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24 novembro 2009

AS ORIGENS DA CONDENAÇÃO DO PROCESSO CIVIL ROMANO



Parte 1/4


Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke

Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Advogado associado de TozziniFreire Advogados.


RESUMO: Este trabalho visa a demonstrar que a condenação do processo formular romano se originou de uma paulatina evolução da damnatio, uma das antigas modalidades obrigacionais que tinham a submissão como elemento caracterizador e a garantia como centro do vínculo. Substituída a idéia de ‘obrigação como garantia’ pela idéia de ‘obrigação como vínculo ideal’, e considerando a natureza instrumental de que o processo se reveste, a damnatio foi internalizada ao sentenciamento e engendrou o que se conhece por condemnatio, a submeter o devedor não mais aos castigos sacrais, mas ao próprio populus Romanus. O texto, ademais, divide-se no exame dos aspectos externos e internos da sentença de condenação, ressaltando, neste último caso, suas relações com a obligatio, com a actio e com a litis contestatio, e sempre tendo por prisma o ofício que pretor e juiz assumiam no processo daqueles tempos.


ABSTRACT: This paper aims at demonstrating that condemnation of the Roman formular procedure originated from a regular evolution of damnatio, one of the old obligational modalities, which had submission as a characterizing element and warrant as the core of the bond. Once the idea of "obligation as warrant" was substituted for "obligation as ideal bond", and considering the instrumental nature of the procedure, damnatio was internalized to sentencing, originating what is known as condemnatio, submitting the debtor no longer to sacral punishments, but to the populus Romanus itself. The text, in addition, is divided into analyzing the internal and external aspects of the condemnation verdict, highlighting, in the latter case, its relationships to obligatio, to actio and to litis contestatio, always considering the role that praetor and judge took on in the legal proceeding at that time.


Palavras-chave: direito romano – processo civil – condenação – obrigação – ação – litis contestatio.


Key-words: roman law – civil procedure – condemnation – obligation – action – litis contestatio.


"These rudimentary ideas are to the jurist what the primary crusts of the earth are to the geologist. They contain, potentially, all the forms in which law has subsequently exhibited itself".


Henry Sumner Maine (MAINE, Henry Sumner. Ancient law. Londres: Aldine Press – Letchworth – Herts [Everyman’s Library], 1965, p. 2)


* Pela confiança, pela ajuda, pelo incentivo e pelo exemplo indelével de professor, advogado e pessoa, não há como não dedicar este trabalho inteiramente ao Prof. Luis Renato Ferreira da Silva.



1 – Introdução

O conhecimento histórico faz-se pela segurança dos instrumentos que o tempo preservou. Extirpada a possibilidade de acesso direto aos fatos passados, essa cognição se processa por meio de vestígios, assim imputando certo grau de incerteza à almejada correspondência entre o resultado da pesquisa histórica e o fato outrora ocorrido. Como bem aponta o fundador da Escola dos Annales, "nenhum egiptólogo viu Ramsés; nenhum especialista das guerras napoleônicas ouviu o canhão de Austerlitz. Das eras que nos precederam, só poderíamos falar segundo testemunhas. Estamos, a esse respeito, na situação do investigador que se esforça para reconstruir um crime ao qual não assistiu; do físico, que, retido no quarto pela gripe, só conhece os resultados de suas experiências graças aos relatórios de um funcionário de laboratório" 1. Por isso o passado é por definição um dado imodificável; seu conhecimento, porém, é coisa que progride, e que incessantemente se transforma e se aperfeiçoa 2, pois fitados estão os olhos do pesquisador na busca pelo real – ainda que seja o real de outros tempos – e embebidos pela pertinácia de avistarem a verdade.
E que outros são os instrumentos para o conhecimento do direito pretérito senão as próprias palavras, senão a linguagem? "Amálgamas de pedaços dos espíritos" que perduram "indiferentes ao passar das gerações" – poetizou Pontes de Miranda 3 –, as palavras não passam de signos convencionais que representam imediatamente as concepções do intelecto e mediatamente – mas não necessariamente – a realidade. A linguagem, por ser convencional (lapidada pelo ser humano), é modo de expressão social e manifestação eminente da tradição 4, e tanto por isso espelha e aponta para a realidade jurídica de épocas passadas. É, destarte, legítimo instrumento do historiador do direito, pois realiza a própria essência da tradição: o repasse, a transmissão, a traditio (de trado, trans + do, entregar) dos fatos de outros tempos.
Considerando que ao passado jurídico só se tem acesso por mediação de palavras, é possível desdobrar duas conclusões: que as palavras enquanto instrumentos de investigação histórica indicam à realidade de outras épocas, mas que, por também fazerem parte da cultura humana e por isso sofrerem iguais modificações por ação do tempo, a segurança de sua correspondência (identificação entre descrição por palavras e realidade) só brota se forem encaradas dentro da sistemática de dados já conhecidos 5. A visão geral da realidade jurídica, social, econômica, etc. da época investigada, assim, é vetor indispensável ao desvelar seguro de quais circunstâncias uma determinada palavra era representante. Nas trilhas desse método, o investigador há de ter uma dupla capacidade: capacidade histórica para colher com acerto tudo quanto há de característico no direito de cada época, e capacidade sistemática para considerar cada dado em íntima relação e em ação recíproca com o conjunto 6.
A exposição dessas considerações preliminares se justifica quando a aproximação à temática deste trabalho é maior: tratará ele de perquirir as origens da condenação no processo civil romano, e para isso será indispensável viajar ao período arcaico de Roma e observar em quais circunstâncias era utilizado o vocábulo que a etimologia indica enquanto ascendente direto da condemnatio – qual seja, a damnatio. Por serem escassas as fontes jurídicas desses tempos, apenas a observação sistemática da palavra (inserta no conjunto jurídico, social e econômico de então) é capaz de portar maior segurança ao investigador, de modo a fazê-lo defrontar com razoável probabilidade o conceito e a realidade aos quais se referia a palavra damnatio.
E nem se diga que o método perde justificativa quando o estudo passa a abordar períodos mais adiantados da história jurídica de Roma. A maior abundância de fontes e de escritos sobre o processo formular não retira da investigação do passado sua natureza cambiante (no sentido de evoluir a cada nova descoberta na trilha da evolução à verdade), mormente quando se tem em mente as recentes descobertas que a arqueologia patrocinou para o direito 7. O desenvolvimento das pesquisas, aliás, tem revelado que muitas idéias lapidadas pelos romanistas dos séculos passados merecem ser atualizadas e desbastadas de sua bagagem ideológica, circunstância que reforça ainda mais a necessidade de retomarem-se velhas discussões e abordarem-se caracteres do processo romano que já pareciam descansar irretorquíveis.

