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27 novembro 2009

AS ORIGENS DA CONDENAÇÃO DO PROCESSO CIVIL ROMANO


Parte 4/4-Final


Guilherme Carneiro Monteiro Nitschke
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Advogado associado de TozziniFreire Advogados.



5 – Condemnatio e litis contestatio


A condemnatio formular foi fruto de uma evolução paulatina da damnatio arcaica, de maneira que alguns de seus aspectos originais se mantiveram e outros se adaptaram e se moldaram com o passar dos séculos e com o desenvolvimento da civilização romana. É o que se viu até agora, sobretudo para aquilo que contribui à análise do aspecto interno da condenação do processo per formulas. Tomando-se por pressuposto as conclusões dos pontos anteriores, algo mais pode ser dito sobre a feição da condemnatio, e isso a partir do estudo de sua relação com a litis contestatio, conforme larga interpretação da romanística, ainda que ao fim e ao cabo vá se discordar do posicionamento adotado pela maioria.


Os estudiosos costumam extrair das Institutiones de Gaio a índole obrigacional da condemnatio, onde ela recebe menção enquanto relacionada à solenidade da litis contestatio (III, 180): Tollitur adhuc obligatio litis contestatione, si modo legitimo iudicio fuerit actum. Nam tunc obligatio quidem principalis dissolvitur, incipit aiutem teneri réus litis contestatione; sed si condemnatus sit, sublata litis contestatione incipit ex causa iudicat teneri. Et hoc est quod apud veteres scriptum est, ante litem contestatam dare debitore oportere, post litem contestatam condemnari oportere, post condemnationem iudicatum facere oportere ("a extinção de uma obrigação é também efetuada pela litis contestatio, ao menos quando estatuído um iudicium legitimum. Então, a obrigação original é dissolvida, e uma nova obrigação é imposta ao réu, por causa da litis contestatio. Mas se ele é condenado, a obrigação exsurgente da litis contestatio é desconsiderada, e uma nova obrigação surge do julgamento. Como diziam os antigos juristas, antes da contestação da lide o devedor deve dar, depois da contestação da lide deve ser condenado, e depois da condenação deve cumprir o julgado").


Antes que se examine a relação havida entre os institutos, há que se dar breves pinceladas sobre o conceito de litis contestatio. A doutrina mais tradicional, com assoreamento básico nas obras de Friedrich Keller e Moriz Wlassak, enxergava-a como espécie de contrato, firmado por autor e réu, e de necessária celebração para que o processo apud iudicem pudesse ser instaurado. Como bem resume Giovanni Pugliese – um aderente da tese clássica –, a litis contestatio resultava de um acordo entre as partes, que consistia na proposta da fórmula por parte do autor e na sua aceitação por parte do réu 95. Segundo ele, o instituto estava imantado de natureza contratual privatística por conta de três fatores: seu caráter negocial, a natureza arbitral do iudex e a feição privada de alguns outros atos que a ele sucediam 96.


Esse posicionamento, porém, foi também rechaçado ao longo do último século. Uma das vozes mais autorizadas a lhe fazerem oposição saiu de Fritz Schulz, ao apontar ser equivocado raciocinar o processo e o direito romano de acordo com institutos hodiernos (id est ver a litis contestatio como se um contractus fosse) 97. Também é erro imantar o iudex de um caráter arbitral que ele não possuía. Segundo Schulz, "o iudex pode ser equiparado a um árbitro, mas a um árbitro especial, isto é, um árbitro autorizado pelo magistrado e, por conseguinte, um delegado deste" 98. Para complemento, basta lembrar que os iudices romanos eram prováveis componentes do conselho do rei e, como continuação histórica, do próprio Senado de Roma.


