Marcos Rodrigues
Engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.
Flávio Augusto era um advogado bem-sucedido. Homem culto, trabalhava pesado no prestigioso escritório Varella, Fagundes, Lacerda e Morelli Advogados. Tinha competência e paciência. Era equilibrado e muito considerado. Além do mais, era profissional de alta produtividade, diziam seus colegas. Tinha um hábito entranhado, inofensivo à luz do que se via no Varella, Fagundes, Lacerda e Morelli Advogados. No meio da tarde - um pequeno recreio -, lia suas abobrinhas web: mensagens de esperança e pânico, mulher pelada, piadas, correntes de salvação e algumas pequenas sacanagens. Certa tarde, veio o link: se você fosse cachorro, que cachorro seria? Ele achou aquilo intrigante. Sem a menor necessidade, mas com um decidido clique, foi descobrir que cachorro seria. Por seu porte, sobriedade, serenidade e humor imaginou-se um Labrador. Talvez um Golden Retriever ou até mesmo um Pastor Alemão. Tinha-se em boa conta.
Intrigado, foi respondendo às perguntas. Cada qual apresentava uma lista de dez opções. As perguntas eram sobre preferências por livros, escritores, música, compositores, cantores, cantoras, pintores, atores e atrizes. Por fim, esportes, essências e sabores. As alternativas eram sofisticadas. Supôs coisa séria. Foi respondendo e imaginando qual seria o processo por detrás. Decerto haveria correlações de aspecto e personalidade. Quem sabe algumas psicóticas? Talvez algumas inferências sobre agilidade, combatividade, inteligência e fidelidade. Respondeu tudo com muito cuidado e logo e veio a resposta: Cocker Spaniel.
Que decepção! Nunca se imaginara um Cocker Spaniel. Nunca se sentira de companhia. Nem carente, do olhar caído. Tampouco intolerante à solidão, incapaz de ficar consigo! Pensando ter havido engano, respondeu de novo, com pequenas modificações. Deu Cocker Spaniel outra vez!
Voltou a trabalhar, mas ficou com aquilo na cabeça. Por que aquelas respostas o definiriam como Cocker Spaniel? Talvez tivesse uma imagem errada de si. Não é assim com todo mundo? O assunto não saiu de sua cabeça. Em poucos dias estava de volta ao questionário, com uma nova atitude. Em esporte, respondeu boxe, mais agressivo. Escolheu um autor menos deprimido: mudou de Coetzee para Bryson, claramente mais Labrador. Esperou a resposta e deu Cocker Spaniel. De novo.
Seria ele um Cocker Spaniel? Filosoficamente considerou que um Cocker Spaniel não sabe que é Cocker Spaniel. Deixou o assunto de lado. Não falou com ninguém, nem poderia, mas o incômodo estava lá, latente. Voltou muitas outras vezes ao teste, com muito cuidado. Com método. Só dava Cocker Spaniel.
Certo dia, em plena tarde, clicou no fale conosco e num instante engatou conversa com o responsável. Era um estudante de Ciências Comportamentais que testava a hipótese de Jaworski, logo explicada de forma simplificada: quem diz que não é, é. O trabalho já fora concluído e publicado no exterior, em revista científica internacional, indexada. O site ainda estava no ar por descuido, desculpou-se o rapaz.
Questionado, explicou seu método: qualquer que fossem as respostas, sempre dava Cocker Spaniel. A imensa maioria não se importava com isso. Alguns poucos o procuraram. Estes, incomodados, foram então longamente entrevistados. Daí resultou um perfil. O senhor, disse confiante, deve ser um profissional liberal, com mais de 45 anos, mais de um metro e oitenta, casado e com filhos. Tem inseguranças afetivas, certamente gosta de Diamante Negro e, provavelmente, de manjar branco. Flávio Augusto, assombrado, não soube o que dizer. Desligou o telefone bem devagarzinho.
Naquela tarde, ficou prostrado em sua sala. Murcho, borocoxô. Derrubado. Desconsolado e abatido. Como um Cocker Spaniel preso em área de serviço.
Intrigado, foi respondendo às perguntas. Cada qual apresentava uma lista de dez opções. As perguntas eram sobre preferências por livros, escritores, música, compositores, cantores, cantoras, pintores, atores e atrizes. Por fim, esportes, essências e sabores. As alternativas eram sofisticadas. Supôs coisa séria. Foi respondendo e imaginando qual seria o processo por detrás. Decerto haveria correlações de aspecto e personalidade. Quem sabe algumas psicóticas? Talvez algumas inferências sobre agilidade, combatividade, inteligência e fidelidade. Respondeu tudo com muito cuidado e logo e veio a resposta: Cocker Spaniel.
Que decepção! Nunca se imaginara um Cocker Spaniel. Nunca se sentira de companhia. Nem carente, do olhar caído. Tampouco intolerante à solidão, incapaz de ficar consigo! Pensando ter havido engano, respondeu de novo, com pequenas modificações. Deu Cocker Spaniel outra vez!
Voltou a trabalhar, mas ficou com aquilo na cabeça. Por que aquelas respostas o definiriam como Cocker Spaniel? Talvez tivesse uma imagem errada de si. Não é assim com todo mundo? O assunto não saiu de sua cabeça. Em poucos dias estava de volta ao questionário, com uma nova atitude. Em esporte, respondeu boxe, mais agressivo. Escolheu um autor menos deprimido: mudou de Coetzee para Bryson, claramente mais Labrador. Esperou a resposta e deu Cocker Spaniel. De novo.
Seria ele um Cocker Spaniel? Filosoficamente considerou que um Cocker Spaniel não sabe que é Cocker Spaniel. Deixou o assunto de lado. Não falou com ninguém, nem poderia, mas o incômodo estava lá, latente. Voltou muitas outras vezes ao teste, com muito cuidado. Com método. Só dava Cocker Spaniel.
Certo dia, em plena tarde, clicou no fale conosco e num instante engatou conversa com o responsável. Era um estudante de Ciências Comportamentais que testava a hipótese de Jaworski, logo explicada de forma simplificada: quem diz que não é, é. O trabalho já fora concluído e publicado no exterior, em revista científica internacional, indexada. O site ainda estava no ar por descuido, desculpou-se o rapaz.
Questionado, explicou seu método: qualquer que fossem as respostas, sempre dava Cocker Spaniel. A imensa maioria não se importava com isso. Alguns poucos o procuraram. Estes, incomodados, foram então longamente entrevistados. Daí resultou um perfil. O senhor, disse confiante, deve ser um profissional liberal, com mais de 45 anos, mais de um metro e oitenta, casado e com filhos. Tem inseguranças afetivas, certamente gosta de Diamante Negro e, provavelmente, de manjar branco. Flávio Augusto, assombrado, não soube o que dizer. Desligou o telefone bem devagarzinho.
Naquela tarde, ficou prostrado em sua sala. Murcho, borocoxô. Derrubado. Desconsolado e abatido. Como um Cocker Spaniel preso em área de serviço.
Extraído de Revista Brasileiros.
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