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18 novembro 2009

ABUSO DO DIREITO


Parte 2-Final

Eliane Maria Barreiros Aina


7- DA FUNÇÃO SOCIAL DO DIREITO

Conforme já dito, o movimento doutrinário e jurisprudencial mais forte em relação ao tema ocorreu na primeira metade do século, não obstante ser flagrante a relevância do assunto até os dias de hoje. Contudo, a base teórica mais substanciosa formou-se muito antes da atual Constituição. E a primeira e relevante questão que surge é quanto à posição do instituto face a uma Constituição que instituiu um Estado Social de Direito.

Pode-se infirmar que o atual sistema não trouxe qualquer incompatibilidade com o instituto, mas, muito pelo contrário, traz em sua base princípios que dão melhor amparo aos fundamentos do abuso de direito. “A bem da verdade, a quase unanimidade dos estudiosos do assunto expressa que, embora já conhecida dos romanos, a teoria do abuso de direito encontra, hoje, com a socialização do Direito, vasto campo de aplicação”[18]. Assim, se o instituto do abuso do direito funda-se contemporaneamente na limitação ao exercício dos direitos subjetivos em função do bem-estar da coletividade, a sua previsão encontra amparo constitucional nos dispositivos que prevêem que o Estado tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, como objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária e erradicar a pobreza e a marginalização social e reduzir as desigualdades sociais e regionais, e como princípios a prevalência dos direitos humanos, dentre outros.

Dessa forma, o nosso atual pacto político maior estabeleceu um Estado Social de Direito cujos princípios de solidariedade e fraternidade são a sua base. A pessoa humana e as condições para sua existência digna são o pilar dessa sociedade que, ao menos, se busca atingir. Essa nova conformação sócio-política-jurídica trouxe-nos como conseqüência a releitura do nosso ordenamento jurídico e ao “intérprete incumbirá, pois, em virtude de verdadeira cláusula geral de tutela dos direitos da pessoa humana, privilegiar os valores existenciais sempre que a eles se contrapuserem os valores patrimoniais.”[19]

a) DO DESVIO DA FUNÇÃO SOCIAL COMO ABUSO DO DIREITO

Se o nosso ordenamento jurídico vigente tem em seu ápice uma Constituição que instituiu o Estado Social de Direito é possível visualizar-se que restou fincada entre nós a função social do direito. Assim, já não bastaria mais falar-se em função social da propriedade, do contrato etc, entendendo-se que toda norma tem primordialmente uma função social, traduzindo-se esta expressão no fato de que o individualismo do início do século passado e que inspirou nosso código civil teria cedido lugar à uma sociedade solidária. A expressa menção à palavra ‘evolução’ tem o significado de reconhecer, em primeiro lugar, a importância histórica do individualismo, que bem cumpriu o seu papel na garantia da esfera de liberdade dos indivíduos frente ao Estado, e, em segundo lugar, para expressar o sentimento de que a passagem do individualismo para o social significa um ganho no sentido de que se pretende que esta liberdade e todas as conquistas referentes ao bem estar sejam partilhadas por todos, ainda que se admita que não o sejam em igual medida, mas sendo garantido a todos, pelo menos, o mínimo essencial ou fundamental.

O Estado Social de Direito pode ser reconhecido nos diversos princípios constitucionais que privilegiam as situações existenciais e de igualdade social. Estes princípios, por estarem no ápice do sistema, são os princípios que devem informar as normas infraconstitucionais e a atuação do intérprete na aplicação do direito positivo.

Dessa forma, os indivíduos no exercício de seus direitos subjetivos devem atentar se este exercício está em consonância com a função social da norma que os prevê. Para tanto, é preciso verificar se encontram respaldo nos princípios constitucionais de igualdade, solidariedade e dignidade, dentre outros. Se o exercício encontra-se em consonância com a norma, mas em dissonância com os princípios constitucionais determinantes da função social desta mesma norma, pode-se reconhecer o exercício abusivo do direito. “O abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jussubjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas, não confluírem no sistema que estas se integrem.”[20]

b) DO ABUSO DO DIREITO APENAS OBJETIVAMENTE CONSIDERADO

Pode-se dizer que esse movimento de socialização do Direito levou ao entendimento de que haveria uma constitucionalização do Direito Civil, e, como conseqüência, o esmaecimento da linha divisória entre público e privado. Assim, de forma sintética, pode-se afirmar, com base teórica nos Autores que partilham desse pensamento, que as normas constitucionais podem e devem ser aplicadas nas relações intersubjetivas, o que significa dizer a aplicação direta da constituição, sem a necessidade do aval do legislador ordinário. Para compreender esta teoria é necessário que se visualize os princípios constitucionais como normas, de observância obrigatória por todos e aos quais corresponde uma sanção.

