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16 novembro 2010

ROLETA RUSSA

 Imagem do folder de divulgação do filme "O dia em que a Terra parou" , com Keanu Reeves, da Fox Films.


Chico Anes
Engenheiro Eletrônico, com MBA em Marketing e Administração de Empresas. Escritor, amante das trilhas e cachoeiras, estudioso de alquimia e filósofo de fogueira.


Vivemos como formigas. Movemo-nos freneticamente dentro do formigueiro, sem saber que lá fora, um pé tapa o sol e desce sobre nossas cabeças operárias, acabando com todo o ir e vir aqui embaixo. Eu sou esse pé.
Minha vida esgotou-se quando eles chegaram. Até então eu vivia como qualquer homem, odiando meus semelhantes, tentado a arrancar as tripas do vizinho todas as vezes que era obrigado a dividir o elevador com ele pela manhã e sentir o cheiro de perfume barato. Vivia sonhando com um gás venoso que extinguisse a todos. Quem de nós não desejou um dia, mesmo que de maneira breve, ter o poder de acabar com toda a humanidade? Eu desejei por várias, várias vezes, mas sem conseguir os meios de realizar essas vontades. Sempre a mesma coisa: acordava calmo, e, pelos mais diferentes e legítimos motivos, num crescente ao longo do dia, assaltavam-me a irritação, a raiva, o ódio, os planos alucinóticos de julgar, condenar e executar a pena de morte global; depois, à noite, vinha o sono e seus vapores frustrantes, e de novo a calma.
Isso até eles chegarem.
Aconteceu logo após o anúncio da bomba de matéria escura. O homem finalmente criara a arma definitiva! Nada de fogo e trovões. O apocalipse carecia nova edição. O fim da vida na Terra chegaria com um abismo de negritude infinita.  O Armagedom viria com a matéria escura a engolir partículas, ondas, leis; o rigoroso apagar das luzes de nosso teatro de espectros. A bomba traria a Nova Ordem mundial, pregava a ONU, a Paz Negra entre os homens e boa e má vontade!
Como todo discurso oracular, também esse continha meia verdade: sobreveio realmente a tal Nova Ordem, a Paz Negra, mas não foi instaurada pelo temor ao dispositivo assassino. Foram eles que a impuseram.
Aportaram na Terra sem aviso ou preparativos, a imensa embarcação estelar flutuando sobre nossas cabeças, fantasmagórica, a versão alienígena da barca de Caronte adornada para transportar a todos nós, recém-mortos, ao inferno prometido. A nave chegou ocultando o sol em zênite, antecipando a permanente escuridão que se mesclaria à alma humana.
E, naquele dia, acreditávamos mesmo que o fim do mundo havia chegado com os ET´s: o choro e o riso eram uma coisa só. A fé e a razão, depois de secular duelo, largaram as armas e reconciliaram-se como crianças. Covardes e fortes abraçaram-se num único lamento. Quem eram aqueles seres? O que queriam de nós? O que fariam de nós? Com que direito plainavam em nossos céus, extinguindo nossa mitologia, desmentindo nossas crenças? O medo da escravidão inoculou-se imediatamente em todos os corações. A longa experiência humana em um passado de invasões e escravidão não deixava dúvidas sobre o destino dos povos mais fracos. E olhando para a nave imponente, não tínhamos dúvidas de quem eram os conquistadores, e quem era a caça.
A notícia viajou pelo planeta. Os jornais informavam que cada grande cidade do mundo tinha, suspensa sobre as cabeças aterrorizadas de seus habitantes, sua própria guilhotina espacial.
Milhares de armas foram apontadas para o céu, enquanto políticos e médiuns eram trazidos para negociar pela humanidade. Se eles falhassem, se as armas falhassem, ainda tínhamos a terrível bomba de matéria escura.
Percebi que não mais receava a invasão; o medo inicial que sentira havia desaparecido. Nunca gostei da idéia de morrer sozinho, mas se no meu último dia de vida pudesse levar comigo toda a Terra, iria sem receio. A morte coletiva não me assustava.
