
Não bastasse, existe uma questão muito importante na responsabilidade contratual que não seria possível, a princípio, existir na responsabilidade aquiliana. Trata-se da cláusula limitativa de responsabilidade 18, pela qual as partes podem acordar em limitar, atenuar ou até mesmo excluir o dever de indenizar em certos casos. Na responsabilidade extracontratual, apesar de existir um dever geral de não lesar, é sabido que não existe contrato, logo, não seria possível existir tal cláusula. Imperioso registrar que, em se tratando de relações de consumo, é expressamente vedada a estipulação destas cláusulas, haja vista o art. 25 do Código de Defesa do Consumidor. Todavia, caso houvesse a unificação das duas espécies, ainda assim seria possível que a lei ressalvasse a possibilidade da conservação da cláusula limitativa de responsabilidade.
Assim sendo, concluímos pela necessidade da manutenção da separação tradicional entre responsabilidade civil contratual e extracontratual, principalmente em se tratando de contratos atípicos. Porém, importante registrar que, no direito comparado, há uma forte tendência em se unificá-las, como, por exemplo, na Suíça e na Alemanha, dentre outros 19.
3.2 E Quando as Duas Espécies se Confundirem? Qual das Duas Será Aplicada?
Quando, diante de um caso concreto, o magistrado estiver na dúvida sobre qual espécie de responsabilidade civil ocorreu, se contratual ou aquiliana, como deverá proceder? Essa questão foi muito bem colocada pelo português Mário Júlio de Almeida Costa 20. Ele fala em concurso de responsabilidade contratual e extracontratual (mas que fique bem claro: não se trata da hipótese de quando um mesmo fato produza dois danos, ou seja, responsabilidade contratual em relação a uma pessoa e responsabilidade extracontratual em face de um terceiro).
Ele se preocupa se, no caso concreto, poderá haver a possibilidade de a vítima deixar de receber algum valor se for aplicada a responsabilidade contratual ou vice-versa.
Mário Júlio de Almeida Costa é contra a chamada acção híbrida, que vem a ser uma ação na qual a pessoa poderá fazer uso das normas mais benéficas das responsabilidades contratual e extracontratual, afastando as que repute desvantajosas. Ele dá o exemplo de o credor se beneficiar do ônus da prova que recai sobre o devedor (contratual) e da solidariedade passiva (extracontratual).
O autor então parte para a conclusão de que, na prática, qualquer uma das duas poderia muito bem resolver o problema. E finaliza invocando o princípio da autonomia privada, "segundo o qual compete às partes fixar a disciplina que deve reger as suas relações, com ressalva dos preceitos imperativos" 21.
Portanto, se em uma hipótese for possível ter um mesmo fato como sendo ilícito contratual ou extracontratual, deve-se tê-lo como contratual, haja vista que o regime da responsabilidade contratual consome/absorve o da extracontratual (o que seria o chamado princípio da consunção). Exemplo corriqueiro no dia-a-dia forense é o acidente rodoviário envolvendo empresas de ônibus. Destarte, com fulcro no princípio da consunção, deve-se aplicar as regras da responsabilidade contratual.
Desta forma, não há como descordar do referido jurista, seja pela coerência do raciocínio, seja pela precisão dos fundamentos e, ainda, pela ausência de uma alternativa que seja melhor.
4 Sobre A Responsabilidade Contratual
Neste item, muito breves serão os comentários, principalmente pela impossibilidade de se discorrer, em artigo doutrinário, sobre tema tão vasto.
Em suma, haverá descumprimento contratual sempre que uma das partes não cumprir a sua obrigação no prazo e modo previamente avençados. Evidente que se o não cumprimento decorrer de alguma das causas excludentes de ilicitude, v.g., o caso fortuito, a força maior, o fato de terceiro ou a culpa exclusiva da vítima, não haverá o dever de reparação. Também importante lembrar que o inadimplemento ou o cumprimento inexato causados pela ausência de boa-fé do outro contratante não devem ser passíveis de punição ao suposto inadimplente.