Quanto aos outros dois fatores que Pugliese aponta como sendo evidências da natureza contratual-privatística da litis contestatio (o caráter negocial e a feição privada de atos sucessivos), algo mais pode ser dito. É certo que o procedimento apud iudicem só podia ser instaurado se ambas as partes estivessem presentes, mas isso não quer dizer que inexistissem maneiras de fazer com que a marcha processual prosseguisse. O indefensus das actiones in personam (aquele que se negava a concluir a litis contestatio) podia ser conduzido à força (ductio) à casa do autor para daí decidir se aceitava a fórmula ou se trabalhava para pagar a dívida quantificada no decreto do magistrado. A partir do século II a.C., a ductio foi substituída pela missio in bona, atribuindo-se a posse dos bens do indefensus ao autor e procedendo-se via imediata execução (actio iudicati) 99. Noutras palavras, aquele que não aderia à fórmula e não participava da litis contestatio estava admitindo que as alegações do autor eram verdadeiras, fato que dispensava a instauração do procedimento apud iudicem e ensejava a execução. Não se pode falar, portanto, que a litis contestatio era um contrato, visto que a não aderência do requerido à fórmula trazia sanções: o reconhecimento das alegações autorais, a supressão do procedimento cognitório e a imediata execução via actio iudicati. Ademais, não é correto imputar como inteiramente privadas as atuações que sucediam à litis contestatio. No período formular, toda conduta das partes era regulamentada pela autoridade investida de imperium, através de leis ou de ordens suas.


Na verdade, a litis contestatio pouco ou nada possuía de contratual. Era apenas um momento de transição do procedimento in iure ao procedimento apud iudicem 100. Certamente abarcava desafios mútuos e assinalava que ambos estavam dispostos a litigar; "mas apenas em sentido impróprio se poderia dizer que ambos estavam ‘de acordo’ sobre a constituição da lide; seu agir era um agir conservatório, necessário para que fosse alcançado determinado fim: qual seja, o acertamento da demanda" 101. Ainda que no período arcaico ela estivesse revestida de maior solenidade (já que então era ato de caráter tipicamente religioso, como demonstram certas passagens da obra De verborum significatione, escrita por Festo), a litis contestatio jamais teve feições contratuais. Era simplesmente a instauração do contraditório através da exposição das pretensões inconciliáveis (litis), com a invocação de testemunho (cum testatio) para incutir solenidade ao ato 102. Secularizado o direito de Roma e maximizada a escritura, prescindível tornou-se a presença das testemunhas, e a litis contestatio, então, perdurou como simples momento de transição entre procedimentos in iure e apud iudicem 103.


A visão tradicional de ter-se a litis contestatio como um contrato também surtiu conseqüências no tangente ao estudo de seus efeitos, e aqui já se adentra no problema central deste capítulo: a análise das relações havidas com a condemnatio, tendo como ponto de partida o trecho gaiano citado linhas acima (Institutiones, III, 180). Dentre outros menos importantes, os principais efeitos da litis contestatio que a doutrina tradicional costuma apontar são três: o conservativo, o preclusivo e o extintivo-novatório. Os dois primeiros receberão abordagem resumida, pois é o terceiro que porta maior relevância e relação com a condemnatio.


Em primeiro plano, a litis contestatio assinalava que o conflito estava sendo colocado à apreciação de um terceiro imparcial a cuja decisão ambas as partes obrigatoriamente submeter-se-iam. Diz-se que tal efeito era ‘conservativo’, já que determinava a dedução da controvérsia ao juízo (rem in iudicium deducere), vetava quaisquer modificações que se quisesse efetuar na fórmula e fazia da discussão o objeto de uma decisão 104. Noutros termos, a litis contestatio assinalava que as partes aceitavam os termos da fórmula, a indicação do juiz e a instauração do procedimento conseguinte.


Estando a res in iudicium deducta, o objeto do litígio se tornava pendente de decisão do iudex, que era incorporado como parte na relação processual, de modo, inclusive, a fazer sua a lide (litem sua facere) nos casos de patente erro e/ou injustiça. Mas a influência de um terceiro imparcial só poderia se dar uma única vez sobre um mesmo conflito; a causa actionis, a partir da celebração da litis contestatio, não poderia ser repetida, e a esse efeito se atribuiu o nome de ‘preclusivo’. É o que se conhece pelos brocardos latinos bis de eadem re agere non licet ou apenas ne bis in idem. Em suma, só se podia litigar uma única vez por uma mesma causa.


