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12 novembro 2009

A FIGURA PROCESSUAL DO OFENDIDO


Parte 1/2


Sergio Demoro Hamilton
Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e Professor Universitário.


1. Há muito que estou a ocupar-me de alguns institutos versados em nosso processo penal, cuidando de pontos polêmicos neles encontrados, ao mesmo tempo, em que venho propondo sugestões no sentido de aprimorá-los, na vã esperança que possamos vir a ter um CPP mais sistemático e moderno ao invés da colcha de retalhos em que se transformou aquele importante diploma legislativo.


2. Aqui e agora, voltaremos ao estudo da prova oral, abordando um novo tema, versado apenas em um artigo do CPP (201), porém rico em particularidades, muitas vezes relegadas a um exame realizado de forma aligeirada e superficial. Refiro-me ao ofendido. No curso do processo, ele é, muitas vezes, chamado de vítima (particularmente nos crimes de lesão corporal e nos casos de homicídio), ao passo que, em outras oportunidades, cognominado de lesado (nos crimes contra o patrimônio).


Nesta oportunidade, visto, como meio de prova (Livro I, Título VII, Capítulo V, art. 201 do CPP), usaremos o vocábulo abrangente, ofendido, que, aliás, foi o adotado pela lei, quando dele se ocupou.


O Capítulo V, "Da Prova", tem como rubrica "Das perguntas ao ofendido" (art. 201 do CPP). Aliás, desde a fase da instrução preliminar, quando do inquérito policial, há referência expressa ao ofendido (art. 6º, IV do CPP).


3. O ofendido integra os meios subjetivos de prova, isto é, aqueles relacionados com as pessoas. É o que ocorre, igualmente com a prova testemunhal, com o interrogatório do acusado e com a confissão. Tais meios de prova são designados também como prova oral (do latim, os oris), isto é, aqueles produzidos por meio da palavra. Como já assinalamos em outro estudo, voltado para a prova testemunhal, tal modalidade de manifestação probatória destaca-se daquela de caráter objetivo, qual se colhe do exame corpo de delito, dos documentos e das perícias em geral.


4. O ofendido, tal como aqui será estudado, nada mais é que a pessoa que sofre diretamente a ação criminosa. Sabe-se que o Estado é o sujeito passivo eminente de toda a infração penal. Porém, na acepção em que, no momento, está sendo examinado, o ofendido é a pessoa (física ou jurídica) atingida de forma direta pelo ato criminoso. É a pessoa assassinada, no caso de homicídio consumado, é o estabelecimento bancário, lesado por um estelionato e assim por diante.


Portanto, a vítima não será examinada como sujeito processual da instância penal, como querelante nos crimes de ação privada, mas sim como meio de prova.


Como bem observa Tornagh(1), em passagem clássica e bastante difundida pelos autores em geral, nem sempre quem sofre a lesão causada é o sujeito passivo. Traz como exemplo, o crime de moeda falsa (art. 289 do CP) em que o sujeito passivo é o Estado, titular da fé pública; porém, não se pode negar que a pessoa que recebeu o dinheiro falsificado foi o ofendido em seu patrimônio.


Portanto, não deixa de ser correta a afirmação de que o ofendido é quem sofre, de forma imediata, a lesão causada pela infração penal.


5. No presente trabalho vamos estudar o ofendido como meio de prova, tal como ele está rotulado no CPP, isto é, no Título da Prova (2, supra). No entretanto, como sabido, ele pode assumir outras posições, no decorrer do processo.


Assim, ele pode ser parte nos casos de ação penal de iniciativa privada (arts. 30 e 31 do CPP), tomando a designação de querelante, propor a ação civil ex-delicto (art. 63 e seguintes do CPP); intervir como assistente do MP no decorrer de ação penal pública (art. 268 do CPP) 2; recorrer, tenha ou não ingressado no processo como assistente (apelação subsidiária – art. 598 do CPP) e ingressar com a impropriamente chamada ação privada subsidiária da pública (art. 29 do CPP).


Repita-se, por oportuno, que o objeto do presente estudo não se refere à presença do ofendido como participante, com maior ou menor intensidade, na relação processual mas sim como meio de prova ou, caso assim possa ser entendido, como fonte de prova.


