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13 novembro 2009

A FIGURA PROCESSUAL DO OFENDIDO


Parte 2-Final


Sergio Demoro Hamilton
Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e Professor Universitário.

11. Voltemos ao exame do conteúdo do art. 201 do CPP, pois ali, praticamente, fica esgotado tudo o que o legislador pretendeu em relação à figura processual da vítima, agora enriquecido com o advento da Lei 11.690/08.


Manda a lei seja o ofendido qualificado. Qualificar alguém significa colher o conjunto de qualidades que ornamentam uma pessoa. A regra vale tanto para o juiz como para a autoridade policial (art. 6º, IV do CPP) e deve conter, se possível, o nome completo do ofendido (cada qual em momento procedimental adequado), o vulgo, o estado civil, a data de nascimento, a naturalidade, a nacionalidade, a filiação, a indicação do local de trabalho e da residência, o número do registro civil e o do CPF. Tais dados são relevantes em razão de eventual responsabilidade da vítima pelo crime de denunciação caluniosa, assim como para que o réu possa saber, com precisão, quem deu margem à investigação contra si. Nem sempre, se encontrará, qualificação tão completa. Porém, ela deverá ser a mais detalhada possível. Observe-se que a Lei 11690/08 na sua Seção I (Capítulo II), objetivando a proteção da vítima, entre outras providências, veio restringir a publicidade em relação aos dados do ofendido, ao determinar que eles possam ficar em segredo de justiça. Portanto, eles deverão restar arquivados em cartório, somente tendo acesso àquelas informações o Juiz, o MP, o advogado do réu e o próprio escrivão que os têm em guarda. Tudo isso, sem prejuízo das medidas de resguardo indicadas na Lei 9807/99 que serão examinadas no item 12, infra, e que, no entanto, dependem de requerimento de uma das pessoas indicadas no art. 5º do referido diploma legal que se ocupa do ingresso no programa de proteção às vítimas de crime.

Prestará, também, esclarecimentos sobre as circunstâncias da infração. Antes de tudo, embora a lei não o diga, impõe-se deixar claro que a vítima, como é óbvio, terá que ser perguntada, inicialmente, sobre o fato e a autoria para, ao empós, completá-las sobre as circunstâncias. Sua fala, evidentemente, não irá ter começo pelas circunstâncias...

A circunstância é, por natureza, complementar, secundária, elucidativa do fato principal.

Uma observação técnica: o ofendido é perguntado (art. 201 do CPP) e presta declarações; a testemunha é inquirida e presta depoimento; o acusado, por sua vez, é interrogado (art. 185 do CPP) e presta esclarecimentos, caso não venha a optar pelo silêncio (art. 186, in fine, do CPP). Nem sempre no dia-a-dia do foro há observância de tal tecnicismo, que, de mais a mais, não assume as véstias de dogma de fé.

Impõe-se, também, que o ofendido indique o autor da infração ou, ainda, quem presuma ser o autor da infração penal. Assim, admite a lei que a vítima indique apenas o autor que, segundo ela, presume, tenha praticado a infração penal. Caberá ao juiz, em tal caso, de acordo com sua livre convicção, dar àquela indicação o valor que entender cabível quando da sentença.

Por sinal, a lei processual permite, até mesmo, que a própria acusação seja formulada através dos "esclarecimentos pelos quais se possa" identificar o imputado (art. 41 do CPP), isto é, sem uma qualificação completa a respeito da pessoa do réu. Portanto, o ofendido também poderá, da mesma forma, não fornecer todos os dados em relação à pessoa do acusado, desde que certa a sua identidade física, pois inexiste ação penal contra pessoa incerta (art. 259 do CPP).

Ainda some-se ao art. 201 do CPP, que o ofendido, em suas declarações, aponte "as provas" de que dispõe a respeito da imputação.