Enfim, o terceiro efeito que a doutrina tradicional costuma imputar à litis contestatio é o chamado ‘extintivo-novatório’, e baseia-se principalmente na passagem de Gaio em que uma hipotética linha de obrigações está descrita. Era entendimento do jurista que a litiscontestação tinha a capacidade de extinguir uma obligatio anterior e determinar a formação de uma nova (a condemnari oportere, i.e. a obrigação de ser condenado), que só seria substituída com o advento da sentença, formadora de uma outra obrigação (a iudicatum facere oportere, i.e. o dever de cumprir o julgado). Relembre-se o trecho gaiano que melhor resume a idéia (Institutiones, III, 180): Et hoc est quod apud veteres scriptum est, ante litem contestatam dare debitore oportere, post litem contestatam condemnari oportere, post condemnationem iudicatum facere oportere ("como diziam os antigos juristas, antes da contestação da lide o devedor deve dar, depois da contestação da lide deve ser condenado, e depois da condenação deve cumprir o julgado"). Em suma, a linha obrigacional descrita por Gaio possui dois momentos extintivos-novatórios: (i) o momento em que a obrigação anterior é extinta e substituída pelo dever de condenar; (ii) e o momento em que o dever de condenar extingue-se e dá lugar à sentença de condemnatio, gerando o conseguinte dever de que seja cumprida.


Como tantas vezes já foi dito, a doutrina tradicional firmou pilares nessa passagem para explicar boa parte do processo civil romano. O efeito extintivo-novatório da litis contestatio é largamente explicado através da seguinte linha: obligatio  actio  litis contestatio  condemnatio. Quem assim procede é um natural seguidor da noção de litiscontestação enquanto contrato, já que, para que fosse operada uma novação de obrigações, fazia-se necessária a presença da figura privada de uma avença. Por isso que Friedrich Keller, um dos primeiros defensores desse entendimento, afirma, sem receios, em uma de suas obras: "o fundamento da actio era uma civilis obligatio" 105. Desvelado também está o fundamento da idéia de actio, que ao longo de todo o século XIX e em boa parte do século XX prendeu-se ao imanentismo de uma obrigação anterior, bem casada à definição que lhe deu Celso (D. 44.7.51) e que já recebeu tantas críticas da romanística mais desenvolvida 106. Como se vê, essas noções de actio e de litis contestatio casam com perfeição, já que a condemnari oportere e a iudicium facere oportere nada mais eram do que um ‘perdurar’ da primitiva civilis obligatio dentro do processo, extinta por conta da instauração do litígio mas substituída por novas modalidades obrigacionais.


Emilio Betti talvez tenha sido um dos representantes mais eminentes desse entendimento, ainda que com algumas adaptações. Segundo o jurista italiano, a litis contestatio criava no lugar da primitiva obligatio (deduzida em juízo) não uma nova e imediata obrigação de direito substancial, mas uma sujeição processual de caráter hipotético que futuramente poderia engendrar uma possível segunda obrigação de direito substancial, nascida da sentença condenatória. Noutras palavras, "uma responsabilidade inerente à obligatio principalis é absorvida na relação processual. Porém, é verdade que em tal relação vive, como conseqüência disso, o gérmen de uma obligatio de segundo grau. Mas tal gérmen chegará à maturação somente com a condenação" 107.


Essa disseminada doutrina, que tinha a litis contestatio como se fosse um contrato e que lhe incutia efeitos extintivos-novatórios, pode ser refutada nos dias atuais com alguma tranqüilidade. Comece-se pela própria natureza do instituto, como já se viu linhas acima. Ele nada tinha de contratual, mormente por faltar às partes a liberdade de não se submeterem a um processo caso assim não desejassem. Deixar de participar da litiscontestação (e tornar-se, assim, indefensus) implicava prescindir-se de um processo cognitório e partir-se de imediato à execução pela actio iudicati. Noutras palavras, a liberdade esbarrava na existência de uma verdadeira sanção à não prática do ato. Ademais, comparar a litis contestatio a um contractus já é um equívoco de per si, como demonstrou Fritz Schulz 108: não se pode interpretar institutos de outrora sob o prisma do direito atual; a analogia aqui é sempre perniciosa.