Assim sendo, para que seja possível elaborar um esboço de proposta sobre as origens da condenação no processo civil romano, os seguintes degraus terão de ser galgados: em primeiro lugar, analisar-se-á a que realidade correspondia a palavra damnatio no tempo arcaico, avaliando-se, por outro lado, de que forma se operava a transição "conhecimento-execução" nesses mesmos idos; em segundo lugar, investigar-se-á a configuração da condemnatio formular, pulando-se temporariamente do período arcaico para o período clássico, e com isso traçando um comparativo de evolução entre damnatio e condemnatio; enfim, o estudo culminará na avaliação dos caracteres obrigacionais da condenação romana, a demonstrar que de alguma maneira seu uso determinava a submissão do réu ao cumprimento da sentença.


2 – Antecedentes arcaicos

Por meio da etimologia, o mergulho no arcaísmo é meramente superficial: revela uma série de possíveis ascendentes do vocábulo damnatio sem, porém, considerar o plexo que deve haver entre palavra e contexto cultural. Não indica com firmeza a que dado da realidade romana o termo fazia referência, e por isso serve de modesto acessório ao aprofundamento da dimensão cultural da linguagem. Uma pesquisa comprometida não pode se deter em meros comparatismos etimológicos 8.
No caso da condemnatio, em especial, por seu ascendente estar tão soterrado pelo tempo, mister se faz partir da palavra e verificar em que variados contextos ela tinha uso nas épocas mais distantes do direito de Roma, durante o denominado "período arcaico" 9. Sabe-se ser ela o resultado da junção de dois termos arcaicos: cum e damnatio. O primeiro deles (uma preposição) tem significado óbvio: "com", "em companhia de", "por meio de" 10. O segundo, porém (um substantivo), demanda investigação histórico-sistemática mais apurada, já que seu aparecimento é variado e envolto nas brumas de um passado longínquo. Dentre algumas ocorrências, é possível indicar o uso de damnatio enquanto vinculado a quatro institutos jurídicos da época: o votum, os legados per damnationem e sinendi modo, e o nexum. A análise compartimentada de cada um deles fará brotar, ao final, o significado de damnatio que aqui se busca.


2.1 – O votum

Relacionada ao votum, a palavra damnatio é mencionada por diversos autores romanos. Cornélio Nepo (De viris illustribus, XXII, 5), Virgílio (Ecloga, V, 79-80), Tito-Lívio (Ab urbe condita, V, 21 e 25) e Macróbio (Saturnalia, III, 2) são alguns dos exemplos mais marcantes. A chave está em descobrir o que se entendia por votum, e de plano salta aos olhos o acentuado caráter religioso que o instituto possuía. O próprio Cícero na obra De legibus (II, 47) refere à sua feição sacral quando o inclui no rol exemplificativo de institutos jurídicos que partilhavam de relações com a religião: de sacris credo, de votis, de feris et de sepulchris. Em específico, a participação do votum na religião romana se operava por meio da nuncupatio, que nada mais era senão o proferimento rigoroso e solene, diante do público ou ao menos de algumas testemunhas, de certas palavras (certa verba) indicadas pelos pontífices e dirigidas ao deus Júpiter, capazes de gerar obrigações para quem as pronunciasse 11.
Com isso, fica claro que pelo votum se implorava a alguma deidade que realizasse certa benesse, prometendo-se a ela, em contra-partida, certa retribuição caso o pedido fosse atendido (como, por exemplo, a construção de um templo ou o sacrifício de animais). Virgílio narra a história de um sujeito que venceu um páreo de barcos apenas porque proferira vota aos deuses (Eneida, V, 230-240). Noutra passagem do texto, o mesmo autor fala sobre as orações de Ascânio a Júpiter antes que lançasse uma flecha na cabeça de Rêmulo, prometendo-lhe "bezerro cândido de fronte dourada" caso acertasse o alvo (IX, 625). Marcos Cato, enfim, em texto que trata do mundo campestre dos romanos, indica todas as formalidades que deviam ser atendidas para que se formulasse um votum em favor da saúde do gado (De agri cultura, 83). A partir desses exemplos é tranqüilo concluir-se pela natureza do votum: uma declaração unilateral de vontade 12, uma promessa feita a uma divindade, vinculante segundo o ius sacrum 13.
Via de regra, os vota eram cumpridos por temor à ira dos deuses e à fúria de seus seguidores. Dizia-se votum solvere o implemento da promessa que tinha sido feita 14. Mas antes desse cumprimento, o promitente podia se encontrar numa de duas situações: ou voti reus, ou voti damnatus.
É de Virgílio (Eneida, V, 235) uma passagem interessante sobre o ponto: constitutam ante aras voti reus ("em vossos altares, obrigo-me por esta promessa"); trecho que posteriormente foi comentado por Macróbio (Saturnalia, III, 2): ut reus qui suscepto voto se numinibus obligat ("de modo que diz-se reus o que em dirigindo a promessa se obriga"). Essas fontes tratam de momentos em que se tinha um voti reus, isto é, alguém que havia se obrigado pelo votum depois de ter proferido palavras solenes (nuncupatio). Voti reus era, assim, o sujeito que prometera determinada realização caso atendido seu pedido.
Por outro lado, quando a condição se implementava (id est quando o desejo do proferente se realizava) e o promitente se negava a cumprir sua promessa, dizia-se que ele havia se tornado voti damnatus (o contrário, portanto, de votum solvere). Nesse sentido, vejam-se as observações de Macróbio (Saturnalia, III, 2): damnatus autem qui promissa vota non solvit ("damnatus, porém, é o que não cumpriu os votos prometidos"). A expressão também é utilizada noutras fontes. Cornélio Nepo (De viris illustribus, XXI, 5), por exemplo, assim escreveu: dixit nunc demum se voti esse damnatum: namque hoc a diis immortalibus semper precatum, ut talem libertatem restitueret Syracusanis, in qua civis, de quo vellet, impune dicere ("disse em tal momento estar damnatus a uma promessa: já que por sempre pedir isto aos deuses imortais, para que fosse restituída a liberdade dos Siracusanos, na qual fosse lícito a qualquer um falar do que quisesse sem ser castigado"). Já de Virgílio (Ecloga, 79-80) pode ser citado o seguinte: Ut Baccho Cererique, tibi sic vota quotannis agricolae facient: damnabis tu quoque votis ("Como, para Baco e Ceres, todos os agricultores fazem para ti as promessas: damnabis tu também a elas"). E de Tito-Livio (Ab urbe condita, V, 25): Camillus identidem omnibus locis contionabatur: haud mirum id quidem esse, furere civitatem quae damnata voti omnium rerum potiorem curam quam religione se exsolvendi habeat ("nos discursos que repetia continuamente em todos os lugares, Camilo dizia que não era então tão estranho se se abandonasse a tais excessos uma cidade que, em sendo damnata ao cumprimento de um voto, fazia de tudo para se liberar do vínculo religioso").
Os trechos revelam o sentido em que damnatio e suas derivações eram utilizadas pelos romanos quando se referiam ao votum: damnatum, damnabis e damnata indicavam a situação de um indivíduo que descumprira uma promessa – era, portanto, o antípoda de votum solvere, de cumprir o voto – e que, assim, estava submetido à sua realização sob pena de sofrer sanções religiosas. No plano do fas, parece que o promitente ficava submetido à ira divina (danação); no plano do ius sacrum, provavelmente os veneradores da deidade desrespeitada pudessem perseguir em juízo o cumprimento do prometido 15. Damnatio enquanto relacionada ao votum, destarte, espelhava vinculação por não cumprimento de promessa feita e, assim, submissão aos castigos divinos e religiosos 16.