Aqui, impõe-se, uma distinção; em se tratando de crime de ação pública, o MP já indicou com a inicial de acusação as provas que pretende produzir. Não obstante isso, nada obsta que na fase de diligências (art. 499 do CPP) venha a requerer a complementação da prova em função de fatos novos apurados no decorrer da instrução criminal. Igualmente, o juiz poderá, antes da sentença, com base nas provas trazidas pelo ofendido ou pelo MP, mandar produzi-las (art. 502 do CPP). Os dispositivos de lei acima referidos integram o procedimento ordinário, mas, como de conhecimento vulgar, servem de subsídio para qualquer rito adotado, seja ele do próprio CPP, seja ele constante de lei especial (art. 394, § 5º do CPP).

As declarações da vítima são tomadas por termo (art. 201, parte final, do CPP), como ocorre no processo escrito e, até mesmo, no caso da oralidade, quando o resumo do que foi dito no processo fica registrado.

Nada impede, no entanto, que sejam aplicadas, por analogia, ao ofendido mudo, surdo ou surdo-mudo, as previsões legais que integram o art. 192 do CPP.

12. Será possível a ocultação dos dados qualificativos da vítima?

O CPP não previu tal providência. Quando da sua elaboração os tempos eram outros. Não grassava a violência atual nem se falava em "crime organizado".

Por sinal, em relação ao ofendido, o Código não poderia ter sido mais parcimonioso, muito embora, por força da Lei 11.690/08, tenha merecido maior amplitude.

Parece-me, no entanto, que, em razão da notória violência de que todos temos conhecimento, a providência terá total cabimento, diante dos termos da Lei 9.807/99 e, agora, por força do § 6º. do art. 201.

Particularmente, penso eu, que a medida terá lugar quando o crime for praticado mediante violência ou grave ameaça. Podem, postular a solicitação para ingresso no programa de proteção às vítimas de crime uma das pessoas enumeradas no art. 5º da Lei 9.807/99.

Assinale-se que a Lei 9.807/99, estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, prevendo, inclusive, a celebração de convênios, acordos, ajustes ou termos de parceria entre a União, os Estados e o Distrito Federal ou, ainda, com entidades não-governamentais, com aquela finalidade.

É preciso ter em conta que o ingresso no programa da Lei 9.807/99 dependerá, sempre, de anuência da pessoa protegida ou de seu representante legal (art. 2º, § 3º), que, a qualquer tempo, poderá solicitar a sua exclusão do programa (art. 10, I). Pode, ainda, ocorrer a exclusão do programa de proteção caso venha a dar-se uma das situações indicadas nos demais incisos do art. 10 da Lei 9.807/99. Averbe-se que a proteção terá a duração máxima de dois anos, podendo, em circunstâncias excepcionais, ser prorrogada, desde que perdurem os motivos que autorizaram o ingresso no programa por parte da vítima.

Não resta dúvida, que o princípio da publicidade, próprio do processo penal (art. 792 do CPP), sofrerá mitigação, tal como permitido no parágrafo primeiro do aludido dispositivo e, no momento, pelas Leis 9.807/99 e 11.690/08. Aliás, o princípio da publicidade tem assento na própria CF (art. 5º, LX e 93, IX) tal a sua relevância. No entanto, no caso, por razões importantes, ele terá que ser restringido, como, por sinal, o permite a Lei Magna.

Para tanto, no objetivo de ocultação da qualificação do ofendido, somente poderão ter acesso aos autos, o juiz, o MP e, evidentemente, o advogado constituído pelo réu, vedando-se a vista aos feitos criminais naquelas condições a qualquer pessoa do povo.

Ficarão arquivados em cartório todos aqueles dados identificadores referidos acima, integrantes da qualificação do ofendido (11, supra), tais como o endereço e todas as demais indicações da vítima que possam levar à sua localização.

Por sinal, tais cuidados na ocultação dos dados qualificativos do ofendido deverão ser feitos, desde logo, já na fase do inquérito policial, mediante autorização judicial, embora possa a autoridade policial de imediato, decretar o sigilo necessário no sentido de proteger a vítima (art. 20 do CPP), observadas as limitações legais, inclusive as decorrentes do Estatuto da Advocacia e da OAB.

