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17 setembro 2009

REVISÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS E PRECLUSÃO TEMPORAL

REVISÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

APÓS O DECURSO DO PRAZO DE CINCO ANOS
(A QUESTÃO DA PRECLUSÃO TEMPORAL)
Parte 1

RUI STOCO 

Desembargador do TJ-SP e Conselheiro do CNJ


1. INTRODUÇÃO:


Questão que vem sendo intensamente questionada e discutida refere-se ao poder de revisão dos atos administrativos, seja por parte da própria autoridade que o editou, seja por parte do Poder Judiciário, através de sua atividade jurisdicional e, ainda, do Conselho Nacional de Justiça, no exercício do controle administrativo desse Poder, por força do que dispõe o art. 103-B, § 4º da Constituição Federal, com redação da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004.


Está-se falando da revisão de atos administrativos sejam eles legítimos, hipótese em que tal ocorre para atender ao interesse da Administração, no que se refere à oportunidade e conveniência dos atos discricionários, ou ilegítimos, por vício de forma ou de substância, em que se exerce o controle de regularidade e legalidade.


A discussão não é nova mas assumiu relevância a partir da explicitação legal, ou seja, a partir da fixação por lei de limite temporal para a revisão dos atos administrativos praticados por qualquer órgão de poder, ou emanados de autoridades com funções administrativas como atividade primária ou atividade-fim, como sói ocorrer com o Poder Executivo, ou como atividade secundária, no âmbito dos poderes Legislativo e Judiciário.


Cabe, contudo, delimitar o tema, e fixá-lo no âmbito da legislação posta e do entendimento que vem sendo delineado hodiernamente no plano doutrinário, por juristas de escol e pelo trabalho de construção e modulação exercido por nossos Pretórios, notadamente pela Suprema Corte e por parte do Conselho Nacional de Justiça.


2. O ATO ADMINISTRATIVO


A Administração Pública realiza sua função precípua de organizar e dirigir por meio de atos jurídicos próprios, que na origem são atos jurídicos com denominação especial de “atos administrativos”.


Como observou HELY LOPES MEIRELLES (1), “tais atos, por sua natureza, conteúdo e forma, diferenciam-se dos que emanam do Legislativo (leis) e do Judiciário (decisões judiciais) quando desempenham suas atribuições específicas de legislação e de jurisdição”.


O conceito de ato administrativo não se traduz em seara de suave colheita, nem há perfeita empatia entre os entendimentos dos doutrinadores.


Lembra MARIA SYLVIA DI PETRO (2) que “onde existe Administração Pública, existe ato administrativo”.


E, realmente, a Administração Pública, como um dos segmentos do Estado, atua através de atos administrativos, que são atos de poder, de mando, constitutivos ou de ordenação.


A autora citada, conceitua o ato administrativo como “a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário" (4) .


Para CELSO ANTÔNIO (5) , ato administrativo é: “A declaração do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.

O pranteado HELY LOPES MEIRELLES constrói entendimento parelho com os atos jurídicos em geral e conceitua o ato administrativo como “toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir; resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria”.(5)

 
3. A DELIMITAÇÃO NO TEMPO DA REVISÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS:


A Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal preceitua no art. 54:


Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.


Impende notar que a lei referida tem por escopo precípuo estabelecer normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração, como enuncia o seu art. 1º.


Significa, portanto e sem rebuços, que esse conjunto de normas volta-se especialmente à proteção dos administrados, ou seja, dos cidadãos como um todo. Assume natureza protetiva e garantidora, na medida em que – na parte sob estudo – impõe limite temporal para a anulação de atos dos quais decorram efeitos favoráveis aos seus destinatários, segundo a dicção do art. 54.


Por sua vez, antiga redação do art. 95 do Regimento Interno do Egrégio Conselho Nacional de Justiça estabelecia:


Art. 95. O controle dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário será exercido pelo Plenário do Conselho, de ofício ou mediante provocação, sempre que restarem contrariados os princípios estabelecidos no art. 37 da Constituição, especialmente os de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União.


Parágrafo único. Não será admitido o controle de atos administrativos praticados há mais de cinco anos.


Como se verifica, também o Egrégio Conselho Nacional da Justiça, na esteira da legislação posta e do entendimento unânime da doutrina, preocupou-se em adotar regime de revisão dos atos administrativos praticados no âmbito do Poder Judiciário com a mesma garantia e limitação temporal, preconizando o princípio da pacificação e da prevalência da estabilização dos direitos, fixando a preclusão como sistema de perpetuação dos atos administrativos e como garantia individual.


Cabe reforçar essa louvável postura do Colendo Conselho Nacional de Justiça, ao proteger os atos administrativos editados há mais de cinco anos.


Portanto, a concessão de benefícios ou a restrição de direitos por parte da Administração Pública, seja de qualquer dos poderes, decorre da lei e tais atos só podem ser revistos nesse mesmo âmbito durante determinado período de tempo.


Aliás, qualquer ato administrativo, ainda que impregnado de vício e considerado nulo, pode ser mantido ou preservado, quando se coloquem em confronto, no âmbito administrativo, os princípios da legalidade e da segurança jurídica, considerando que estes nem sempre se postam em harmonia e conjunção.