2.2 – Os legados per damnationem e sinendi modo

Outra aparição arcaica da palavra damnatio se dá quando relacionada aos legados per damnationem e sinendi modo. O legado, no direito romano, resultava da faculdade que possuía o paterfamilias de destinar suas coisas mortis causa a quem lhe aprouvesse, materializado por meio de testamento ou de codicilo confirmado, imposto aos herdeiros em favor de um terceiro (legatário). Segundo registros dos Tituli ex Corpore Ulpiani (XXIV, 2) e das Institutiones de Gaio (II, 192), havia quatro modalidades de legado nos tempos mais antigos: per damnationem, sinendi modo, per vindicationem e per praeceptionem; os dois primeiros gerando efeitos pessoais, os dois últimos gerando efeitos reais 17. Tendente à unificação, o Senatus Consultum Neronianum (64 d.C.) fez com que a interpretação de legados impróprios (aqueles que não cumpriam com os requisitos de nenhuma das modalidades) convergisse para um só: na dúvida, deviam ser vistos como se per damnationem fossem (Gaio, Institutiones, II, 197-198; 212-218; 220-222; Tituli ex Corpore Ulpiani, XXIV, 11a; Fragmenta Vaticana, 85); e o período pós-clássico, por fim, observou derrocar a divisão entre legados per damnationem e legados per vindicationem, unificando estes àqueles.
Pouco a pouco o legado per damnationem foi expandindo seus lindes e acabou por englobar todos os outros, dada a carapaça obrigacional da qual se revestia. Caracterizava-se por impor ao herdeiro algum dever em favor de um terceiro, seja de dar ou de fazer. Legado "que gerava em favor do legatário um simples direito de crédito contra o herdeiro" 18, e, por conseguinte, que fazia nascer no próprio herdeiro determinada dívida. Sua principal característica decorria de seu objeto: uma espécie de obrigação entre legatário e herdeiro. Tanto por isso diferenciava-se do legado per vindicationem, utilizado para repasse direto de coisas e, portanto, com efeitos tipicamente reais, prescindindo inclusive de qualquer intervenção do herdeiro.
Outro legado revestido de caráter obrigacional era o sinendi modo, tanto que abarcado pelo per damnationem mesmo antes do anno Domini. Ele, porém, impunha ao herdeiro uma obrigação de "não impedir" (sinere); fixava um dever de permitir que o legatário tomasse o que o de cujus lhe havia deixado. A simples diferença do per damnationem repousava na espécie de obrigação gerada por um e por outro, conforme assinala Biondo Biondi: num, uma obrigação positiva; noutro, uma obrigação negativa 19.

Esse caráter obrigacional que a ambos era intrínseco tinha enquanto marca a presença da cláusula damnas esto. Senão, basta que se cotejem as fórmulas indicadas por Gaio (Institutiones, II) quando faz referência às quatro modalidades de legado: 201. Per damnationem hoc modus legamus: HERES MEVS STICHVM SERVVM MEVM DARE DAMNAS ESTO. 209. Sinendi modo ita legamus: HERES MVS DAMNAS ESTO SINERE LVCIVM TITIVM HOMINEM STICHVM SVMERE SIBIQVE HABERE. 193. Per vindicationem hoc modo legamus: TITIO verbi gratia HOMINEM STICHVM DO LEGO. 216. Per praeceptionem hoc modo legamus: LVCIVS TITIVS HOMINEM STICHVM PRACIPITO (também nos Tituli ex Corpore Ulpiani, XXIV, 4 e 5, podem ser achadas passagens similares). De todas essas frases (repetidas pelos testadores em verdadeiro nuncupare), apenas nas duas primeiras – as referentes aos legados per damnationem e sinendi modo – consta a declaração damnas esto, não por acaso naqueles ditos "obrigacionais".
A tradução literal dessa expressão, mantido por ora o damnas em sua configuração latina, fica: "esteja damnas a dar" (dare damnas esto, referente ao legado per damnationem) e "esteja damnas a não impedir" (damnas esto sinere, referente ao legado sinendi modo). Não é difícil concluir que o vocábulo damnas era usado para deduzir a vontade do testador em termos formais, qual seja, a de que seu próprio herdeiro ficasse comprometido a seguir determinada conduta, beneficiando terceiro. Damnas, assim, representava de certa maneira a submissão do herdeiro à vontade do de cujus, e configura o indício mais agudo da obrigacionalidade dos legados per damnationem e sinendi modo. Tanto que as fórmulas citadas podem muito bem ser traduzidas por "esteja vinculado ou submetido a dar" e "esteja vinculado ou submetido a não impedir"; tanto que "legado per damnationem" nada mais é do que "legado por vinculação", ou "legado por submissão" 20.