A litiscontestação, ao revés, era mero momento de transição do procedimento in iure ao procedimento apud iudicem, e só esteve revestida de maior importância em tempos arcaicos porque consistia em atos de natureza religiosa (recorde-se: cum testatio, com a presença de testemunhas), portanto sem qualquer índole privatística-contratual. A razão de sua celebração – como se viu linhas acima – era instaurar o contraditório: por meio dela, expunham-se as teses conflitantes (litis) e preparava-se, dessa maneira, o procedimento guiado pelo iudex. Já se vê que não era sua finalidade extinguir ou criar quaisquer obrigações, mas apenas inaugurar o julgamento da causa.


Poder-se-ia cogitar que, independentemente de sua natureza, a litis contestatio tivesse o dom de gerar efeitos extintivos-novatórios; mas aí a hipótese esbarraria noutras considerações críticas. Apanhe-se, em primeiro lugar, a passagem de Gaio que tantas vezes já foi mencionada (Institutiones, III, 180). Do que está a tratar o jurista nesse breve fragmento? De obrigações. Aliás, boa parte do Livro III de sua obra tem como temática as obrigações (ao lado das sucessões): obrigações contratuais, fontes das obrigações, extinção das obrigações e obrigações ex delicto. São temas de direito material; o processo só passa a ser abordado no Livro IV, e isso de maneira intencional (ou seja, o jurista deliberadamente procurou não misturar os dois campos). Mais que isso: ao mencionar a litis contestatio (III, 180), Gaio a observa enquanto modo de extinção das obrigações ao lado de outras modalidades – como, por exemplo, o simples pagamento (III, 168), a accepilatio (III, 169-172) e a novação (III, 176-179). Ou seja, ele não estava descrevendo a natureza da litis contestatio ou mencionando que efeitos ela gerava, mas expondo uma das formas de extinção das obrigações que ele considerava como existentes no direito de sua época.


Sua análise, portanto, é toda feita no plano do direito material, a partir da visão de quem é devedor: há uma obligatio que, com o processo, acaba substituída por uma condemnatio. Tanto que no começo, antes da contestação da lide, o devedor deve adimplir a obrigação (pois esta existe independentemente de reconhecimento judicial); depois da litis contestatio, ele está obrigado a acatar a futura sentença de condenação (ou seja, é certo que ele será condenado, pois é devedor); e, enfim, por força da condenação, o sujeito deverá prestar a obrigação que lhe incumbe. Vê-se bem que o devedor nunca deixa de ser devedor, mesmo com a instauração do processo. E isso porque, nessa parte de sua obra, Gaio não estava explicando como funcionava o processo, mas apenas descrevendo de que maneira uma obrigação se extinguia pelo cumprimento forçado via sentença de condenação. Para ele, o respeito à obrigação via condemnatio sentencial era uma das modalidades de extinção das obrigações.


Por não estar tratando do processo ou da litis contestatio, chega a ser uma obviedade dizer que Gaio sequer cogitou a possibilidade de ter-se uma sentença de absolvição. Ele estava dissertando sobre as obrigações e sobre as maneiras que levam-nas à extinção, e dentro desse prisma a condemnatio exsurgia como típica forma de cumprir-se forçadamente um dever assumido. Aqui parece repousar o erro capital da doutrina tradicional: não ter enxergado que o jurista não tratava da litiscontestação, da condenação ou dos efeitos que elas geravam, mas simplesmente abordava as maneiras pelas quais extinguiam-se as obligationes. É certo que houve incorreção na própria construção de Gaio quando atribuiu à litis contestatio o dom novatório, mal-interpretando a passagem dos veteres que ele mesmo citou. A lógica geral do processo civil romano, contudo, não permite que se propugne pela prevalência dos equívocos dessa passagem, mas pelo sucesso de simplesmente ter descrito a condemnatio enquanto um dos veículos de cumprimento e extinção obrigacional.


Mas há ainda outros argumentos que demonstram fraqueza na interpretação tradicional, sobretudo quando se apanha para análise cada um dos dois momentos que a doutrina aponta enquanto extintivos-novatórios.


