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08 novembro 2010

A NOVA ROUPA DO REI E O ECO DO DIREITO


Frederico Bastos
Advogado

Quando Hans Christian Andersen criou o conto "A nova roupa do Rei” em 1837, não imaginava que após mais de um século, sua idéia estaria tão escancaradamente atual entre os operadores do Direito.

Segundo o conto do autor, havia um rei, exageradamente vaidoso, que  gastava todo o dinheiro do reino em roupas. Certo dia, sabendo da personalidade narcisista de V. Majestade, dois trapaceiros apresentaram-se como tecelões e gabavam-se de fabricar os mais lindos tecidos do mundo. Todavia, as roupas fabricadas por esses tecelões tinham a especialidade de parecer invisíveis às pessoas destituídas de inteligência ou àquelas que não estavam aptas para os cargos que ocupavam.

Deslumbrado, o Rei prontamente pagou aos dois tecelões uma vultosa quantia, bem como mandou providenciar os melhores teares do reino para que os vigaristas trabalhassem em sua nova indumentária.  Apesar de passarem inúmeras horas nos teares e exigirem porções da mais cara linha de seda e ouro,  seus teares permaneciam vazios.

Curioso, o Rei pediu que um de seus Ministros fosse ver como andava o trabalho dos tecelões, pensando que ele, melhor do que ninguém, poderia ver o tecido, pois era um homem inteligente e que desempenhava suas funções com o máximo de perfeição.

No entanto, como era de se esperar, o Ministro nada viu. Não obstante, teve o cuidado de não declarar isso em voz alta.  O pobre homem fixou a vista o máximo que pode, mas não conseguiu ver coisa alguma. Entretanto,  o Ministro afirmou aos tecelões  que a roupa era deslumbrante. O velho ministro prestou muita atenção a tudo o que os charlatões diziam para poder reproduzir diante do rei.

Todos na cidade não falavam noutra coisa senão na esplêndida roupa nova do Rei.

Certa feita, o Rei decidiu per se, verificar a quantas andava o serviço dos tecelões. Uma vez mais os teares estavam vazios. O Rei, que nada via, horrorizado pensou: Serei eu um tolo e não estarei em condições de ser rei? V. Majestade, assim como todos os outros preferiu exclamar em alto e bom som o quão maravilhado estava com sua nova roupa. Os tecelões, aconselharam ao Rei que usasse a nova roupa em um desfile e V. Alteza assim concordou.

No dia  do desfile, V. Majestade, acompanhado dos cortesões,  ao vestir sua nova indumentária olhava-se  no espelho  e via sempre a mesma imagem de seu corpo nu.

Todos elogiavam o novo traje com medo de perderem seus postos se admitissem que não viam nada. Durante o desfile,  o povo, nas calçadas e nas janelas, não querendo passar por tolo, exclamava: Que linda é a nova roupa do Rei! Que belo manto! Que perfeição de tecido!

Por fim, uma criança que estava entre a multidão, em sua imensa inocência, achou aquilo tudo muito estranho e gritou:  O Rei está nu!!  Foi então que o povo percebeu a verdade que os cercava  e, enchendo-se de coragem, começou a gritar em coro: O Rei está nu!!

Foi preciso que uma inocente e ingênua criança desse fim à cegueira burra de toda uma multidão temerosa de assinalar seus verdadeiros pensamentos. Preferindo coadunar-se a algo absurdo e no qual não acreditavam, apenas para não destoarem do pensamento comum.

Trazendo o conto de Hans C. Andersen para a realidade jurídica hodierna, percebemos que muitas vezes a multidão cega e burra sobrepõe-se à voz da verdade exclamada pela criança ingênua. 

Sem dúvida, o advento do acesso ao ensino superior teve e tem inúmeros pontos positivos. Todavia, também permitiu que incontáveis faculdades de Direito fossem  abertas sem qualquer controle ou fiscalização efetiva dos órgãos competentes. Tal fato,  refletiu em um número quase que absurdo de bacharéis  graduados por faculdades sem qualquer compromisso com o verdadeiro estudo da ciência jurídica.  Desaguando no mercado de trabalho, d.m.v., uma geração pós-graduada em pesquisas no Google,  crtl + C e crtl + V, e desprovida de pensamento crítico ou raciocínio jurídico.

Ora, sem dúvida que a tecnologia deve ser aplicada em proveito do Direito e dos juristas. Alguns bons exemplos são a pesquisa de jurisprudência online, a consulta dos andamentos processuais e o atual sistema E-doc. A crítica a ser feita não gira em torno da aplicação da tecnologia no campo do Direito, mas sim contra  o engessamento intelectual que o uso do crtl + C e crtl + V vem causando nos operadores do Direito.

Verifica-se que na própria formação do advogado, muitas das vezes, o senso investigativo e questionador é tolhido pela facilidade de uma pesquisa ao Google.  Assim, desde a época de estágio, o bacharel descarta os livros, as jurisprudências, as revistas especializadas, os artigos jurídicos, para alicerçar seu conhecimento  em conceitos encontrados nesse campo virtual sem nenhuma referência.