2.3 – O nexum

Foi o romanista alemão Philipp Eduard Huschke, através da obra "Ueber das Recht des nexum und das altrömischen Schuldrecht" (Leipzig, 1846), quem encetou as célebres discussões sobre o nexum, um misterioso instituto do direito romano. Tão controvertida quanto sua própria natureza era a presença da palavra damnatio enquanto a ele vinculada. Huschke, por exemplo, acabou deduzindo o uso de damnatio a partir do próprio efeito executório que parecia brotar do nexum, sendo supostamente pronunciada pelo credor contra o devedor durante o cerimonial do cobre e da balança (per aes et libram) 21. O romanista partiu do pressuposto de que o ato do cobre e da balança gerava uma dualidade de efeitos: um real, implicando a transferência por mancipação de um bem; e outro obrigacional, através do qual o contrato era criado pelo nexum, isto é, pelo engajamento pessoal dos serviços do contratante. Este último seria efetivado depois de pronunciada (via nuncupatio) uma damnatio, a dar azo imediato a uma execução (manus iniectio pro iudicato).
É interessante verificar que os anos conseguintes reservaram uma diversidade de desdobramentos da teoria de Huschke. O alemão Ludwig Mitteis, através de trabalho publicado na "Zeitschrift der Savigny – Stiftung für Rechtgeschichte, Romanistische Abteilung" (1901), foi o primeiro a combatê-la. Afirmando não haver qualquer fonte a atestar a presença da damnatio enquanto vinculada ao nexum, e também por isso descartando a possível manus iniectio pro iudicato, Mitteis procurou diferenciar nexum de nexi: enquanto aquele seria contrato de empréstimo per aes et libram, implementável forçadamente por uma legis actio sacramento in personam, os nexi seriam os aprisionados por quaisquer dívidas impagas que houvessem decorrido do mútuo (forma de auto-mancipação), perseguidos através de uma rei vindicatio. Em sua compreensão não havia espaço para uma damnatio e menos ainda para a possibilidade de execução direta.

Os autores sucessivos a Huschke e Mitteis a um ou a outro se filiaram – com exceção de Otto Lenel, que acabou negando a própria existência do nexum 22. Sem prejuízo de que uma ou que outra teoria esteja correta, o importante aqui é verificar que feição assumia a damnatio se vinculada ao nexum, e ter-se por pressuposto, evidentemente, o acerto dos estudos de Huschke e seus seguidores.
Conforme já adiantado, para essa corrente o nexum era um contrato de empréstimo, celebrado per aes et libram, com a pronúncia solene (nuncupatio) de uma damnatio, em que o devedor submetia sua força de trabalho como garantia da dívida. Isso é exatamente o que parece espelhar um dos fragmentos da Lei das XII Tábuas (VI, 1): cum nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit, ita ius esto ("quando se realize um nexum ou uma mancipação, o que se declare verbalmente de forma solene seja direito"). O nexum, portanto, era negócio formal, cumprido mediante a pesagem do metal e na presença de cinco testemunhas, tal como na mancipatio 23. Fazia com que o mutuante adquirisse um poder sobre a pessoa de quem recebesse a utilidade econômica caso a contraprestação não fosse efetuada: frustrada a fiducia que dava impulso ao negócio, o devedor respondia diretamente com seu corpo 24.
É de Pierre Noailles a preciosa indicação de que era o labor do mutuário, e não sua liberdade, que ficava submetido ao poder do mutuante caso o empréstimo não fosse recompensado 25. Chamado, assim, de liber homo bona fide serviens (expressão colhida da lex Cincia, conforme revelam os Fragmenta Vaticana, 307), o nexus tinha sua força laborativa escravizada sem que sua pessoa se revestisse dessa mesma condição. Até que a dívida estivesse quitada, ficava ele sob o senhorio de seu credor 26. O mutuante podia apanhar o devedor e levá-lo para exercer atividades laborativas até que seu crédito fosse satisfeito; podia exercer diretamente, como está subentendido, uma manus iniectio diferenciada.
A corrente de romanistas por fim indica a damnatio enquanto responsável por atar o devedor ao credor e à realização do labor empenhado. O vocábulo pronunciado, portanto, representava a vinculação e a submissão do mutuário caso não pagasse o que tomara por empréstimo. Por isso a importância de sua presença na face obrigacional do nexum: pela força da nuncupatio, a damnatio representava a garantia de que o mutuante teria seu patrimônio recomposto, já que submetia de per si o devedor ao poder de seu credor e ao cumprimento de seus trabalhos até que a dívida estivesse quitada.


2.4 – Damnatio como vínculo e execução per manus iniectionem

Não escapa do leitor qual uso era dado, nos tempos arcaicos, ao vocábulo damnatio: ele exprimia espécie de "vínculo" e "submissão", derivados de uma declaração solene de palavras certas (nuncupatio), indicando a instituição de uma garantia e com força suficiente para submeter o indivíduo, em caso de descumprimento, a um procedimento de execução imediato; ela representava a constituição de uma garantia dirigida à asseguração de que certos deveres seriam cumpridos de maneira voluntária ou, na pior das hipóteses, por meio de coação. É isso que se viu nos três exemplos recém trazidos: no votum, a presença da damnatio espelhava vinculação por não cumprimento de promessa feita e, assim, submissão a castigos divinos e religiosos; nos legados per damnationem e sinendi modo, a cláusula damnas esto impunha ao herdeiro um dever de fazer ou de não fazer em prol de um terceiro; e no nexum, a damnatio submetia o devedor ao poder de seu credor e ao cumprimento de certos trabalhos até que o débito restasse pago. Nos três, a damnatio operava por meio de uma nuncupatio, e também nos três o inadimplemento dos deveres acarretava uma espécie de execução sem procedimentos de conhecimento que lhe fossem anteriores. Por isso, a palavra parece ser mais bem traduzida por espécie de "vinculação", por "submissão" 27.
Ainda outro aspecto pode ser destacado. É que a damnatio, nesses primeiros tempos de Roma, não era vocábulo que se relacionasse diretamente com o processo civil. À diferença da condemnatio das épocas posteriores, ela – a damnatio – pertencia exclusivamente ao âmbito material do direito, e não consistia em instrumental de magistrados ou de juízes como na posteridade se tornaria. A única relação que desde já pode ser apontada com o processo é sua capacidade de oportunizar execuções caso não observados os deveres cujo cumprimento era por ela garantido. E é justamente dessa aptidão que tratar-se-á a partir de agora.