Como se infere, pode-se então sustentar, com supedâneo em forte doutrina que sempre mereceu nossa adesão, que a Administração não poderia mais rever seus próprios atos para declará-los nulos, se assim age tardiamente, após o decurso de cinco anos.


Tal entendimento encontra supedâneo, dentre outras, na obra do saudoso e sempre lembrado HELY LOPES MEIRELLES (6) quando observava: “O particular não pode ficar perpetuamente sujeito a sanção administrativa por ato ou fato praticado há muito tempo”.


Preconizava também o ilustre administrativista que também a Administração tem prazo para rever e anular seus atos.


E ninguém poderá supor que a garantia das relações humanas e das relações comerciais pode sofrer exceção, com a previsão de perecimento do direito de ação ou do direito em si apenas no âmbito judicial, afastada essa possibilidade com relação ao Poder Público.


Ora, se o particular em face da Administração ou de qualquer outra pessoa, só pode agir e pleitear dentro de determinado tempo, não há justificativa e significado que também àquela não se deva impor o mesmo critério. E o vetusto Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, preceitua que as ações contra as pessoas jurídicas de direito público prescrevem em cinco anos.


Nessa trilha caminhou a doutrina majoritária, que conforta esse entendimento, como o saudoso DIÓGENES GASPARINI (7), quando ensinou que “transcorrido o prazo prescricional, o ato, embora viciado, torna-se definitivo e intocável no âmbito da Administração Pública”.


Também DIOGO DE FIGUEIREDO (8) preconizou que a prescrição administrativa impede a Administração de rever seus próprios atos.


Acrescente-se, nessa mesma direção, o escólio de MARIA SYLVIA DI PIETRO (9).


Essa messe de autores de nomeada consagra na doutrina o que posteriormente foi assegurado pela própria lei.


4. A POSSIBILIDADE DE CONVALIDAÇÃO DOS ATOS INVÁLIDOS PRATICADOS HÁ MAIS DE CINCO ANOS:


Não é, portanto, repugnante ao Direito Administrativo nem mesmo a hipótese de convalidação dos atos inválidos, embora a questão aqui posta deles não trate.


É que, parafraseando CELSO ANTÔNIO (10), a convalidação é uma forma de recomposição da legalidade ferida .


Invoca-se, por oportuno, a lição de MAURO ROBERTO FOMES DE MATTOS quando enfatiza: “O fato consumado no Direito Administrativo possui a força de convalidar, ou até mesmo sanear o ato nulo e anulável. A segurança jurídica funciona, assim, como resultado de um conjunto de técnicas normativas encaminhadas a garantir a própria consciência do sistema, que tem no fato consumado um dos elos de sustentação”.(12)


Em julgamento histórico, a Suprema Corte, tendo como relator o Ministro e constitucionalista GILMAR FERREIRA MENDES, deixou afirmado que “o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica” e que “a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido”.(12).


Em diversas oportunidades o Supremo Tribunal Federal manifestou-se pela aplicação desse princípio da segurança jurídica em atos administrativos inválidos, como subprincípio do Estado de Direito.(13) 


Desde sempre a melhor doutrina preconizada por REALE destacou, especialmente a partir das experiências européias, que, em razão das exigências axiológicas antes referidas – e, também, do devido processo legal – na anulação de ato administrativo devem ser considerados, como parte do problema jurídico a equacionar, a existência, de um lado, da “possibilidade de haver-se como legítimo ato nulo ou anulável, em determinadas e especialíssimas circunstâncias, bem como a constituição, em tais casos, de direitos adquiridos, e, de outro lado, considerando-se exaurido o poder revisional ex officio da Administração, após um prazo razoável”.(14)
Notas do Autor:
1. MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Atualizada por Eurico A. Azevedo, Délcio B. Aleixo e José E. B. Filho. 26. ed. São Paulo: Malheiro Editores, 140.
2. DI PETRO. Maria Sylvia Zenella. Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 176.
3. IDEM, p. 181.
4. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 18ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 356.
5. MEIRELLES. Hely Lopes. Ob. cit., p. 141.
6. MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21. ed. Atualizado por Eurico A. Azevedo, Délcio B. Aleixo e José Eemmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores., 21a ed., p. 589).
7. GASPARINI. Diógenes. Direito Administrativo, São Paulo: Ed. Saraiva, 1993, p. 567.
8. MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, p. 172).
9. DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. São Paulo: Ed. Atlas, p. 486.
10. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Malheiros Editores, p. 297.
11. MATTOS. Mauro Roberto Fomes de. Princípio do fato consumado no Direito Administrativo. RDA 220/195, abr.-jun/2000.
12. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RTJ 192/620.
13. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: MS 24.268, DJ 17.09.04; MS 22.357, DJ 05.11.04: RE 217.141-5, de 13.06.2006, todos relatados pelo Ministro Gilmar Mendes.
14. REALE. Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 67/73.

Extraído do Boletim Mensal de Doutrina e Jurisprudência do CNJ, no. 02/2009

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