O primeiro momento diz com a prática da litis contestatio. Como já se viu, a hermenêutica equivocada do trecho gaiano (III, 180) conduziu à crença de que o ato de litiscontestação extinguia a obligatio antes dela existente, substituindo-a pelo dever em obedecer-se à futura condemnatio. Nítido está que a visão é tipicamente imanentista: ela parte não da perspectiva processual do ato (que demandaria enxergarem-se os momentos do processo a partir da perspectiva do pretor e do juiz), mas do prisma de quem é devedor, da visão do sujeito que sabe estar obrigado a determinada prestação. Enfim, direito material e processo acabam misturados, e ao invés de analisar-se o ato de litis contestatio, o raciocínio parte da certeza de que uma obrigação existe. A confusão entre os campos é típica da doutrina do século XIX, e já por isso se entende o porquê do surgimento, nessa época, de idéias imanentistas 109.


O processo romano deve ser observado da perspectiva do pretor e do juiz, e por isso a partir da incerteza da qual a própria expressão formular si paret é representante. É exatamente dessa maneira que Gaio procede quando aborda o processo no Livro IV de suas Institutiones: sem qualquer referência à existência prévia de obrigações. Tal seria não apenas misturar os planos e enxergar o processo sob o prisma do direito material, mas remontar à desgastada teoria civilista e acreditar que uma ação processual é desdobramento de uma obligatio descumprida.


O estudo das fases do processo romano e da atribuição de funções já revela que a seqüência obligatio  actio  litis contestatio  condemnatio é de todo equivocada. Quando ouvia as partes e as auxiliava na redação da fórmula, ao pretor não interessava se o autor tinha ou não razão naquilo que pronunciava. Não era sua preocupação – pois não era seu ofício – examinar se intentio e fatos tinham correspondência e se, portanto, havia uma obrigação descumprida. Seu labor (o de redigir a fórmula e dar uma ação) era exercido independentemente da existência de uma obligatio. É bem isso que se viu no capítulo 3.1: que o pretor não averiguava se o exposto pelo requerente correspondia à verdade, mas aceitava-o provisoriamente como verdadeiro e decidia se aos fatos expostos cabia um direito que se pudesse fazer valer pela via processual 110. Como se disse, ao magistrado pretório incumbia: (i) verificar se as pretensões do autor eram tuteláveis (analisando se um juízo era necessário e harmônico ao direito reconhecido, sob pena de denegare actionem), (ii) auxiliar na redação da fórmula e (iii) autorizar a instauração do procedimento apud iudicem. Isso implica dizer que a actio não pressupunha uma obligatio para que fosse concedida pelo pretor, mas apenas a narrativa das partes 111.


Era assim, aliás, que o direito material (o já denominado ‘justo abstrato’) penetrava e influenciava de maneira cabal o processo: por meio das alegações de autor e réu. Era a partir delas que o pretor dizia o direito e auxiliava os envolvidos para que fosse redigida uma fórmula adequada à solução do caso, em que constasse abstratamente o modelo de justo (direito material) para servir de paradigma à verificação do liame existente entre as partes e ao eventual ajuste caso houvesse iniqüidade 112. E aqui já se adentra também no ofício do iudex: exatamente o de detectar se correspondiam intentio e fatos, isto é, se realmente havia uma obrigação descumprida que carecesse de reforço. Em caso positivo (si paret), uma condenação haveria de ser lapidada; em caso negativo (si non paret), uma absolutio era proferida. É isso que foi visto com amplitude no capítulo 3.2 e que aqui merece apenas referência.


Veja-se que isso exclui de plano a possibilidade de ver-se a litis contestatio como um ato que extinguia uma obrigação anterior. Tal seria admitir que uma actio é desdobramento de uma obligatio, e isso, como se vê, não coaduna à lógica geral do processo romano e sobretudo ao ofício do pretor e do juiz.