A manus iniectio – execução do período arcaico – foi definida da seguinte maneira pelo jurista Gaio (Institutiones, IV, 21): Qui agebat, sic dicebat: QUOD TU MIHI IUDICATUS SIVE DAMNATUS ES SESTERTIUM X MILIA, QUANDOC NON SOLVISTI, OB EAM REM EGO TIBI SESTERTIUM X MILIUM IUDICATI MANUM INICIO; et simul aliquam parte corporis eius prehendebat ("quem agia, assim dizia: "já que tu és iudicatus ou damnatus a dez mil sestércios e não pagaste, agarro-te por isso a título de julgado pelos dez mil sestércios"; e em seguida prendia uma parte de seu corpo"). Ou um iudicium, ou uma damnatio: a execução dependia da presença de um ou de outro para ser encetada, já que ambos transmitiam a segurança de que um dever fora descumprido e portanto carecia de salvaguarda. Há que se analisar, assim, no que consistia uma manus iniectio ex iudicium e uma manus iniectio ex damnatio, pois indispensável para diferenciar-se a causa de cada uma das espécies – não obstante a similitude de seu procedimento, como se verá no final do ponto.

A manus iniectio ex iudicium é a mais conhecida modalidade de execução, já que desdobrada a partir de um pronunciamento judicial que nos primórdios assumia feição bastante sacral. Nos dizeres de Scialoja, quem tinha declaração da estirpe ao seu favor tinha aptidão à execução sobre a pessoa do devedor 28, e tanto por isso a causa de uma manus iniectio ex iudicium, nesses tempos mais arcaicos, era a decisão de um julgador (inspirado por deuses) que dizia se certa conduta estava ou não de acordo com o direito (normas religiosas) reconhecido da época 29. O juízo desta primeira época, portanto, era oblíquo e indireto, pois tinha por precípua função detectar a conformidade de alegações e fatos e daí, em nome dos deuses desrespeitados, punir aqueles que tivessem incorrido em perjúrio.

O iudicium do período arcaico, porém, não apresentava feições perenes e duradouras. Não se pode dar a ele uma definição única, separando-a em absoluto do que depois o período formular ofereceria. Pelo contrário, o iudicium – como todo o direito romano da época – participava de uma sociedade que se abria a outras culturas e aos poucos se laicizava, trocando o revestimento sacral de suas instituições por um de cunho mais racional e adequado à cosmopolitização que as conquistas bélicas ensejavam. Tanto foi assim que aos poucos o processo civil da época passou a ser o nascedouro de ações da lei cada vez mais voltadas à realização prática do justo (a legis actio per iudicis arbitrive postulationem e a legis actio per condictionem constituem exemplos típicos do que ora se diz), desenraizado do assoreamento religioso que lhe travava um resultado mais efetivo e humano 30.

É a partir desses dados, casados com um notável desenvolvimento do cobre e depois da moeda enquanto instrumentos do comércio, que a manus iniectio passou a se desdobrar apenas se o iudicium fosse expressado com referência a quantias pecuniárias 31. Caso não o fosse, fazia-se necessário seguir um arbitrium liti aestimandae – procedimento autônomo, consistente na liquidação da decisão –, e só então os triginta dies para o pagamento voluntário passavam a correr, sob pena de dar-se início à execução (Lei das XII Tábuas, III, 1) 32.

Visto, portanto, que a manus iniectio ex iudicium tinha por causa uma decisão judicial com feição pecuniária e descumprida pelo devedor, há que se passar agora à segunda espécie de execução que Gaio menciona em suas Institutiones (IV, 21): a manus iniectio ex damnatio. Considerando que o significado de damnatio já foi explicitado em linhas anteriores, o importante agora é observar de que maneira seus caracteres interagiam com a execução arcaica a ponto de configurarem mais um requisito à instauração daquela ação da lei. E aqui é indispensável adiantar-se uma diferenciação que nos parágrafos mais abaixo ficará clara: a damnatio não é o equivalente arcaico de obligatio, e por isso mesmo não representa a existência de uma obrigação incontroversa, mas de uma garantia ao cumprimento de promessas proferidas.

Para entender-se bem a execução arcaica, deve-se saber que a noção de obrigação não tinha sido desenvolvida na época da damnatio 33. Os romanos trabalhavam com promessas e com a garantia de que elas seriam cumpridas, e não com obligationes. Aqui entra o essencial papel da damnatio: ela não tornava obrigação alguma incontroversa, pois sequer a noção de "obrigação" fazia-se presente na prática mais antiga a oportunizar adjetivação da estirpe. O que a damnatio representava – e isso tem tudo a ver com a ponte que a conecta à execução – era uma submissão do devedor aos deuses e ao credor, e uma garantia de que as promessas feitas de maneira solene (nuncupatio) seriam cumpridas. Mais do que isso. A necessidade em ter-se por incontroverso o descumprimento da obrigação só adveio – como se verá mais adiante – num período em que (i) a noção de obligatio já se encontrava lapidada, (ii) a declaração do juiz já substituía a certeza religiosa fornecida pela nuncupatio e (iii) a execução não era mais realizada privadamente pelo credor, mas sob a coordenação total do magistrado.

Pela damnatio, a submissão era essencialmente religiosa, e por isso o descumprimento do prometido ensejava de per si a execução do credor, mormente por já haver a submissão pelas promessas proferidas 34. Aliás, é bem isso que se viu quando analisado o aparecimento da palavra damnatio, sempre atrelada a atos praticados solenemente (com a pronúncia de fórmulas certas: nuncupatio) e diante de testemunhas (testis). A presença de terceiras pessoas observando a prática da solenidade tinha por exato fito dar publicidade (perante os deuses, o credor e a comunidade) às promessas feitas e à garantia instituída. A violação das promessas, portanto, era agressão à própria sociedade romana e desrespeito às divindades citadinas 35. Por isso se pode dizer que a damnatio configurava, de certo modo, "causa substancial notória" à manus iniectio, ainda que o descumprimento de ditas promessas fosse a verdadeira causa eficiente da execução.

Tanto que num primeiro momento histórico a sanção que derivava da damnatio, motivada pelo descumprimento das promessas proferidas, era apenas religiosa: quem não cumpria os deveres se tornava herege (impius) e sofria diversas restrições em sua colocação social 36 – até, pelo menos, que um sacrifício expiatório lhe retirasse a pecha de blasfemo. Foi a paulatina laicização dos institutos que portou a necessidade de uma sanção não sacral, seja porque o papel hiperbólico da religião encolhia, seja porque, com bastante probabilidade, o próprio prejudicado não se contentava mais com meras penalizações beatas; e daí então, foram abertas as portas para que a manus iniectio se instalasse enquanto conseqüência ao damnatus.