Lembro-me que foi ao entardecer quando a espaçonave falou. Recordo-me com precisão do horário, pois desde que o homem aprendeu a articular palavras, jamais o planeta conheceu silêncio tão profundo. Todas as bocas humanas se calaram, em todas as partes do mundo. Junto com a voz alienígena, um holograma revelou-se no céu. Deus enfim mostrava sua face! Confesso que o achei incomodamente parecido com nossa própria raça. Em quase tudo éramos parecidos, mas principalmente os olhos: pequenos, próximos um do outro, bem no centro do crânio, só viam o que estava diretamente à frente. Impedidos de captar o supérfluo, e com a mente alimentada apenas pelo essencial, possivelmente aqueles olhos eram diretos nas observações, avessos à filosofia. Exatamente como nós...
E assim eles se mostraram em seu primeiro e único discurso, ouvido por cada nação da Terra em seu próprio idioma.
Estavam aqui por causa da bomba de matéria escura. Acompanhavam o desenvolvimento do homem desde sua transmutação símia. Conheciam nossa infantil vocação à temeridade, anotaram nossa displicência com a vida e a estranha e exclusiva capacidade ao suicídio.  Registraram nossa descoberta de como produzir fogo da madeira, e depois do átomo. Riram de nossa prepotência ao pregarmos o mimetismo divino. Disseram ainda que continuariam apenas como observadores, divertindo-se com nosso engatinhar evolutivo, se não fosse a nova arma. A explosão de matéria escura afetaria o equilíbrio da Via Láctea, com conseqüências imprevisíveis às vidas extraterrestres que ignorávamos. Por isso estavam aqui. Vieram manter nossa inconseqüência presa a este planeta.
A mensagem foi clara, e de tanto ser repetida pelos meios de comunicação, tornou-se mais conhecida que qualquer ladainha antiga, mais sussurrada que as ininterruptas orações de desespero. Era horrivelmente direta e dizia:
A bomba de matéria escura será desativada e destruída.
Qualquer povo que tentar construir uma nova arma será exterminado.
Para evitar que as fronteiras terrenas ou a hierarquia entre sub-raças humanas instiguem tentativas de novos artefatos bélicos, será instalada em cada cidade do planeta, da maior delas ao minúsculo vilarejo, um pedestal com cerca de um metro de altura, lapidado em metal desconhecido; no topo do pedestal haverá uma redoma transparente protegendo o botão do Julgamento: o acionador do Armagedom.
Qualquer ser humano terá o direito de caminhar até o pedestal, abrir a cúpula e apertar o botão. Imediatamente uma descarga elétrica matará quem o houver acionado. Mas haverá um – apenas um pedestal –, desconhecido por todos deste planeta, que terá a capacidade de fulminar não apenas quem se dispuser a acionar a tecla mortífera: esse único dispositivo terá o poder de exterminar toda a raça humana!
Qualquer tentativa de impedir quem quiser tentar a sorte com o botão será punida com a morte. Depois de acionado qualquer um dos dispositivos, um algoritmo de função aleatória mudará a ordem dos pedestais, e novamente ignorar-se-á qual deles poderá destruir apenas o homem que o ativou ou todo o planeta.”
Para garantir a ordem, os alienígenas estariam vigilantes!
Após o breve pronunciamento, as naves se foram, flutuando como catedrais profanas, levando embora os novos deuses, mas deixando aqui na Terra o terror materializado em milhares e milhares de pedestais, lápides metálicas com o epitáfio a toda raça humana.
Desnecessário descrever a confusão que se seguiu àqueles dias. Os militares enviaram tropas para cercarem os cilindros, mas todas foram dizimadas. Os governos construíram enormes muros ao redor dos pedestais, apenas para verem as pedras compactas virarem poeira e os construtores desaparecerem. Nada adiantava. Não havia meios de isolar aquelas armas de tambores carregados: milhares de balas apontadas para a cabeça de um só temerário por vez, apenas uma destinada ao coração de toda a humanidade.