Para alguns Doutrinadores esse novo pensamento trouxe uma releitura do instituto do abuso de direito, pois se os princípios constitucionais são normas de observância obrigatória, como dito acima, o ato que desviar-se desses princípios, e, portanto abusivo na concepção supra mencionada no ítem a, passa a ser ato ilegal, ou seja, contrário à norma, não havendo mais razão de ser para a existência do próprio instituto:

“I- A teoria do “abuso do direito é, no fundo, desnecessária, porque não implica em qualquer princípio autônomo dentro da filosofia ou da dogmática jurídica.

II- O que tal doutrina chama de ato abusivo é somente, e nada mais, um ato ilícito contra o direito e sua repressão constitui uma exigência de caráter ontológico do direito como objeto real de natureza cultural, que se obtém por via dos princípios da interpretação e aplicação das leis.

III- A ilicitude do chamado ato abusivo deriva da circunstância de que é contrário ao direito por contrariar o conteúdo axiológico da norma legal, ainda que aparente cumprido dentro dos limites objetivos assinalados pelas significações lógicas do enunciado legal.

Esse conteúdo axiológico é, desde logo, variável, e sofre mudanças e transformações através dos tempos. Poderá adquirir, segundo a época, um caráter mais ou menos individualista, mais ou menos social, mais ou menos moral, mas será sempre uma dimensão constitutiva do direito, quando tal conteúdo axiológico se incorpore ao ordenamento normativo.

Em conseqüência, para reprimir o chamado ato abusivo, não é necessário teoria ou doutrina alguma que suponha considerar os fins ou valores do direito como alheios a sua índole essencial, pois é suficiente constatar que o ato julgado é contrário à estimativa inerente ao direito expressado pelo ordenamento legal vigente, e que não é mais que um ato ilícito como qualquer outro.”[21]

Não obstante, é possível identificar que o instituto persiste como necessário e cada vez mais deverá ser utilizado. Porém, é preciso atentar que a interpretação do abuso do direito como desvio da função social explicitado no ítem a, leva à extrema objetivação do seu conceito, visualizando-o no ato conforme o direito, mas que resulte em relação a terceiros com os quais exista alguma forma de relação de fato ou de direito, em grave desproporção entre os ganhos do agente e o prejuízo do terceiro. Esta forma de conceituar o abuso do direito seria a forma de atender-se à função social do Direito e ao princípio constitucional de solidariedade.

Faz-se necessário explicitar que a desproporção entre ganho e prejuízo não deve dizer respeito somente à questões materiais, mas toda e qualquer forma de conseqüência que venha a sofrer a vítima do abuso.

Assim, a verificação se foi atendida a função social do Direito residiria objetivamente na questão da desproporção e no fato de haver alguma espécie de relação entre as partes, perdendo o instituto as características de subjetividade com as quais foi inicialmente reconhecido. “O abuso ocorre, pois, especialmente, quando o exercício do direito, anti-social, compromete o gozo dos direitos de terceiros, gerando objetiva desproporção, do ponto de vista valorativo, entre a utilidade do exercício do direito por parte de seu titular e as conseqüências que outros têm que suportar.”[22]

Dessa forma, em uma relação jurídica que se estabeleceu de fato ou de direito, o equilíbrio das vantagens e desvantagens dela decorrentes deve existir sob pena de, não obstante o atuar do agente conforme o direito, surgir a obrigação de ressarcir, ou fazer, ou deixar de fazer algo para restabelecer o equilíbrio da balança. P. PERLINGIERI ao referir-se aos atos emulativos no direito italiano reflete com bastante lucidez sobre a questão da proporcionalidade:

“Entre a falta de vantagem para o proprietário (mas a argumentação pode ser utilizada em relação a qualquer situação) e o prejuízo da vítima, deve existir uma certa proporcionalidade. Em uma perspectiva solidarista e funcional, o proprietário não pode realizar um ato que lhe dê uma vantagem mínima para criar uma grande desvantagem ou dano a outro. O recurso à proporcionalidade permite superar algumas posturas rígidas que ou impedem a realização de qualquer ato, ou, vice-versa, excluem na prática a operatividade da proibição.”[23]

7 - CASOS CONCRETOS

Os acórdãos abaixo transcritos foram selecionados por apresentarem questões relevantes para o tema do abuso de direito:

RESPONSABILIDADE CIVIL – Morte causada por cerca eletrificada – Meio de defesa da propriedade camuflado que não se situa na esfera da licitude, eis que caracterizador de abuso de direito, evidente a desproporção entre o valor do bem protegido e do que foi sacrificado – hipótese, porém, de culpa exclusiva da vítima, que, sabedora da existência do mecanismo de defesa, assumiu conscientemente o risco de neutralizá-lo para consumar furto – Ato ilícito descaracterizado – Culpa do proprietário afastada – Indenização não devida – Inteligência dos arts. 159 e 160, I, CC. (…) Restou provado que a vítima conhecia bem a propriedade da recorrida, onde já trabalhara por mais de três anos, como pedreiro e eletricista, impondo-se a presunção de que tinha conhecimento da cerca eletrificada instalada na entrada do galpão 20.

Tanto é assim que levou para lá um alicate de corte, com cabo protegido por isolamento e um aparelho de teste para detectar corrente elétrica.(…)

Esse comportamento da vítima, enfrentando conscientemente o perigoso dispositivo de segurança, elide a responsabilidade da requerida pelo infortunoso acidente, só atribuível à imprudência do ousado ladrão.” (RT – 632, Junho de 1988 – TJMG – pgs. 191/193 - ap. 75.017-3 – 3ª Câm. –Rel. Des. Lauro Pacheco Filho)

Esta decisão levanta importante questão quanto à excludente de anti-juridicidade do abuso do direito por culpa exclusiva da vítima, ou seja, ainda que reconhecido o exercício abusivo de direito, no caso o direito de proteger a propriedade, a ilicitude restou afastada pelo comportamento da vítima, que assumiu o risco, pois plenamente consciente do perigo que estava correndo.

“Existe no sistema jurídico possibilidade legal para o ajuizamento de ação de ressarcimento de danos decorrentes do abuso do direito de demandar – Interpretação dos arts. 16 e 17 do Código de Processo Civil e 160, I, do Código Civil – recurso provido para cassar a sentença que deu pela extinção da ação de autoria daqueles que se qualificaram como vítimas de má-fé processual. (…) Argumentam que a requerida vendeu o lote a Carlos que, em vida, quitou integralmente o preço. Porém, com má-fé e depois do óbito, ajuizou a vendedora ação de rescisão alegando mora e, com citação edital, conseguiu sentença de recuperação do imóvel legalizando transferência onerosa a terceiros. (…) Sobreveio sentença dando pela impossibilidade jurídica, porque “não se pode, mesmo a título de indenização por perdas e danos, efetuar o reexame da matéria já discutida e decidida definitivamente.

É decisão que urge reformar.(…)

Não está em julgamento a legalidade da r. sentença que, diante da revelia do finado, deu pela procedência da ação de rescisão do contrato, os autores respeitam a coisa julgada, tanto que não estão pleiteando a desconstituição do julgado ou a restituição da coisa.

O que importa, agora, é o exame da conduta processual da ré naquela demanda, ou seja, a maneira com que manipulou os pressupostos legais, uma pretensão que obriga o Juiz a pesquisar o espírito da narração objetiva da relação jurídica exposta, a boa-fé em fundamentar o seu interesse e legitimidade e, por fim, a opção pelo remédio processual adequado para solução do conflito imobiliário.

Isso porque o abuso do direito no exercício da demanda é uma modalidade do ato ilícito e sujeita o seu autor a indenizar o dano do ofendido (…)

E o trânsito em julgado da sentença obtida de má-fé é e não poderia ser empeço para a responsabilidade civil pelo ato ilícito praticado no foro, justo porque a improbidade e o engodo não se redimem com a obtenção equivocada do timbre do judiciário. Os riscos e as conseqüências da execução de uma sentença correm por conta do favorecido, um ônus que vincula o litigante aos efeitos práticos da atividade judicial.