Mas disso não resulta que a manus iniectio ex damnatio possa ser vista como espécie de manus iniectio pro iudicato (isto é, uma manus iniectio que se equiparava àquela cuja causa era o iudicium), conforme compreenderam alguns conhecidos estudiosos do processo civil romano 37. Não levaram em conta a contraposição feita por Gaio (Institutiones, IV, 21), e não notaram que a execução a partir de uma damnatio antecedeu historicamente a execução por um iudicium. Noutras palavras, não pode ser considerada pro iudicato uma execução que, quando surgida, não tinha um iudicium paralelo para que fosse comparada. É muito mais crível que o tempo tenha feito com que diminuíssem aos poucos as "causas substanciais notórias", a ponto de introduzir cada vez mais a necessidade de um juízo anterior que servisse de causa à execução e que, assim, homenageasse o valor "segurança" com necessários e indispensáveis procedimentos de cognição judicial. Como se verá em linhas posteriores, a culminação desse processo de eliminação de "causas substanciais notórias" se deu com a publicação da lex Poetelia Papyria (326 a.C.), que parece ter sido o coveiro da manus iniectio ex damnatio.

Destarte, seja no votum, seja nos legados per damnationem e sinendi modo, seja no nexum, a presença da damnatio servia de "causa substancial notória" à instauração de uma manus iniectio, pois indicava que uma garantia para cumprimento de certas promessas havia sido instituída – pela solenidade de que se revestia e pela presença de testemunhas que lhe davam publicidade –, nada obstante ser o descumprimento das juras a causa motriz da execução. Sobra, apenas, a necessidade de darem-se breves pinceladas sobre os passos da execução arcaica.

Ela iniciava – seja ex iudicium, seja ex damnatio – com a apreensão do devedor (Lei das XII Tábuas, III, 1-4): o exeqüente tinha a faculdade de apanhá-lo diante do magistrado (iniecere manum), depois que este proferia seu addico 38, e levá-lo preso para sua residência, caso não houvesse indicação de garante (vindex). Lá, devia sustê-lo com o alimento necessário, colocá-lo para trabalhar durante os sessenta dias seguintes, ou então portá-lo diante do pretor por três vezes seguidas, para que fosse noticiado publicamente, em dias de comício, o débito ainda existente. Eram essas as oportunidades para que alguém pagasse o quantum devido pelo aprisionado, sob pena de ser morto ou vendido como escravo (Lei das XII Tábuas, III, 5). As fontes ainda noticiam que se existissem vários credores, o corpo do devedor podia ser dividido em tantas partes quantos fossem os créditos (Lei das XII Tábuas, III, 6).


Notas do Autor:

1 BLOCH, Marc. Apologie pour l'histoire ou métier d'historien (Cahiers des Annales). 2. ed. Paris: Armand Colin, 1952, p. 17.