6. Iniciemos, pois, o estudo a respeito do ofendido, tomando como base o art. 201 do CPP. É certo que, já na fase do inquérito policial, a lei (art. 6º, IV), de forma singela, mas imperativa, determina a ouvida do ofendido (a cabeça do dispositivo indica que a autoridade policial "deverá"). Por seu turno, a Lei Maria da Penha (11.340/06) estabelece como primeira medida da autoridade policial, como é natural, que, em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, seja ouvida a ofendida, lavrando-se o boletim e tomando-se por termo a representação, se apresentada (art. 12, I).


No entanto, situa-se no art. 201 do CPP todo o roteiro que possa servir de base para o estudo da figura processual do ofendido. O dispositivo em tela determina que "sempre que possível" o ofendido será ouvido.


A primeira conclusão a que se pode chegar é a de que a parte não está obrigada a arrolar o ofendido para que ele preste declarações. É dever jurídico do juiz colher sua palavra. Aliás, sempre que estiver em jogo crime de ação penal pública incondicionada, a vontade do ofendido não conta, podendo, inclusive, o inquérito policial ser instaurado até por notícia-crime emanada de qualquer do povo (art. 5º, parágrafo terceiro, do CPP). Não fica, assim, à mercê do juiz, nem das partes e, muito menos do ofendido, prestar declarações. A lei exige sua fala.


O Pretório Excelso já manifestou entendimento no sentido de que a audiência do ofendido é facultativa (RTJ 62/532), consistindo em mera faculdade processual sua presença no process(3). Com a devida vênia, parece-me que tal compreensão da matéria colide com os dizeres da lei. É preciso distinguir: uma sentença, mesmo condenatória, pode ser prolatada sem a palavra do ofendido, desde que haja prova suficiente para tal. Aliás, é assim que ocorre no Júri, nos casos de homicídio consumado, ou ainda, quando ele, ofendido, em qualquer infração penal, não tenha meios de expressar-se ou não venha a ser localizado. É caso de aplicar-se o brocardo ad impossibilia nemo tenetur. Nenhuma prova ex vi legis assume valor absoluto no sistema do Código (item VII da Exposição de Motivos do CPP). Isto não quer dizer que a palavra do ofendido seja dispensável, uma vez que, se possível, ele deverá prestar declarações, sendo notificado para esse fim. Caso deixe de comparecer, sem motivo justo, poderá ser conduzido à presença da autoridade (art. 201 do CPP).


Releva observar que a lei fez referência à "autoridade", o que significa dizer que não só a autoridade judicial no processo como a policial no inquérito pode exigir coercitivamente a presença do ofendido na fase que precede a demanda. E assim tem que ser, desde que se trate de crime de ação pública incondicionada, pois a vontade do ofendido não pode obstar a propositura da ação penal, que se seguirá ao inquérito policial. Como a autoridade policial poderia investigar o fato criminoso (ela "deverá"- art. 6º, IV do CPP) e o MP exercer seu múnus (ele terá que intentar a ação penal, por força do princípio da obrigatoriedade – art. 24 do CPP), caso o ofendido não desejasse comparecer e nada ocorresse. No fim de contas, inquisitio sine coertione nulla est.


Mais ainda: sendo um meio de prova (Livro I, Título VII, Capítulo V, art. 201 do CPP) e adotando o Código o princípio da verdade real, todos os meios de prova possíveis, desde que lícitos, devem ser carreados para o processo.


Tourinho(4), com base no ensinamento de Hungria (5), afasta a possibilidade de o ofendido ser processado pelo crime de desobediência, pois o Código impôs a medida administrativa de condução coercitiva à vítima que não atende à intimação. Assim, não poderia haver o bis in idem de penalidades, desde que o ofendido desatenda ao chamamento, quando a lei já comina uma penalidade administrativa ou civil, salvo se a própria lei, de forma expressa, determinar a aplicação cumulativa com o crime de desobediência.