13. Questão interessante consiste em saber qual seja o valor probatório que possa merecer palavra do ofendido. Sabe-se que a testemunha é sujeito secundário e imparcial do processo. E a vítima? Não se pode, humanamente falando, considerá-la como sujeito totalmente imparcial do processo por ser uma pessoa envolvida no fato, pois foi ela que sofreu, diretamente, a prática da ação criminosa.

Porém, tecnicamente, o ofendido integra os meios de prova contemplados no Código, apresentando, do ponto de vista processual, o mesmo valor das demais provas (Livro I, Título VII, Capítulo V, art. 201 do CPP). É quanto basta. Uma vez adotado o sistema da livre convicção motivada do juiz, cabe ao magistrado dar à palavra da vítima o valor que entender cabível, motivando sua decisão. Basta ver a lei e consultar a "Exposição de Motivos", em seu item VII do CPP.

Aliás, nos chamados delitos clandestinos, a palavra da vítima assume especial relevo, pois comumente tais crimes não são presenciados e jamais seriam investigados sem as declarações da vítima.

É o caso dos crimes contra os costumes, que se processam às ocultas, onde a palavra da vítima, principalmente se roborada pelo exame médico legal, constitui prova irrecusável do delito.

Não há razão, mínima que seja, diante do sistema de prova adotado em nosso direito processual, para se por em dúvida o pleno valor que as declarações do ofendido possam merecer, não somente nos chamados delitos clandestinos como também em qualquer outra infração penal.

É evidente que estou a referir-me às declarações do ofendido prestadas em juízo, sob o crivo do contraditório (10, supra).

Portanto, o temor que suas declarações sejam movidas por ódio, vingança, interesse na reparação do dano ex delicto etc é, de todo, infundado, dentro do sistema da persuasão racional adotado em nossa lei processual.

14. Haverá nulidade para o processo caso o ofendido não seja ouvido?

No elenco das nulidades enumeradas no art. 564 do CPP não consta a figura do ofendido caso ela não se faça presente no processo. Portanto, a lei não considerou a falta das declarações da vítima como ato essencial para a validade da relação processual, sabido que, ali, no art. 564, estão indicados os chamados atos substanciais da instância penal.

Dessa maneira, caso o juiz não cumpra o dever jurídico de ouvir a vítima (art. 201, proêmio, do CPP) e o MP, quando da denúncia, não a tenha arrolado, a relação jurídica processual não restará afetada.

Diria, pois, que a regra do art. 201, primeira parte, do CPP é uma norma imperfeita pois a inobservância do preceito é destituída de sanção.

Na prática, e é natural que assim ocorra, sempre que possível, o ofendido presta declarações. É o que pude observar dentre os milhares de processos que passaram por minhas mãos. Como Promotor de Justiça, apesar dos dizeres da lei, sempre tive o cuidado de arrolar o ofendido, gerando direito à prova, caso, eventualmente, ocorresse omissão por parte do juiz na ouvida da vítima.

15. O ofendido pode ser acareado?

Visto como meio de prova, é evidente que o ofendido pode ser acareado. Aliás, há texto expresso de lei autorizando a providência (art. 229 do CPP). Note-se, porém, uma peculiaridade resultante da própria lei processual (art. 186 do CPP). Ela decorre do fato de que o acusado tem direito ao silêncio (art. 186, in fine, e seu parágrafo do CPP), podendo, mesmo, mentir, sem que daí lhe advenha qualquer conseqüência. A cláusula do nemo tenetur se detegere, consagrada em nosso processo (item VII, da "Exposição de Motivos" do CPP) ganhou ampliação. Por sinal a CF, já assegurava ao preso o direito ao silêncio (art. 5º, LXIII). Muito antes, já o dizia a Emenda nº V da Constituição dos Estados Unidos (no person shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself), de modo que, em nosso direito positivo atual, não mais sobrevive a ressalva anterior segundo a qual o silêncio do acusado poderia ser interpretado em prejuízo da própria defesa.

Nessa maneira de ver, o acusado não mais poderá ser acareado com o ofendido ou com qualquer testemunha, estando, nesse passo, revogado o art. 229 do CPP. Subsiste, no mais, acareação entre ofendidos, bem como da vítima com a testemunha ou entre as testemunhas.