2 Idem, p. 22.
3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Garra, mão e dedo. Campinas: Bookseller, 2002, p. 10.
4 SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. 2. ed. Paris: Payot & Cie., 1922, pp. 100-101. Como bem aponta Juan Cruz Cruz, "tradición es la línea de la transmisión de los caracteres adquiridos por libertad, es la continuidad del proceso operativo específicamente humano, en virtud de la cual se lega al futuro algo que pervive, una vez desapareciendo quien lo creó; el pasado es así un legado, del que el hombre puede disponer. (...) La tradición, desde el lado del emisor es entrega; desde el lado del receptor es acogimiento. La manera más alta en que se actualiza es en la educación; y su manifestación más inmediata es el lenguaje" (CRUZ, Juan Cruz. La historia como tradición. Anuario filosófico. Navarra: EUNSA, v. 13, n. 1, 1980, pp. 75 e 95, respectivamente).
5 As leis de modificação da linguagem não são muito diversas das apresentadas pelas demais criações da arte humana. Por ação do tempo, conjuntos gramaticais somem e aparecem, e outros têm seu uso modificado. Por isso que indica Giacomo Devoto ser impossível estudar certa palavra e perquirir a que realidade ela aponta apartando-a de sua dimensão histórico-cultural (DEVOTO, Giacomo. Ricostruzione e storia di lingue. In: Scritti Minori. Firenze: Felice le Monnier, 1967, v. 1, p. 35).
6 SAVIGNY, Friedrich Karl von. De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la ciencia del derecho (trad. Adolfo G. Posada). Buenos Aires: Atalaya, 1946, p. 80.
7 Além da pesquisa tecnológica nos papiros de Oxyrhynchus (antiga cidade egípcia em que foi descoberto em 1896 um enorme amontoado de papiros milenares, contendo desde anotações do dia-a-dia dos antigos até obras literárias perdidas), basta recordar a rica lex Irnitana, que em 1981 foi encontrada na localidade de Saucejo, na Espanha (foram retiradas do local seis tábuas de bronze em que a lei está gravada), e que modificou sobremaneira o entendimento que se tinha acerca de alguns elementos do processo formular romano (época de Domiciano). Cf. GONZALES, Julian; CRAWFORD, Michael. H. The Lex Irnitana: a new copy of the Flavian Municipal Law. The Journal of Roman Studies, 1986, v. 76, pp. 147-243.
8 Apenas em tom exemplificativo, refira-se aqui que as pesquisas etimológicas relacionam damnatio com o indo-europeu (dâ, da-p, *dap-nom, de "ligar", "vincular". Cf. CRIFÒ, Giuliano. Danno (storia). In: Enciclopedia Giuridica Italiana. [s.l.]: A. Giuffrè, 1962, p. 167. GIOFFREDÌ, Carlo. Diritto e processo nelle antiche forme romane. Roma: Apollinaris, 1955, pp. 168-169, nota n.º 20), com o sânscrito (dâm-yâ-mi, de "domar". Cf. BOPP, Franz. Grammaire comparée des langues indo-européennes (trad. Michel Bréal). 2. ed. Paris: Imprimerie Impériale, 1866, t. 1, p. 254), com o etrusco (-mno, -mna. Cf. ERNOUT, A. Les éléments étrusques du vocabulaire latine. Bulletin de la société de linguistique de Paris. Paris: Librarie Ancienne Honoré Champion, 1930, t. 30, pp. 98-99) e com o grego (d?pt?, dap???, da?????, etc., isto é, "divisão", "despesa" e "magnânimo". Cf. ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire etymologique de la langue latine: histoire des mots. 3. ed. Paris: C. Klincksieck, 1951, p. 293).
9 Período que vai desde os primórdios de Roma (apesar de juridicamente iniciar com a redação das XII Tábuas, no século V a.C.) até o fim da Segunda Guerra Púnica, no fechamento do século III a.C.
10 São algumas das traduções indicadas por SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português etimológico, prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico, etc. 11. ed. Rio de Janeiro - Belo Horizonte: Garnier, 2000, p. 324.
11 Sobre isso, cf. Julio César, De bello civile, I, 6; Suetônio, Divus Augustus, 97. Cf. também NOAILLES, Pierre. Du droit sacré au droit civil. Paris: Recueil Sirey, 1949, p. 302. Nuncupare vem de nomen e capere, isto é, "nome" e "apanhar", etimologia que reforça a idéia de que nuncupatio era exprimir à viva voz as palavras devidas, oferecidas pelos pontífices.
12 WORMS, René. De la volonté unilatérale considérée comme source d'obligations en droit romain et en droit français. Paris: A. Girard, 1891, p. 82. Cf. também D. 50.12.2.
13 PUGLIESE, Giovanni. Istituzioni di diritto romano. 3. ed. Torino: G. Giappichelli, 1991, p. 595.
14 Votum solvere era "s'acquiter d'un voeu" (ERNOUT, A.; MEILLET, A., Dictionnaire étymologique de la langue latine, cit., p. 634). Solvo originaria, posteriormente, as palavras absolvo, absolutus, absolutio, e significava "romper", "quebrantar", "satisfazer", "livrar-se de", "saldar", "liquidar", etc. (SARAIVA, F. R. dos Santos, Novíssimo dicionário latino-português etimológico, prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico, etc., cit., p. 1.111).
15 FIRPO, Giulio. Votum. In: Novíssimo Digesto Italiano. Torino: Unione Tipografico - Editrice Torinese, [s.d.], v. 20, p. 1.060.
16 É importante notar desde já a dicotomia havida entre solvere e damnatio: votum solvere (solvere que mais tarde originaria absolvere, absolver) era "desligar-se da promessa" e "ficar imune das penas religiosas", ao passo que voti damnatus (expressão com o termo damnatio, que depois engendraria condemnatio, condenar) era "submeter-se às penas religiosas por ter descumprido uma promessa".
17 Álvaro D'Ors acrescentou outras duas modalidades às já conhecidas: o legado optio servi (legado de opção) e o legado partitio (legado de partição), sem, porém, indicar em que fontes se baseava (D'ORS, Álvaro. Derecho privado romano. 9. ed. Navarra: EUNSA, 1997, pp. 373-375).
18 BIONDI, Biondo. Corso di diritto romano. Diritto ereditario. Milano: A. Giuffrè, 1934, p. 241.
19 BIONDI, Biondo. Legato (diritto romano). Novíssimo Digesto Italiano. Torino: Unione Tipografico - Editrice Torinese, [s.d.], v. 9, pp. 559-560.
20 A idéia de vínculo e de obrigação que brota da expressão dare damnas é tão forte que alguns autores chegaram às raias de considerar dita cláusula como predecessor da dare oportet dos tempos clássicos. Cf. THOMAS, Paul. La nature de la damnatio. Revue historique de droit français et étranger. Paris: Recueil Sirey, série 4, ano 10, 1931, p. 232.
21 SENN, Félix. Nexum: contract de prêt du trés ancien droit romain. Nouvelle revue historique du droit français et étranger. Paris: Recueil Sirey, ano 29, 1905, p. 52.
22 Para análise das três correntes derivadas de Huschke, Mitteis e Lenel, bem como de seus seguidores, veja-se NOAILLES, Pierre. Fas et ius: études de droit romain. Paris: Les Belles Lettres, 1948, pp. 49-57.
23 Em tempos posteriores (em torno de 260 a.C., época que sabe-se ter sido de significativo crescimento da cunhagem de moedas de prata, com o exaurimento das fontes de cobre), a pesagem do metal se transformou em mero ato simbólico: as partes se detinham a tocar a balança com pedaços de cobre (JÖRS, Paul; KUNKEL, Wolfgang. Derecho privado romano (trad. L. Pietro Castro). Barcelona: Labor, 1965, p. 131).
24 IMBERT, Jean. Fides et nexum. Studi in onore di Vicenzo Arangio-Ruiz. Napoli: Jovene, [s.d.], v. 1, p. 358.
25 NOAILLES, Pierre, Fas et ius: études de droit romain, cit., p. 114.
26 A condição de nexus parece ter surgido enquanto solução à paupérrima realidade que assolava algumas classes da sociedade romana da época, que, não possuindo bens às garantias de seus débitos, tinham de submeter suas próprias pessoas como penhor (GIOFFREDÌ, Carlo. Nexum. Novíssimo Digesto Italiano. Torino: Unione Tipográfico - Editrice Torinese, [s.d.], v. 11, p. 271). De outro lado, enquanto credores, os patrícios usavam o empréstimo de dinheiro e cereais como meio de acumular homens e mão-de-obra para seus latifúndios, sistemática peculiar à Antigüidade que contribuía para o ininterrupto domínio da classe patrícia e faziam-na perpetuar enquanto senhora de Roma (WEBER, Max. Historia económica general (trad. Manuel Sánchez Sarto). México: Fondo de Cultura Económica, 1997, pp. 62-63).