Diversa é a situação da testemunha; em relação a ela o juiz (aqui somente ele) tem a faculdade de, igualmente, providenciar o processo penal por desobediência, uma vez que a lei assim dispôs, enviando peças ao MP em razão do sistema acusatório adotado em nossa Carta Magna (art. 129, I), para que o Parquet aprecie a hipótese.


7. Outra observação a merecer destaque é que o Código distinguiu o ofendido da testemunha. Enquanto esta é tratada nos arts. 202 a 225 do CPP, a lei processual penal reservou apenas um dispositivo, contendo, agora, seus parágrafos, para o ofendido. Isto não quer dizer que não se possa aplicar, servatis servandis, diversas regras indicadas na lei para as testemunhas. É o caso dos arts. 204, 205, 210, 212, 215, 217 (com a nova lei já fazendo alusão também ao ofendido), 220, 222, 223, 224 e 225 do CPP.


Observa-se, em primeiro lugar, que o ofendido não presta o compromisso, sob palavra de honra, de dizer a verdade, tal como previsto no art. 203 do CPP, para as testemunhas ditas numerárias. Como, no meu entendimento, o compromisso não passa de resquício do sistema de provas legais, já que, qualquer testemunha, mesmo as chamadas informantes, tem o dever de ser veraz, até porque, para a caracterização do crime de falso testemunho (art. 342 do CPP), o compromisso não é elementar do tipo. Sobre o desvalor do compromisso já tivemos a oportunidade de estudar, com detalhe, a matéria, não sendo aqui a sede adequada para retornar, com vagar, ao exame do tema (6).


Isto não significa dizer que o ofendido, no processo penal, possa mentir. É certo que ele não pratica o crime de falso testemunho, pois entre as pessoas enumeradas na lei que podem figurar como sujeito ativo da infração penal em tela ele não se inclui. Somente a testemunha, o perito, o contador, o tradutor ou o intérprete podem ser agentes do crime (art. 342 do CP).


Tal fato, no entanto, não o exime de dizer a verdade e se não o fizer pratica infração penal contra a administração da justiça ou, mais precisamente, o crime de denunciação caluniosa (art. 339 do CP), que, por sinal, é apenado de forma mais severa que o falso testemunho.


Ao contrário das testemunhas compromissadas não há limitação numérica para o arrolamento de ofendidos. Enquanto, para aquelas, a lei processual estabelece um limite máximo em relação ao número, no que respeita ao ofendido a lei silenciou, dando margem a que possa ser ouvido um número indeterminado de vítimas. É nesse momento que incumbe ao juiz prover a regularidade do processo (art. 251 do CPP), evitando a procrastinação da ação penal e a alicantina, ao vedar o excesso acaso praticado em relação ao número de ofendidos.


8. O Código nada diz a respeito na fase pré-processual no que respeita às declarações do ofendido. Manda, apenas, que a autoridade policial deva ouvi-lo (art. 6º, IV do CPP) Aplica-se, no caso, mutadis mutandis, a normatização contida no art. 201 e seus parágrafos do CPP.


9. O momento consumativo do crime de denunciação caluniosa, a que aludimos acima (7, supra), dá-se com a instauração da investigação policial. Usando a lei penal material as expressões "investigação policial", "investigação administrativa", "inquérito civil" ou "ação de improbidade administrativa", basta o início da investigação, seja ela qual for, para que se tenha como consumada a infração penal por parte do ofendido, desde que a iniciativa de procedimento tenha dele partido.


Indaga-se: é possível, após a consumação, a retratação?


Entendo que o caso configura uma hipótese de "arrependimento eficaz", só respondendo o ofendido pelos atos já praticados (art. 15 do CP).


Há quem vislumbre, na hipótese, a configuração, tão-somente, de uma atenuante genérica (7). Portanto, a questão não é pacífica.


De qualquer maneira, o ofendido, agora criminoso confesso, buscou, após o crime minorar-lhe as conseqüências, mas terá que reparar o dano causado (material e moral) antes da sentença.


10. Uma situação extremamente delicada consiste em saber se o ofendido sujeita-se à contradita do art. 214 do CPP.


Espínola Filho (8), de forma peremptória, sustenta não estar ele sujeito à contradita, nem sofrer seu depoimento o ataque da parte contrária, pois o art. 214 do CPP somente faz referência às testemunhas.


