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29 novembro 2010

SUCESSÃO DO COMPANHEIRO. O POLÊMICO ARTIGO 1790 DO CC E SUAS CONTROVÉRSIAS PRINCIPAIS-1


Flávio Tartuce
Advogado e Consultor Jurídico em São Paulo; Professor da EPD e do Curso FMB; Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP; Doutorando em Direito Civil pela USP.

(Estudo dedicado à Prof. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka).

Um dos dispositivos mais criticados e comentados da atual codificação privada é o relativo à sucessão do companheiro, merecendo destaque especial para os devidos aprofundamentos:
"Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança."
Já de início, a norma está mal colocada, introduzida entre as disposições gerais do Direito das Sucessões. Isso se deu pelo fato do tratamento relativo à união estável ter sido incluído no CC/02 nos últimos momentos de sua elaboração. Pelo mesmo fato, o companheiro não consta da ordem de vocação hereditária, sendo tratado como um herdeiro especial.
Pois bem, como primeira premissa para o reconhecimento do direito sucessório do companheiro ou companheira, o caput do comando enuncia que somente haverá direitos em relação aos bens adquiridos onerosamente durante a união. Desse modo, comunicam-se os bens havidos pelo trabalho de um ou de ambos durante a existência da união estável, excluindo-se bens recebidos a título gratuito, por doação ou sucessão. Deve ficar claro que a norma não está tratando de meação, mas de sucessão ou herança, independentemente do regime de bens adotado. Por isso, em regra, pode-se afirmar que o companheiro é meeiro e herdeiro, eis que, no silêncio da partes, vale para a união estável o regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725 do CC).
Surge, como primeira polêmica, problema referente aos bens adquiridos pelo companheiro a título gratuito (v. g. doação). Se o companheiro falecido tiver apenas bens recebidos a esse título, não deixando descendentes, ascendentes ou colaterais, os bens devem ser destinados ao companheiro ou ao Estado? Filia-se ao entendimento de destino ao companheiro, pela clareza do art. 1.844 do CC, pelo qual os bens somente serão destinados ao Estado se o falecido não deixar cônjuge, companheiro ou outro herdeiro. Na famosa tabela doutrinária elaborada pelo Professor Francisco José Cahali, esse parece ser o entendimento majoritário, eis que exposta a dúvida em relação à possibilidade de o companheiro concorrer com o Estado em casos tais. A maioria dos doutrinadores respondeu negativamente para tal concorrência, caso de Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Mario Roberto de Faria, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Sílvio de Salvo Venosa; além do presente autor. Por outra via, sustentando que o companheiro deve concorrer com o Estado em casos tais: Francisco José Cahali, Giselda Hironaka, Inácio de Carvalho Neto, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira e Zeno Veloso 1.
Ato contínuo de estudo, nota-se que o art. 1.790 do CC reconhece direitos sucessórios ao convivente em concorrência com os descendentes do autor da herança. Nos termos do seu inciso I, se o companheiro concorrer com filhos comuns (de ambos), terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho. Por outra via, se concorrer com descendentes só do autor da herança (descendentes exclusivos), tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles. O equívoco é claro na redação dos incisos, uma vez que o primeiro faz menção aos filhos; enquanto que o segundo aos descendentes. Na esteira da melhor doutrina, é forçoso concluir que o inciso I também incide às hipóteses em que estão presentes outros descendentes do falecido. Nesse sentido, o Enunciado nº 266 CJF/STJ da III Jornada de Direito Civil: "Aplica-se o inciso I do art. 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns, e não apenas na concorrência com filhos comuns". Na tabela doutrinária de Francisco Cahali, tal conclusão é quase unânime, assim pensando Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Francisco Cahali, Giselda Hironaka, Inácio de Carvalho Neto, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, além do presente autor. Em sentido contrário, pela aplicação do inciso III do art. 1.790 do CC, em situações tais, apenas Maria Berenice Dias e Mário Roberto Carvalho de Faria 2.
Situação não descrita na norma refere-se à sucessão híbrida, ou seja, caso em que o companheiro concorre, ao mesmo tempo, com descendentes comuns e exclusivos do autor da herança. Não se olvide que a expressão sucessão híbrida foi cunhada por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, professora titular da Universidade de São Paulo 3. Sobre tal problemática, existem três correntes fundamentais bem definidas:
"1ª Corrente – Em casos de sucessão híbrida, deve-se aplicar o inciso I do art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem comuns, já que filhos comuns estão presentes. Esse entendimento é o majoritário na tabela doutrinária de Cahali: Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Francisco Cahali, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Silvio de Salvo Venosa.
2ª Corrente – Presente a sucessão híbrida, subsume-se o inciso II do art. 1.790, tratando-se todos os descendentes como se fossem exclusivos (só do autor da herança). Este autor está filiado a tal corrente, assim como Gustavo René Nicolau, Maria Helena Diniz, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso. Ora, como a sucessão é do falecido, em havendo dúvida por omissão legislativa, os descendentes devem ser tratados como sendo dele, do falecido. Anote-se que julgado do TJSP adotou essa corrente, concluindo que entender de forma contrária violaria a razoabilidade: ‘INVENTÁRIO. PARTILHA JUDICIAL. PARTICIPAÇÃO DA COMPANHEIRA NA SUCESSÃO DO DE CUJUS EM RELAÇÃO AOS BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA DA COMPANHEIRA COM DESCENDENTES COMUNS E EXCLUSIVOS DO FALECIDO. HIPÓTESE NÃO PREVISTA EM LEI. ATRIBUIÇÃO DE COTAS IGUAIS A TODOS. DESCABIMENTO. CRITÉRIO QUE PREJUDICA O DIREITO HEREDITÁRIO DOS DESCENDENTES EXCLUSIVOS, AFRONTANDO A NORMA CONSTITUCIONAL DE IGUALDADE ENTRE OS FILHOS (ART. 227, § 6º, DA CF). APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO ART. 1.790, II, DO CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE. Solução mais razoável que preserva a igualdade de quinhões entre os filhos, atribuindo à companheira, além de sua meação, a metade do que couber a cada um deles. Decisão reformada. Recurso provido.’ (TJSP, AI. 994.08.138700-0, Acórdão nº 4395653, São Paulo, 7ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Álvaro Passos, j. 24.03.10, DJESP 15.04.10. No mesmo sentido: TJSP, AI 652.505.4/0, Acórdão nº 4068323, São Paulo, 5ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Roberto Nussinkis Mac Cracken, j. 09.09.09, DJESP 05.10.09)
3ª Corrente – Na sucessão híbrida, deve-se aplicar fórmula matemática de ponderação para solucionar o problema. Entre tantas fórmulas, destaca-se a Fórmula Tusa, elaborada por Gabriele Tusa, com o auxílio do economista Fernando Curi Peres 4. A fórmula é a seguinte:
X = _________2 (F + S)_____________ x H 2 (F + S)2 + 2 F + S
C = __2F + S__ x X 2 (F + S)
Legenda
X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos.
C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.
H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente.
F = número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
NOTAS DO AUTOR:

1 - A famosa tabela doutrinária pode ser encontrada em: CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 189-192; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 228-229. v.. 20; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil – Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: GEN/Método, 2010. p. 285. v. 6.
2 - CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 189-192; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 228-229. v. 20; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. – Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: GEN/Método, 2010. p. 285. v. 6.
3 - Veja-se em: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 20.
4 - Ver em: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Comentários ao Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo (Coord.). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 66-67. v. 20; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil – Direito das Sucessões. 3. ed. São Paulo: GEN/Método, 2010. p. 237. v. 6.
Extraído de Editora Magister/doutrina

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