27 Prova complementar do sentido de damnatio enquanto espécie de "vínculo" é revelada por certa passagem das XII Tábuas (VIII, 16): SI ADORAT FURTO, QUOD NEC MANIFESTUM ERIT, DUPLIONE DAMNUM DECIDITO. No trecho, damnum decidere pode ser traduzido por "decidir o vínculo", a exprimir a função do juiz quando examinava alguma relação conflituosa posta sob seus olhos. Expressão, por sinal, que não pode andar desacompanhada de seu antônimo da época: a palavra solvere, que desde então já significava "desobrigar-se", "desvincular-se". Não é por acaso que o processo civil dos séculos posteriores acabou tendo de um lado condemnare (cum + damnare) e de outro absolvere (ab + solvere).
28 SCIALOJA, Vittorio. Procedimiento civil romano: ejercicio y defensa de los derechos (trad. Santiago Santis Melendo e Marino Ayerra Redin). Buenos Aires: EJEA, 1954, p. 149.
29 Importante aludir que o iudicium era alcançado por meio da legis actio sacramento, ação tão arcaica que parece ter derivado da prática jurídica grega dos tempos heróicos (SCIALOJA, Vittorio, Procedimiento civil romano: ejercicio y defensa de los derechos, cit., p. 140). O sacramentum enquanto procedimento não tinha por escopo o adimplemento de obrigações não cumpridas, mas a punição daqueles que houvessem prestado juramento falso perante as divindades. Ainda que a declaração do que era o justo concreto fosse decorrência do juízo sacral, a finalidade deste era puramente ordálica; a decisão do sacramentum representava nada mais do que a vontade divina (LEVY-BRUHL, Henri. Le sacramentum in personam. In: Studi in onore di Vicenzo Arangio-Ruiz. Napoli: Jovene, [s.d.], v. 2, p. 17). Caso restasse provada a falsidade de seu juramento, o sujeito, nos primeiros tempos, tornava-se homo sacer, e podia inclusive ser morto em sacrifício (sacer facio) aos deuses para que a fúria destes fosse apaziguada (MEIRA, Sílvio A. B. O homo sacer no antigo direito romano. Romanitas: Revista de Cultura Romana (língua, instituições e direito). Rio de Janeiro: Romanitas, 1959, ano 2, v. 2, pp. 94-96). A garantia pelo próprio corpo foi substituída ainda na idade régia pelo depósito de animais: aqueles que haviam sido dados pelo sucumbente eram consagrados e sacrificados às divindades. Em tempos mais adiantados, o sacramentum tornou-se pecuniário e servia de soma expiatória, para, já no período helênico, transformar-se em mera poena que revertia ao erário em punição à sucumbência.
30 Para ilustrar, recorde-se que nesta época Roma começava sua dilatação bélica, guerreando contra os montanheses a partir de 430 a.C. e contra a Etrúria de 387 a 347 a.C. (PIGANIOL, André. Histoire de Rome. Paris: Presses Universitaires de France, 1939, pp. 51-67). Também nestes idos, Cneus Flavius - secretário de um jurisconsulto - publicou o calendário pontifical e um livro com as fórmulas processuais que até então eram detidas apenas pelos colégios pontificais, abrindo aos profanos o estudo e o desenvolvimento do direito (D. 1.2.2.7). Esses e outros acontecimentos contribuíam para que uma idéia de Populus Romanus brotasse com cada vez mais força e, de certa forma, em substituição à religião que antes tudo impregnava.
31 É o que confirma a Lei das XII Tábuas, III, 1, na senda da legislação que à época instituía o sistema capitalista da Antigüidade romana (lex Aeternia Tarpeia, de 454 a.C.; lex Menenia Sestia, de 452 a.C.; lex Papiria Julia, de 430 a.C.), dando ensejo à execução por barras de metal (aes), depois por lingotes (barras de metal fundido grafados com o termo ROMANOM), e depois por moedas (MOMMSEN, Theodore. Histoire de la monnaie romaine (trad. Duc de Blacas). Paris: [s.n.], [s.d.], t. 1, pp. 173-178). Isso não afasta, entretanto, que em tempos anteriores (quando inexistia a prática do cobre e da moeda) a execução fosse feita pela própria coisa (in ipsam rem), como menciona Gaio em suas Institutiones (IV, 48), a mitigar inclusive uma suposta divisão original de ações in personam e ações in rem (ROMANO, Angela. Condanna "in ipsam rem" e condanna pecuniaria nella storia del processo romano. Labeo: rasegna di diritto romano. [s.l.]: [s.n.], 1989, n. 28, p. 145).
32 Diga-se, aliás, que o mês que antecedia a execução só valia para quem estivesse sujeito a determinada obrigação por conta de um iudicium ou de uma confissão (conforme noticia a Lei das XII Tábuas, III, 1-2), e não por uma damnatio, que podia dar azo à direta manus iniectio a qualquer tempo.
33 Fritz Schulz adverte que mesmo o surgimento do vocábulo obligatio é tardio, concomitante à lapidação de sua noção enquanto vinculum iuris. Como as palavras evoluem atadas à contingência que representam, o antecedente obligare aparecia com o significado de "atar" (SCHULZ, Fritz. Derecho romano clásico (trad. José Santa Cruz Teijeiro). Barcelona: Bosch, 1960, p. 435).
34 Já em tempos posteriores, a religião cedeu espaço para noções secularizadas, sem que os institutos jurídicos perdessem, porém, o arraigamento cultural que lhes era intrínseco. Especificamente no caso da damnatio, a submissão que antigamente era religiosa parece ter sido substituída por uma submissão ao populus Romanus, ao esboço de Estado que se formara com a evolução da República; e por isso essa submissão não poderia mais ser o ponto de partida, mas o ponto de chegada de um processo de conhecimento judicial que culminasse na instituição dessa submissão, numa sentença cum damnatio, depois de detectada que uma obrigação (aqui sim no sentido de vinculum iuris) havia sido descumprida.
35 JHERING, Rudolf von. L'Esprit du droit romain (trad. O. de Meulenaere). 3. ed. Paris: [s.n.], 1886-1888, t. 1, p. 151.
36 Era, por exemplo, afastado das cerimônias religiosas citadinas (WORMS, René, De la volonté unilatérale considérée comme source d'obligations en droit romain et en droit français, cit., p. 71).
37 Dentre eles, pode-se dar destaque a Giovanni Pugliese (Il processo civile romano: le legis actiones. Roma: Ricerche, 1961-62, p. 309), Carlo Augusto Cannata (Profilo istituzionale del processo civile romano: le legis actiones. Torino: Giappichelli, 1980, p. 38, nota 1) e Bernardo Albanese (Il processo privato romano delle legis actiones. Palermo: Palumbo, 1993, pp. 49-50).
38 Era necessário que o magistrado pronunciasse o addicere, um dos tria verba legitima, para que imantasse a conduta executória de legitimidade. É que addictio exprimia idéia de sobreposição ao dicere do privado de um outro dicere por parte do magistrado, que confirmava autoritativamente as últimas palavras da legis actio pronunciada pelo autor (tibi manum inicio), e assim permitia o apossamento do réu por parte do autor (ALBANESE, Bernardo, Il processo privato romano delle legis actiones, cit., p. 44). A função pretoriana na manus iniectio, portanto, era autorizar o credor e mandar o devedor não resistir. Ao lado disso, a lei exercia papel de limitador da conduta humana, ao dispor, com rigidez, as exatas formalidades que o atuante devia obedecer para que pudesse implementar forçadamente a prestação acertada. Dentre os romanos, assim como nos primórdios da evolução jurídica germana, o poder coercitivo da forma era chamado para representar esse papel, que em tempos mais avançados seria incorporado como dever de um vigoroso e onipotente Estado (ENGELMANN, Arthur; et alii. History of continental civil procedure (trad. Robert Wyness Millar). Nova Iorque: Rothman Reprints e Augusts M. Kelley, 1969, p. 373).


Extraído do CD Magister 28, ago/set 2009

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