16. É inegável que o Código guarda especial apreço à palavra do ofendido. Já o destacamos quando do exame da valoração de suas declarações (13, supra). Em primeiro lugar porque ela está incluída entre os meios de prova (art. 201 do CPP). É, assim, importante fonte de prova, cabendo ao juiz confrontá-la com os demais elementos de instrução, tendo em conta a natureza do crime, para que possa saber até que ponto ela merece fé, não extravasando mera indignação, sentimento de vingança ou ainda interesse na reparação do dano ex delicto, como já analisamos. Não fora isto e não se justificaria a primeira parte do art. 201 do CPP, ao mandar ouvir a vítima "sempre que possível", criando para o juiz o dever jurídico de colher a fala do ofendido, independentemente da iniciativa das partes.

Vale ponderar, como já ficou dito, que a lei penal material pune, com maior rigor a denunciação caluniosa (art. 339 do CP) que o falso testemunho (art. 342 do CP), dado que, sem dúvida, demonstra a importância das declarações da vítima.

17. A Lei 11.689/08, na sua Seção I (Capítulo II), ao tratar da acusação e da instrução preliminar no procedimento do Júri, determina que na instrução criminal o ofendido preste declarações em primeiro lugar, precedendo a inquirição das testemunhas. Por fim, é que o acusado será interrogado (art. 411 do CPP, com sua nova redação). Tal circunstância, não há negar, confere ao interrogatório o caráter nítido de ato de defesa.

Por seu turno, a Lei 11.690/08, dedica à figura processual do ofendido tratamento mais extenso, acrescentando ao atual art. 201 do CPP, diversos parágrafos, contendo uma série de medidas de proteção em prol da vítima.

Assim:

– no parágrafo segundo estabelece que o ofendido fique ciente do ingresso e da saída do réu da prisão, indicando, ainda, que ele tome ciência da data da audiência bem como da sentença e dos acórdãos relativos ao processo respectivo;

– no parágrafo terceiro, prevê que os atos de comunicação processual sejam feitos no endereço por ele (ofendido) indicado, admitindo-se o uso de meio eletrônico, desde que a vítima venha a optar por esta última forma de aviso;

– no parágrafo quarto manda que, antes e durante a audiência, fique reservado lugar separado para a vítima;

– no parágrafo quinto fixa que o juiz poderá (faculdade) encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especificando as áreas em que tal se dará (psicossocial, de assistência jurídica ou de saúde), a expensas do ofensor ou do Estado;

– no parágrafo sexto indica que o juiz poderá tomar as providências necessárias à preservação da intimidade do ofendido, através do resguardo da honra e da imagem da vítima, evitando sua exposição aos meios de comunicação e determinando o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos, ampliando, assim, os termos da Lei 9807/99 (12, supra);

– inclui, também, o ofendido no art. 217 do CPP, na medida protetora, antes reservada somente às testemunhas.

Todas estas modificações voltarão a ser analisadas em trabalho futuro, quando pretendo estudar a nova lei no seu conjunto, voltando a ocupar-me da vítima, pondo em foco de modo especial, cada uma dessas inovações.

18. Como de fácil observação, o art. 201 do CPP, com a redação que lhe emprestou a Lei 11.690/08, mereceu tratamento processual mais esmerado, muito embora algumas providências ali tratadas possam esbarrar em diversas dificuldades de ordem prática para a sua execução, circunstâncias estas que ficam para ser examinadas, de forma detalhada, quando do exame dedicado, exclusivamente, para as modificações trazidas, relativas à prova no processo penal.

Extraído de CD Magister 27, jun-jul/2009.

2 comentários:

Unknown disse...

Por favor e a parte 1 como consigo acessar? Interessante artigo. Neiva Maestri - acadêmica de direito Joinville SC

Clodoaldo Queiroz disse...

Neiva, obrigado por sua visita. A a primeira parte foi publicada no dia anterior e você pode conferir no marcador Artigos, na lateral direita do blog.
Clod