Ainda no primeiro momento extintivo-novatório, sequer é possível sustentar que uma nova obrigação era gerada pela solenidade da litiscontestação, e isso independentemente de aceitarem-se ou não as teses imanentistas ora criticadas. A conclusão do ato submetia as partes ao julgamento do iudex, mas de maneira alguma representava o surgimento de uma obligatio. Bem ao contrário, o novo vínculo não apenas ligava um sujeito ao outro, mas os submetia ao imperium do populus Romanus, outorgado ao praetor pelos cidadãos e repassado ao iudex através da fórmula. Ademais, argumentar que a litis contestatio era ‘fonte de obrigações’ é posicionamento só harmônico à doutrina que enxerga o ato como se um contrato fosse. A análise do instituto enquanto ‘momento processual de transição’ entre um e outro procedimentos extirpa a possibilidade de vê-lo como um instituidor de obligationes. Nada existia de extintivo e menos ainda de novatório na litis contestatio.


Ao segundo momento extintivo-novatório (id est à condenação) também é imputado o condão de eliminar e criar obrigações. De tudo que já se viu nos capítulos anteriores, contudo, não parece ter sido essa a causa e a função da sentença de condemnatio. Bem ao contrário, a sentença de per si (fosse ela condenatória, fosse absolutória) era um ato de imperium: sua força decorria da competência judicativa outorgada pela fórmula pretória; era a culminação do cotejo entre intentio formular e fatos; e quando condenatória, consubstanciava-se não na geração de uma nova obligatio, mas no reforço de obrigações que já existiam antes do próprio processo, via submissão do condemnatus ao imperium do populus. Nos moldes de outrora (idos da damnatio), a condenação representava a idéia de submissão do devedor ao cumprimento do prometido, mas também à sentença que por sua própria natureza espelhava a vontade e o império do povo romano. Descumprida a decisão, desrespeitado estava o populus.


Portanto, sequer esse segundo momento do processo romano estava imantado de caráter extintivo-novatório. A condemnatio sentencial não tinha nem por causa e nem por efeito a existência de obrigações. Ao revés, o que lhe dava ensejo era o imperium magistratural e a lógica de correspondência entre intentio e fatos, e o que ela gerava não eram novas obligationes, mas a submissão do condenado ao cumprimento de deveres descobertos como inadimplidos (por conta da instrução processual), com a garantia de que seu patrimônio responderia pelas dívidas caso o descumprimento perdurasse mesmo à ordem judicial.


6 – Conclusões


De tudo o que foi visto, pode-se sugerir que as origens da condenação sentencial do processo civil romano repousam em duas circunstâncias básicas: na figura da damnatio arcaica e nas condições históricas favoráveis que desenvolveram tanto a noção de obrigação quanto os instrumentos processuais utilizados para sua efetivação. Conforme já visto nos capítulos deste trabalho, a algumas conclusões logrou-se chegar.


1. A condemnatio tem como antecedente arcaico a palavra damnatio, que aparecia enquanto relacionada ao votum, aos legados per damnationem e sinendi modo, e ao nexum, e expressava basicamente a instituição de uma garantia para o cumprimento de certas promessas proferidas solenemente (nuncupatio), diante de testemunhas (testis). Imantada de índole religiosa, sua presença submetia o promitente às penas pelo descumprimento, que se resumiam, basicamente, em punições religiosas e na servidão de seu próprio corpo ou de seu labor ao poderio do beneficiário (manus iniectio ex damnatio). A damnatio parece ter sido uma das modalidades antigas de obrigação, já que nesses idos, dada a permeação total da religião às instituições romanas, o centro do vínculo era a garantia, e não o debitum (como mais tarde seria, com o surgimento da obligatio).


2. Pulando-se ao período formular do processo romano, a condemnatio aparecia enquanto parte da fórmula e enquanto sentença. Como pars formulae, a condemnatio representava a outorga de imperium judicativo ao juiz, que tinha como origem o próprio populus Romanus e as atribuições de que o pretor era investido. Sua função, aliás, deve ser vista dentro do prisma evolutivo de pretor e fórmula, que nasceram e pereceram unidos na história processual de Roma. Como sententia, a condemnatio pode ser vista sob seu aspecto externo e sob seu aspecto interno. No que tange ao primeiro, pode-se dizer que ela resultava do cotejo positivo entre intentio formular e fatos (via instrução processual), que revelava haver no caso concreto uma iniqüidade que dependia de ajuste. Com o tempo, passou a ser escrita e fundamentada, sobretudo por conta do perigo de litem suam facere, mas invariavelmente expressa em termos pecuniários.