Destarte, como já dito anteriormente, para que haja a responsabilidade civil contratual mister sejam comprovados três requisitos, quais sejam: i) o não cumprimento da obrigação; ii) o dano sofrido e iii) o nexo de causalidade entre este dano sofrido e o não cumprimento da obrigação. Observem que o elemento culpa é completamente irrelevante para a aferição da responsabilidade negocial.
E, dentre esses três requisitos, temos que apenas o primeiro deles merece maior atenção: o não cumprimento da obrigação. Ora, afinal de contas, quando é que uma obrigação é cumprida e quando é que ela é descumprida?
Para responder ao questionamento acima proposto, basta verificar qual é o objeto do contrato e fazer uma interpretação restritiva, por óbvio. E é claro que os arts. 112 e 113 do Código Civil devem ser observados. Assim, se a obrigação não foi cumprida da forma, modo e tempo avençados, haverá o dever de reparar o dano, seja por meio de tentativas de sanar o vício, seja por meio de perdas e danos, ou, até mesmo, mediante o uso das tutelas inibitória, específica e de remoção do ilícito, com base no art. 461 do Código de Processo Civil.
No entanto, há um outro ponto sobre o qual devem ser tecidos alguns comentários, tendo em vista que a jurisprudência, por muitas vezes, faz confusão com as chamadas obrigações de meio e obrigações de resultado. E, fazer a distinção entre ambas é de suma importância para a apreensão do tema ora debatido.
A obrigação de resultado é aquela em que "a realização da prestação debitória depende de fatores que o devedor tem a obrigação de conhecer e controlar" 22. Em outras palavras, sempre que estivermos diante de uma obrigação de resultado é porque o devedor assumiu a obrigação de atingir um resultado certo e determinado. Os exemplos mais simples seriam: i) o do programador de computador que se obriga a criar um software da forma como o cliente deseja; ii) o transportador de pessoas ou coisas que se obriga a transportar a pessoa ou a coisa, de um lugar a outro, incólume; iii) o construtor ou empreiteiro que se obriga a construir ou reformar um móvel ou imóvel de acordo com as especificações e determinações do dono da obra ou do projeto por ele apresentado.
Já a obrigação de meio existe quando "o devedor apenas se obriga a colocar a sua habilidade, técnica, prudência e diligência no sentido de atingir um resultado, sem, contudo, vincular-se à obtenção deste" 23. Os exemplos são a atividade dos advogados e dos médicos, que não têm como garantir ao cliente ou paciente a obtenção de êxito no processo ou no tratamento médico. Contudo, devem ser o mais diligentes possíveis para tentar alcançar o resultado almejado pelo contratante.
A grande controvérsia que existe hoje na jurisprudência, e até na doutrina, é sobre a natureza jurídica da responsabilidade civil do cirurgião plástico. Seria ela obrigação de resultado ou de meio?
A jurisprudência dominante vem entendendo que existem duas espécies de cirurgia plástica: a reparadora (decorrente de queimaduras, acidentes com automóveis, acidentes do trabalho etc., ou seja, destina-se a corrigir defeitos adquiridos ou congênitos) e a embelezadora (serve para reparar pequenos defeitos, mas apenas para que o paciente se sinta melhor com seu próprio corpo, como ocorre nas cirurgias de aumento e diminuição de seios, ou então, para amoldar o nariz). Deste modo, as cirurgias reparadoras são uma necessidade, enquanto que as embelezadoras não. Assim, apenas quando a cirurgia plástica tiver o caráter eminentemente embelezador é que a obrigação seria de resultado 24.