Não fosse assim não existiria responsabilidade criminal para os ilícitos processuais (…)” (Ap. Cív. nº 021.306-4/5 - 1ª Câm. Direito Privado TJSP – Rel. ÊNIO SANTARELLI ZULTANI – ADV)

O presente acórdão traz interessantíssima matéria pois analisa a coisa julgada e o abuso do direito de demandar. No caso em apreço o feito no qual ocorreu o abuso de direito já havia transitado em julgado, mas o pleito foi acolhido por ter sido reconhecido exercício abusivo de demandar, o que constitui uma ilicitude e, a conseqüente obrigação de reparar o dano. Não se discutiram mais os fatos cuja decisão há coisa julgada, mas sim os atos praticados no processo, que por serem abusivos geram a obrigação de indenizar. Não se tratou no decisum da nulidade de pleno de direito da citação, o que acarretaria a inexistência da relação processual, que poderia ser declarada em processo judicial, não obstante a coisa julgada. Mas este caminho importaria na devolução do status quo ante, o que aparentemente não interessava à parte prejudicada, que deseja haver somente perdas e danos.

“TUTELA ANTECIPATÓRIA concedida para permitir a reinclusão de menor portador de grave doença (Sarcoma de Erwing) em seguro saúde – Verossimilhança do direito invocado e que se relaciona com o abuso de direito da seguradora, que inviabilizou a renovação do seguro em face justamente da doença do beneficiário – Perigo de dano irreversível - Agravo improvido. (…) Ilustra a pesquisa de precedentes a presença do pressuposto da plausibilidade do direito invocado como sustentáculo da liminar. Afinal, a tese de abuso de direito da seguradora ao usar do poder de não renovar seguro para os realmente necessitados, já foi consagrada por este Tribunal, em v. Acórdão da lavra do ilustre Des. J. ROBERTO BEDRAN (…)

‘Mesmo com base em cláusula contratual, não seria civil que o titular da prerrogativa delas se utilizasse no propósito de causar prejuízos ao outro contratante, por configurar abuso de direito.’

Nesta Jurisprudência parece interessante ressaltar que o critério utilizado, ao menos aparentemente, foi o subjetivo. Tal se depreende da expressão “no propósito de causar prejuízos”. Por outro lado, não há menção às práticas abusivas expressamente positivadas no Código do Consumidor, que, a meu ver, facilitariam a subsunção do fato ao direito. Outrossim, verifica-se que o caso concreto pode bem representar o conflito entre uma situação existencial (direito à saúde) e uma situação patrimonial (direito ao lucro), na qual a grave desproporção já se apresenta no próprio conflito, pois o dano à saúde dificilmente é tão reparável quanto o dano ao patrimônio. Ademais, o direito de lucro para sobrepor-se ao direito à saúde teria que revelar uma conseqüência social, como por exemplo tornar realmente inviável a empresa de seguro saúde o que acarretaria a falta do serviço a todos os outros associados, sendo um dano social de enorme repercussão.

8 – CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, a relevância do tema resta inegável como um dos instrumentos de realização dos princípios constitucionais de solidariedade e fraternidade, além de atender à contemporânea noção da função social do Direito.

Notas da Autora :

[18] YASSIM, Assad Amadeo. Considerações sobre Abuso de Direito, in: RT, ano 69 – Agosto/1980 – vol. 538.
[19] MOARAES TEPEDINO, Maria Celina de Bodin. A Caminho de um Direito Civil Constitucional, in: Revista de Direito Civil da RT, São Paulo, nº 65, p. 21-32, jul./set., 1993.
[20] MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha. Da Boa Fé no Direito Civil, Coleção Teses, Ed. Almedina, Coimbra, 1997.
[21] MARLAN. Ob. cit.
[22] MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame de DNA na investigação de paternidade e direitos da personalidade, in: A NOVA FAMÍLIA, organizador: Vicente Barreto, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1997.
[23] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, Ed. Renovar, 1997.

Extraído do site BuscaLegis

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