3. No que tange ao aspecto interno da condemnatio, é possível afirmar que o desenvolvimento das instituições como um todo acabou por substituir paulatim a idéia de ‘obrigação como garantia’ (damnatio) pela idéia de ‘obrigação como vínculo ideal’ (obligatio), determinando, por outro lado, o desenvolvimento dos instrumentos processuais em diversos de seus princípios. Minorada a influência da religião, esvaziou-se a ratio da damnatio, e ela, de alguma forma (provavelmente por uma prática adotada pelos julgadores romanos), foi internalizada ao sentenciamento, fazendo perdurar, no entanto, a idéia de submissão do devedor ao cumprimento do prometido e boa parte da solenidade de que antes se revestia. Ao revés de submetê-lo à religião e aos castigos sacrais, a damnatio sentencial (ou a sentença de cum damnatio) o submetia ao populus Romanus (ao imperium) por conseqüência da determinação judicial: caso descumprisse a sentença, a soberania do povo é que estava sendo desrespeitada.


4. Enfim, o aspecto interno da sentença de condemnatio ressalta ainda mais quando cotejada à litis contestatio e aos momentos extintivo-novatórios que a doutrina deduziu de um trecho de Gaio (Institutiones, III, 180). Se já a litiscontestação não possui como causa e como efeito a existência de obrigações, menos ainda a condemnatio. Esta, como se viu, não era desdobramento de uma obligatio, mas da competência judicativa outorgada ao iudex e daquilo que era resultado do cotejo entre intentio formular e fatos; e por outro lado, não se consubstanciava na formação de obrigações, mas no reforço de deveres que existiam antes mesmo do processo, via submissão do condenado ao imperium do Estado romano (melhor dizendo, do populus Romanus) 113.

