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09 setembro 2009

VERDADE E LEALDADE NO PROCESSO


VALLISNEY DE SOUZA OLIVEIRA
Juiz Federal em Brasília. Mestre e Doutor em Direito (PUC/SP). Professor da Faculdade de Direito da UFAM e da UNB.

Em direito processual, lealdade, consoante o Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, constitui "o elemento fundamental do princípio de probidade processual, que congloba sinceridade, franqueza, honestidade, veracidade e a ausência de temeridade, a serem guardadas pelas partes e seus procuradores na instauração e no curso da demanda".

Ser leal significa ser fiel aos princípios e às pessoas com quem se relaciona. Cuida-se de ser obediente à honradez e à palavra dada; significa ser franco e não ser traiçoeiro, nem simulador, nem manipulador. Ser leal significa estar de boa-fé, princípio regente do Processo. Significa ser verdadeiro e de espírito aberto, ser crente na verdade e na Justiça, ser fiel aos princípios e aos valores nos quais crê e ter uma conduta centrada na retidão e no bom caráter.

Na Antiguidade, o processo se ligou mais à religião e menos à razão, mas nem por isso a probidade processual deixou de vir acompanhada por muitos povos na crença da participação de deuses nos julgamentos, como no período das Ordálias ou Juízos de Deus.

Na Idade Média, para os povos bárbaros, por exemplo, a palavra valia imensamente, visto que o juramento tinha um valor transcendental, inclusive com a possibilidade de que alguém, como um nobre ou outra pessoa importante na escala social, depusesse em lugar de outrem ou se comprometesse em favor de uma das partes.

Era o chamado afiançamento judiciário, que dava presunção de juridicidade às palavras de quem se dispusesse a intervir em benefício de um dos contendores. Quem jurava por uma das partes era chamado de conspurgador e no processo o juiz devia levar em consideração a qualidade do juramentista, por exemplo, se clérigo, nobre, camponês.

O direito medieval canônico, apesar de mais evoluído, também aceitava o juramento, e, em vez dos Juízos de Deus, admitia a prova tarifada, em que o testemunho de um clérigo valia mais que o de um de uma pessoa comum; o testemunho de um cristão valia mais do que o de um não cristão, e assim por diante. Além do juramento, ainda na Idade Média, o processo também passou a ser regido pela força: admitia-se o duelo, a luta, tanto que uma pessoa podia colocar um campeão para combater na arena em seu favor a fim de vencer a causa.

Na Idade Moderna, a luta deu lugar à razão, para o mal e para o bem. Com o advento do liberalismo e da revolução francesa, o processo passou por um estágio em que pouco valia a palavra afiançada, diante do mecanismo do jogo de palavras, da eloquência muitas vezes vazia e impressionista. Desprezada a boa-fé e diminuída a participação do juiz no processo, que era entendido apenas como a boca da lei, tiveram lugar manobras desleais das partes para vencerem a causa.

Hoje o juramento não tem praticamente relevância alguma; embora ainda tenha alguma força moral na luta pela justiça, é apenas registro histórico.

Apesar das práticas e falhas nos sistemas judiciais, sobretudo na época contemporânea, nunca se deixou de buscar o ideal de justiça, com a repulsa aos artifícios maliciosos que encobrem a verdade.

O Direito Processual brasileiro é baseado nos ônus a que submete a parte: ônus de agir e de reagir, ônus de confessar e de contestar, ônus de requerer uma prova ou silenciar, ônus de conformar-se ou de recorrer. Mas, igualmente, contém alguns deveres das partes para atuarem com licitude na respectiva conduta e concede poderes ao juiz a fim de reprimir qualquer atentado à litigância de má-fé (por exemplo, arts. 14 e 18 do CPC).

É certo que a nossa Constituição assegura o direito ao silêncio e assegura o direito de não produzir prova contra si mesmo no processo penal. Ainda que em homenagem ao direito de defesa e à presunção de inocência, a estupefata e indesejável tolerância da omissão ou da mentira do acusado no processo penal, essa prática não pode ser generalizada aos demais sujeitos da relação judiciária.

O processo é um instrumento de fornecimento de justiça pelo Estado e, portanto, nessa relação pública são inadmissíveis condutas contrárias aos valores morais de retidão e de bom caráter. Aliás, o processo é a "ara sagrada da justiça, para sacrifício à deusa verdade, que reclama dos homens viver o bem, evitar o mal, perseguir a Unidade final, única criadora da Paz Social" (Carlos Aurélio M. de Souza, Poderes éticos do juiz, Porto Alegre: Ed. Fabris, 1987, p. 145).

Ser leal e verdadeiro não constitui um simples ônus, mas um dever de todos para com a Justiça. Esse dever prevalece sobre outros interesses, porque se trata de apanágio principal para um julgamento justo e porque sem verdade não há Direito nem Justiça.

Extraído do site Saraivajur

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