O homem deveria aprender a viver com aquele absurdo.
O primeiro a tentar extinguir nossa espécie foi um jovem. Havia brigado com a namorada. Acreditava que todos deveriam pagar, não se sabe bem o quê, já que a carta que deixou não foi muito bem escrita. Talvez ele acreditasse que todos morreriam com ele e não sobraria ninguém para a leitura. Achou que teria a sorte de apertar o botão fatal, levando à morte todos os homens, não somente a ele próprio. Estava errado.
O segundo foi um doente terminal.
O terceiro um louco.
Nos primeiros anos o sono fugiu das noites. Ninguém mais conseguia dormir sem acordar na madrugada, suando, afobado, gritando aos algozes oníricos que não apertassem o maldito botão. As ruas eram povoadas por zumbis, que evitavam trocas de olhares, temendo ver no vizinho seu futuro assassino, aquele que encontraria o pedestal certo.
Mas o homem é espécie vencedora pela sua capacidade de adaptação, e enquanto templos novos eram construídos para novos deuses, leis impunham futuros comportamentos. Bebida alcoólica, drogas, televisões, ou qualquer droga que alterasse o estado normal de consciência foram proibidas; a punição para a transgressão: a morte! A loucura foi declarada doença-crime: a morte era a pena! Roubo, discriminação, assassinato, adultério, ou qualquer ato que provocasse desespero ou intenção de vingança era castigado com a morte, sumariamente. Acabou-se a pobreza, assim como a riqueza. Aos poucos os bens foram redistribuídos, e a cada dia tornamo-nos mais e mais iguais, em tratamento, em oportunidades, em sonhos. Não poderia haver motivos para alguém desejar apertar um dos abomináveis botões.
E realmente as tentativas foram diminuindo, escasseando, até pararem de vez.
O homem passou a viver comodamente, maquinalmente, desempenhando suas funções e sendo recompensado com igualdade absoluta; tal como formigas...
E neste nosso grande formigueiro, sem mais a possibilidade de acumular ouro ou poder, até as fronteiras foram apagadas.
Apenas eu continuei com meu desprezo por todos os homens, com minha vontade secreta de arrancar as tripas do vizinho, mas agora tendo a disposição o tal gás venoso que extinguisse a vida. Ah! Cada célula de meu corpo, educada pela amargura, consumia-se, e eu definhava dia a dia. Por quê? Há motivo para um sentimento tão primitivo quanto o ódio? Ou há muitos? Talvez por eu haver sido clonado? O desgastado motivo edipiano? Sim, fui gerado de um pedaço de pele. Em minha concepção não existiu o pulsar contínuo, significado da vida. Não existiram as contrações mútuas de meu pai e minha mãe, dele para deixá-la, dela para sugá-lo; nós três vibrando em unicidade. Fora do meu corpo só o vidro inerte, sem calor nem cumplicidade. Eu fui gerado sem esforço, sem apoteoses. Somente continuei uma tragédia; a tragédia de meu pai com seu falo egocêntrico. Talvez seja isso. Talvez. Ou quem sabe seja apenas ruindade; nata, irremediavelmente humana, mesmo que clonada.
Preciso apertar aquele botão. Sei que é ele o botão especial. Venho-o observando há tempos. Desde a última roleta aleatória percebi nele uma sutil diferença: ele tenta se disfarçar. Não, não estou louco. Por vezes passei ao lado do pedestal sem notá-lo, assustando-me por quase haver me esbarrado nele e não o ter percebido. É como se ele vestisse das cores evanescentes da ilusão, confundindo-se com o ambiente, ondeando quando tentamos fixá-lo com os olhos. É ele. Sei que é. Ou por que ele tentaria se esconder?
Caminho até o pedestal e abro a redoma.
Ninguém me impede.
Como as formigas, meus semelhantes vêem apenas a fila. Como as formigas, em seu incessante ir e vir, esquecem-se da sombra assassina tampando o sol, descendo sobre o formigueiro. Assim, onipotente como o Deus antigo, preparo o pé, e o deixo cair sobre a cabeça de todos.
Extraído do site Contos Fantásticos.

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