Notas do Autor:
95 PUGLIESE, Giovanni. Processo privato e processo pubblico: contributo all'individuazione dei loro caratteri nella storia del diritto romano. Rivista di diritto processuale. Padova: Milano, 1948, v. 3, p. 67.
96 Idem, pp. 68-70.
97 "La teoria de Wlassak es sostenida con argumentos endebles, con interpretaciones faltas de crítica y con deducciones incorrectas" (SCHULZ, Fritz, Derecho romano clásico, cit., p. 15).
98 SCHULZ, Fritz, Derecho romano clásico, cit., pp. 15-16. A função judicativa era um múnus público: por ser imprescindível à cognição e à solução da demanda, não importava a individualidade da pessoa investida, mas tão-somente que fosse capaz de resolver da melhor maneira o litígio; e tanto era assim que o pretor podia substituir o titular quantas vezes fossem necessárias, até que achasse um que exercesse as funções com o apuro exigido.
99 CANNATA, Carlo Augusto, Profilo istituzionale del processo privato romano: il processo formulare, cit., pp. 170-175. Cf. também Gaio, Institutiones, III, 79.
100 SCHULZ, Fritz, Derecho romano clásico, cit., p. 14.
101 GIOFFREDÌ, Carlo, Diritto e processo nelle antiche forme giuridiche romane, cit., p. 153.
102 A obra de Festo foi consultada da edição de BRUNS, Carolus Georgius. Fontes iuris romani antiqui. Tübingen: Lauppiana, 1871, p. 180.
103 GREENIDGE, Abel H. J., The legal procedure of Cicero's time, cit., p. 244.
104 CANNATA, Carlo Augusto, Profilo istituzionale del processo privato romano: il processo formulare, cit., p. 165.
105 KELLER, Friedrich Ludwig. De la procédure civile et des actions chez les romains (trad. Charles Capmas). Paris: Ernest Thorin, 1870, p. 265.
106 Ad exemplum, vejam-se as observações de SCHULZ, Fritz, Principles of roman law, cit., pp. 44-45. Na seara pátria, são admiráveis as críticas feitas por Pontes de Miranda, ainda que em breve trecho: "Os romanizantes, um pouco para salvar a materialização (ou, mais restritamente, a privatização celsiana), recorreram, ainda no século XIX e no século XX, a vários "expedientes". Com isso, insistiam no êrro do proculeiano P. Juvêncio Celso. Peripatético, portanto: a aplicação do direito, que seria forma, e a incidência, matéria, tornar-se-iam o mesmo, porque, no ser, o que importa é a forma; de modo que o direito privado e o processo eram um só direito" (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das ações. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, v. 1, p. 91). Basta lembrar que os romanos não eram afeitos a definições, o que de plano retira toda a importância que, durante muitos anos, foi atribuída à definição de Celso (omnis definitio in iure civili pericolosa est; rarum enim est, ut non subverti posset). Cf. SCHULZ, Fritz. The invention of the Science of Law at Rome. In: JAKOBS, Horst Heinrich. De similibus ad similia bei Bracton und Azo. Frankfurt: Vittorio Klostermann Frankfurt am Main, 1996, p. 107.
107 BETTI, Emilio. La struttura dell'obbligazione romana e il problema della sua genesi. Milano: A. Giuffrè, 1955, p. 14.
108 SCHULZ, Fritz, Derecho romano clásico, cit., p. 15.
109 Dê-se apenas um destaque à tese de Friedrich Karl von Savigny, que de seus entendimentos fez derivar o que hoje se conhece por "teoria civilista da ação", a pressupor a existência de um direito subjetivo e sua inflamação para que uma ação processual pudesse ser inaugurada (SAVIGNY, Friedrich Karl von. Sistema del diritto romano attuale (trad. Vittorio Scialoja). Torino: UTET, 1886, v. 5, §§ 204 e 205).
110 Essas são palavras de KASER, Max, Derecho romano privado, cit., p. 355.
111 Desde que entenda-se 'actio' enquanto conduta, procedimento, ação genericamente dita, conforme razoável interpretação de Fritz Schulz (cf. nota 51). Acredita-se aqui que os romanos do período formular não imputaram à actio a importância de uma categoria jurídica a ser formulada e discutida. Para eles, actio era simplesmente 'agir', 'conduzir-se de determinada maneira'. Tanto que a palavra nunca vinha desacompanhada: para os romanos, actio nunca era apenas actio, mas actio para o exercício de determinada conduta. Era, portanto, proceder em sentido lato (seja material, seja processual) carente de complemento, e não uma categoria jurídica. Essas observações são pertinentes para que não se atribua a este trabalho o erro de observar a actio romana a partir da teoria abstrata da ação. O trato que aqui se dá, conforme recém visto - e que acredita-se tenha sido o uso romano da palavra -, é no sentido da não adoção de entendimentos modernos para a explicação do processo romano.
112 'Justo abstrato' porque espelhado na fórmula (ius dicere, iurisdictio, dizer o direito, dar a descrição abstrata, a partir das alegações concretas, do que seria uma relação equilibrada e isonômica, descrição esta que servia de instrumento - por isso ius era visto como técnica - ao juiz para realizar o bom e o eqüitativo no caso concreto), e posteriormente nos editos e nas legislações dos períodos mais avançados do direito romano (que decorreram, por lógica, da repetição empreendida pelos pretores de um mesmo justo abstrato, de uma mesma técnica para a resolução de casos similares). Sobre isso, vejam-se as interessantíssimas considerações de GALLO, Filippo. Aspetti peculiari e qualificanti della produzione del diritto nell'esperienza romana. Rivista di diritto romano, v. 4, 2004. Acessível em: .
113 Como antes já foi dito, parafraseando-se Marc Bloch, o passado é por definição um dado imodificável; seu conhecimento, porém, é coisa que progride, e que incessantemente se transforma e se aperfeiçoa (BLOCH, Marc, Apologie pour l'histoire ou métier d'historien, cit., p. 22). Sob esse pressuposto, sabe-se que muitos dos pontos deste trabalho estão crivados de diversas imperfeições e lacunas, que só com o tempo, com pesquisas mais aprofundadas e com as críticas que advirão poderão ser sanadas - e ainda assim não em seu totum. Fica a esperança de que, mesmo no erro, sirva ele de impulso adicional à pesquisa e à discussão histórica.

Extraído do CD Magister 28, ago/set 200

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