Tal colocação leva-nos a uma indagação dela inseparável. O contraditório incide sobre as declarações do ofendido?


O Supremo (9) já manifestou entendimento no sentido de que as partes não intervêm no seu procedimento e que o princípio do contraditório não incide sobre as declarações do ofendido.


Bento de Faria (10), em passagem aligeirada sobre a figura do ofendido, chega ao ponto de afirmar não ser a vítima meio de prova "mas um auxílio prestado a Justiça para o fim de serem as provas conseguidas".


Polastri (11), no meu entendimento, com inteiro acerto, refuta tal ponto de vista, sustentando que as partes não ficam impedidas de fazer perguntas à vítima, em nome do princípio do contraditório.


Com efeito, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados, em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV da CF). Portanto, é direito constitucional das partes e do juiz submeter o ofendido ao contraditório, formulando as perguntas que entenderem cabíveis.


Como conseqüência do que ficou exposto, sustento que o ofendido fica sujeito à contradita. É certo que o art. 214 cogita apenas da testemunha, mas tanto esta como a vítima integram a prova oral e o relevo das declarações de ambas apresenta igual valia. Explica-se o fato pela circunstância de que a lei processual penal dedicou apenas um único artigo (201) para o ofendido, reservando para a prova testemunhal os arts. 202 a 225. Daí, a omissão quanto à contradita.


Veja-se o absurdo que seria não oferecer contradita em relação a um ofendido suspeito ou indigno de fé. Suponha-se que a vítima tenha deflagrado a investigação por vingança ou por qualquer outro motivo torpe. Será, a toda evidência, suspeita de parcialidade. Imagine-se, ainda, o caso em que o ofendido seja indigno de fé (notório marginal por exemplo). É evidente que em tais casos teria cabimento a contradita, aplicando-se a parte final do art. 214 do CPP, no que couber.


Por fim, cabe registrar que a posição do eminente tratadista do processo penal, Bento de Faria, não merece acolhida, uma vez que ele nega seja o ofendido um meio de prova. Ora, as "Perguntas ao ofendido" integram o Capítulo V, do Título VII, que trata exatamente "Da Prova". E isto diz tudo.


Notas do Autor:


1 Tornaghi, Helio, "Curso de Processo Penal", vol. 1, p.386, Editora Saraiva, 1989.
2 Em relação ao instituto da assistência de acusação, consulte-se a posição de Lima, Marcellus Polastri, para quem, a CR/88, iniludivelmente, adotou o sistema acusatório (art. 129, I da CF),ficando a promoção da ação penal pública privativa do MP. Portanto, nesse passo, segundo aquele ilustre processualista, as regras do CPP sobre o tema não se viram recepcionadas pela Lei Maior. In, "Manual de Processo Penal", pp. 463 e seguintes, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2007.
3 Julgado extraído do "Código de Processo Penal Anotado" de Jesus, Damásio E. de, p. 184,
22ª edição, Editora Saraiva, 2005.
4 Tourinho Filho, Fernando da Costa. "Processo Penal", vol. 3, p. 305, Editora Saraiva, 2008.
5 Hungria, Nélson. "Comentários ao Código Penal", vol. IX, p. 420, Forense, Rio, 1959.
6 Veja-se a propósito meu estudo "O compromisso da testemunha no processo penal", publicado na Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, vol. 25, págs. 11/23, Editora Magister, Porto Alegre, RS.
7 Ap. Crim. TJSP 118-273, JTJ, 143-279 e 280, julgados extraídos do "Código Penal Anotado", de Jesus, Damásio E. de, p. 1055, Editora Saraiva, 2002.
8 Espínola Filho, Eduardo. "Código de Processo Penal Anotado", vol. 3, p. 57, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1965.
9 Apud op. cit. in nº 03 dessas notas, p. 184.
10 Faria, Bento de. "Código de Processo Penal", vol. I, p. 301, Distribuidora Record Editora, RJ, 1960.
11 Lima, Marcellus Polastri. "Curso de Processo Penal", vol. II, p. 133, Lumen Juris Editora, RJ, 2006.

Extraído de CD Magister 27, jun-jul/2009.

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