Data venia, não podemos comungar com este entendimento. Quando se estuda com mais profundidade as obrigações de resultado verificamos facilmente que "é inadequado considerar de resultado uma prestação obrigacional que se desenvolve em áreas de imprevisibilidade, e, consequentemente, em presença do fator álea" 25. Neste mesmo sentido a autora ratifica que "a referida obrigação destina-se, única e exclusivamente, a searas onde não exista o fator ‘álea’, ou seja, o imprevisível, o fortuito" 26.
Ora, apenas para dar um exemplo, se há uma área que ainda é repleta de incertezas e de fatos sem explicações cientificamente concretas é a medicina. A formação de quelóide na pele ainda não está completamente esclarecida. Assim sendo, é ilegal e absurdo querer imputar ao cirurgião plástico a obrigação de saber se determinado paciente vai ou não desenvolver quelóide após a cirurgia plástica.
Também é difícil saber se o paciente vai cumprir à risca as orientações pós-operatórias determinadas pelo médico. E, caso não as cumpra, é possível que o resultado almejado não aconteça.
Por outro lado, o cirurgião plástico que prometer resultados ao seu paciente deve ser punido, pois agiu contrariamente aos ditames da boa-fé objetiva. Deve ser condenado a reparar os danos materiais, morais e até mesmo estéticos causados na vítima.
Portanto, com base nestes expendimentos, fica claro que a aferição da responsabilidade contratual depende da presença dos requisitos acima elencados e, também, da natureza da obrigação, isto é, se de meio ou de resultado.
Notas do Autor:
18 - Para maior aprofundamento no tema, confira: DIAS, José Aguiar. Cláusula de não indenizar: chamada cláusula de irresponsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 1947. MONTEIRO, Antônio Pinto. Cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2003.
19 - TOLSADA, Mariano Yzquierdo. La unificación de la responsabilidad civil contractual y extracontractual (visión europea). In: Responsabilidad por daños en el tercer milenio. Atílio A. Alterini (coord.). Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997. pp. 105-111.
20 - Direito das obrigações. 9ª ed. Coimbra: Almedina, 2001. pp. 499-506.
21 - Op. cit., p. 504.
22 - Autor e texto desconhecidos.
23 - DIREITO, Carlos Alberto Menezes; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo Código Civil. v. XIII. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 152.
24 - “CIVIL. CIRURGIA. SEQUELAS. REPARAÇÃO DE DANOS. INDENIZAÇÃO. CULPA. PRESUNÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. 1 - Segundo doutrina dominante, a relação entre médico e paciente é contratual e encerra, de modo geral (salvo cirurgias plásticas embelezadoras), obrigação de meio e não de resultado. 2 - Em razão disso, no caso de danos e sequelas porventura decorrentes da ação do médico, imprescindível se apresenta a demonstração de culpa do profissional, sendo descabida presumi-la à guisa de responsabilidade objetiva. 3 - Inteligência dos arts. 159 e 1.545 do Código Civil de 1916 e do art. 14, § 4º do Código de Defesa do Consumidor. 4 - Recurso especial conhecido e provido para restabelecer a sentença” (STJ, 4ª T., REsp n. 196.306/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 03.08.2004, DJ 16.08.2004, p. 261). “AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - RELAÇÃO DE CONSUMO - CIRURGIA PLÁSTICA REPARADORA – OBRIGAÇÃO DE MEIO - INSUCESSO NA TENTATIVA DE RETIRADA DE FRAGMENTO VÍTREO DA FACE DO PACIENTE - ESCUSABILIDADE. Para que se condene alguém ao pagamento de indenização por dano moral ou material, é preciso que se configurem os pressupostos ou requisitos da responsabilidade civil, que são o dano, a culpa do agente, em caso de responsabilização subjetiva e o nexo de causalidade entre a atuação deste e o prejuízo. Versando a lide sobre responsabilidade civil do médico, por fato do serviço prestado, deve se observar o disposto no art. 14, § 4º, da Lei nº 8.078/90, o qual estabelece que ‘a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais, será apurada mediante a verificação de culpa’. A obrigação assumida por médico que realiza cirurgia plástica reparadora é de meio, devendo o profissional observar a melhor técnica para a realização do procedimento e buscar melhorar o aspecto da aparência do paciente, contudo, sem garantia o resultado satisfatório. Sendo reconhecida pela literatura médica a extrema dificuldade de se proceder a retirada de pequenos fragmentos de vidro incrustados na face de paciente, há de considerar-se escusável o fato de, após a realização da cirurgia realizada pelo requerido, terem permanecido corpos estranhos incrustados sob a pele do requerente” (TJMG, 17ª C., Ap. n. 1.0024.03.038091-9/001, Rel. Des. Eduardo Mariné da Cunha, j. 03.08.2006). “Apelação cível. Ação de indenização por dano moral e estético. Cicatriz traumática permanente no dorso nasal da autora oriunda de uma peça de construção que caiu no seu rosto, ao entrar no estabelecimento da ré, responsável pela obra de reforma da fachada do prédio. Não houve renúncia da autora ao direito que se funda a ação pelo fato do ingresso da ação de indenização por dano material no Juizado Especial Cível. Foi realizada cirurgia plástica corretiva, mas sem sucesso total. A obrigação do cirurgião plástico, no caso em tela, é de meio e não de resultado, visto que a cirurgia plástica realizada foi reparatória e não meramente estética. Assim, a obrigação de indenizar é da ré, causadora direta do dano, não se perquirindo aqui da responsabilidade do médico, que sequer é parte na presente relação processual” (TJRS, 6ª C., Ap. n. 70011918513, Rel. Des. Ney Wiedemann Neto, j. 20/04/2006). “RESPONSABILIDADE CIVIL. CIRURGIA PLÁSTICA REPARATÓRIA. OBRIGAÇÃO DE MEIO. INFECÇÃO HOSPITALAR. DANO MATERIAL. AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL. No exame do responsabilidade civil médica deve a abordagem ser feito sob um duplo enfoque: o erro médico e a iatrogenia. A medicina moderna, ao conceituar a heterogenia como todo dano causado ao paciente pela ação médica ou pelos males provocados pelo tratamento prescrito, estanca de forma direto o ingresso no campo da responsabilidade civil, uma vez que os profissionais médicos, que cuidam da saúde alheia, assumem uma obrigação de meio com a finalidade de aplicar a arte, perícia e zelo que detêm, e que seus pacientes presumem, cuja aferição de eventual desvio não vai além da reparação terapêutica. Nos contratos de prestação de serviços médicos, de acordo com o pactuado, as obrigações assumidas pelos profissionais de saúde são diversificadas: umas, impondo um resultado determinado (obrigação de resultado) e outras, a simples adoção de um certo número de diligências (obrigação de meio). Em geral, na obrigação de meio o médico se propõe apenas a empregar os cuidados e técnicas, de acordo com as aquisições da Ciência, durante o tratamento do paciente. No obrigação de resultado, ao revés, o devedor se obriga a alcançar positivamente determinado fim. Busca-se especificamente um resultado estético, justificando, assim, o custo e os riscos do tratamento. A obrigação assumida pelo réu, portanto, não pode ser enquadrada como de resultado, uma vez que teve o caráter eminentemente reparatório sem qualquer compromisso com a beleza estética do paciente. Não responde o médico pelas eventuais falhas do hospital, ao qual cabe a obrigação de, como hospedeiro, responder pelas consequências do serviço deficiente e/ou mal prestado” (TJRJ, 9ª C., Ap. n. 2003.001.18313, Rel. Des. Laerson Mauro, j. 05.08.2004).
25 - GIOSTRI, Hildegard Taggesell. A responsabilidade civil dos profissionais médicos na área da cirurgia plástica. In: Grandes temas da atualidade: responsabilidade civil. v. 6. Eduardo de Oliveira Leite (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 326.
26 - GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Op. cit., p. 299.
Extraído de Editora Magister/doutrina

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