Além da reprodução de conteúdo muitas das vezes  estúpido e parvo, o reflexo mais preocupante é a cristalização do raciocínio jurídico. Ao analisar a prática jurídica de advogados, juízes, promotores e demais operadores do Direito percebe-se por diversas vezes a ausência de pensamento crítico. Constata-se que, ainda hoje, muitos juristas filiam-se à Escola Exegética, bastando a aplicação do texto legal sem qualquer senso crítico ou interpretação adaptativa à realidade social.

Ao apresentar tal crítica, não se quer exigir que todos aqueles saídos dos bancos acadêmicos das faculdades de Direito sejam intelectuais, gênios ou grandes pensadores. O que se  espera  é que estes acadêmicos sejam ao menos, capazes de compreender e criticar o que lêem e o que vêem no mundo jurídico.  Nesse sentido, vale ressaltar a lição de Orlando Gomes a respeito da Sociologia "não são os homens em geral que pensam, nem mesmo os indivíduos isolados, mas os homens dentro de certos grupos. O pensamento tem raízes sociais, embora seja individual?.

Infelizmente, é preciso lembrar que vivemos em um país em que grande parte da população é alienada jurídica e politicamente, um povo que não conhece e não entende seus direitos. Assim, não é crível aceitar que os operadores do Direito também se filiem aos alienados e passem a simplesmente reproduzir teses, as quais não compreendem nem questionam por simples comodismo, igualando-se à população que enaltecia a inexistente roupa do Rei.  Adaptar o novo ao velho, tomando as suas ideias e os seus preconceitos como a medida das coisas, é processo de frustração e não de criação.

Assim, a petrificação do raciocínio jurídico é alarmante. Hodiernamente, muitas das teorias e conceitos aplicados no Direito são como um grande ECO,  foram instituídos  no passado e são repetidas continuamente até os dias atuais, sem qualquer questionamento ou crítica.   A ignorância e a falta de questionamento constatada traz à tona a brilhante crítica do diretor Michelangelo Antonioni na parte final do clássico Blow-up de 1966. Sob essa ótica, merece atenção as considerações de Orlando Gomes:

"Quando o jurista se depara com uma dificuldade, oriunda de tendência nova que reclama a reconstrução, vai buscar, nas legislações mortas, termos técnicos sepultados, cometendo, inclusive, o erro de supor que o problema consiste unicamente numa questão de terminologia. Esta forma de transpor obstáculos, seja pelo recurso ao vocabulário do Direito extinto, seja pelo apelo abusivo a neologismos rebarbativos, não altera, na sua substância, a técnica jurídica. Permanece de pé, em conseqüência, a sentença de Morin, proferida há vinte anos, segundo a qual, sobre o terreno conceitual, isto é, nas fórmulas e nos conceitos da técnica jurídica, a ordem nova não aparece?

Ora, se o Direito é uma ciência dinâmica, que acompanha o caminhar da sociedade, os operadores do Direito devem posicionar-se na escolta da sociedade e do próprio Direito.  Não podemos padecer de comodismo ou fadiga pensante na criação do Direito acreditando que as instituições e conceitos criados até hoje são suficientes para conduzir essa ciência à sociedade.  Devemos reavivar a lição de  Ive Baker Priest: "O mundo é redondo, então o que parece ser o fim pode ser apenas o começo?

Sob todas as luzes, destaca-se que a crítica deste artigo estende-se a todos os operadores do Direito, em todas as áreas e hierarquias.  Chega a ser covarde a falta de iniciativa  e a extrema subserviência aos antigos dogmas. Novamente, citando o mestre Orlando Gomes, ,"[..] sente-se, porém, que os conservam, porque, nas suas dissecações mais arrojadas, suspendem o bisturi sempre que percebem que vão atingir o ponto vital?

É preciso lembrar o ensinamento de  Gaston Morin, a respeito da tarefa do jurista: "[...]cumpre-lhe, primeiramente, depreender, com precisão, as soluções positivas da lei e da jurisprudência e, depois, confrontar essas soluções com as exigências econômicas do momento, as necessidades sociais e as reclamações da consciência coletiva?

Por fim, a contrario sensu do que possa parecer, o presente artigo não tem o escopo de desvalorizar ou menosprezar os atuais instrumentadores da ciência jurídica, até mesmo porque me filio a eles,  mas sim, questionar e criticar  alguns conceitos enraizados  como verdades absolutas em nosso sistema jurídico,  mas que no fundo demonstram-se vazios, nos fazendo relembrar a fábula de Esopo, onde "a montanha pariu um rato desprezível e impotente?. Nosso Poder Judiciário, por vezes,  assim como vários operadores do Direito, imitam a montanha e o seu feto anencéfalo. Assim, mais do que uma crítica, este é um apelo a todos os juristas, para que independente de sua prática, exercitem o pensamento crítico e o raciocínio jurídico. Lapidem cada vez mais o Direito já existente em seu interior. Convido também a sociedade, que  se preocupe com a capacitação e competência dos operadores do Direito, para que estes possam se sentir cobrados a aperfeiçoarem-se, bem como sintam-se valorizados quando exercerem o papel de verdadeiros cientistas jurídicos.

Extraído do site da OAB/RJ

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