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15 setembro 2009

REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O SEGREDO

Sérgio Urquhart de Cademartori

Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela UFSC e Professor da Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC

O segredo como prática de dominação política, ou como instrumento de poder, acompanha a trajetória histórica do Estado moderno e contemporâneo. Corporificada hoje na noção de "Segredos de Estado", a ação do governo que se oculta escondendo suas práticas, encontra-se presente nas reflexões de quase todos aqueles que erigem a política como um dos campos privilegiados de estudo. De fato, desde o nascedouro daquela instituição conhecida como "forma-Estado", com o processo de laicização do poder que se dá na Baixa Idade Média Ocidental e a subseqüente consolidação de governos absolutistas, encontramos as práticas secretas dos governantes no centro dos processos de tomadas de decisão a respeito do destino de seus povos.

Impõe-se assim a necessidade de verificação de como se dá essa relação poder/segredo/democracia no Estado Constitucional, a fim de verificar-se em que medida a existência de âmbitos ocultos na esfera governamental compromete a plena realização das promessas democráticas presentes nas constituições dos Estados que assumem esse tipo de relação política que é o Estado de Direito como aparato de poder essencialmente limitado pelo Direito.

Com efeito, o poder que oculta e que se oculta (no dizer de Bobbio), é sem mais um poder antidemocrático, eis que subtrai à sociedade, legítima detentora da soberania, o conhecimento (e subseqüente controle) das informações e decisões tomadas por aqueles que, em seu nome e temporariamente, exercem o mando do Estado.

Por isso mesmo cuidou o constituinte de 1988 de incluir entre as garantias fundamentais aquela inscrita no inciso XXXIII do artigo 5º o direito de acesso às informações por parte das pessoas, ressalvando, na parte final do dispositivo, aquelas cuja divulgação poderia comprometer a segurança da sociedade e do Estado.

Frise-se que a regra é a publicidade, conforme o mandamento constitucional da cabeça do artigo 37; o sigilo deve ser considerado exceção a ser circunscrito estritamente na forma da lei.

Daí a necessidade de edição de uma legislação orientada à garantia de acesso às informações estatais, sempre que desnecessário, por não mais subsistirem as razões justificadoras para tal, a manutenção do sigilo das mesmas.

Em cumprimento ao ditado constitucional, veio então o legislador pátrio a editar alguns diplomas legais a regular a classificação documental (colocação de documentos sob algum dos graus de sigilo: reservado, confidencial, secreto e ultra-secreto), bem como estabeleceu prazos para a sua desclassificação (retirada dos documentos daquele manto protetivo).

Nesta esteira, foi editada em 1991 a Lei 8159, dispondo sobre a Política Nacional de Arquivos Públicos e Privados, a qual dispunha, em seu art. 23, § 2º:

"§ 2º - O acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de sua produção, podendo esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período."

Tinha-se assim o prazo máximo de sessenta anos para desclassificação documental, seguindo a política da Freedom of Information Act dos Estados Unidos da América, norma que nesse país estabelece prazos para acesso aos documentos governamentais por parte dos cidadãos.

Entretanto, o nosso legislador, posteriormente, tomou rumo distinto: em 2005 foi convertida em lei a Medida Provisória 228, de 2004, vindo a receber o número 11.111, cujo objetivo, sob o argumento de regular o precitado inciso XXXIII do artigo 5º da Lei Magna, evidenciou a vontade política de manter determinadas informações longe do alcance do público por prazo indefinido, o que atenta frontalmente contra o mandamento constitucional.

Veja-se: Em seu artigo 4º,a nova lei cria, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, uma Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, com a competência de decidir sobre a desclassificação ou não de documentos, mesmo após o advento daquele prazo máximo de sessenta anos.

Assim, por força do disposto no § 2º do artigo 6º da Lei, se essa Comissão entender que o acesso ao documento possa eventualmente vir a ameaçar a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do País, poderá manter o sigilo documental "pelo tempo que estipular" (sic).

Ora, tal comando normativo deposita em mãos de autoridades administrativas o poder discricionário de permitir ou não o exercício de um direito fundamental, qual seja, o de obter informações.

Tal previsão legal de sigilo perpétuo, a par de sua inconstitucionalidade, ataca um dos núcleos da democracia, eis que impede a sociedade de saber o que está sendo feito pelos seus mandatários. De fato, o direito à informação (de informar-se, de informar e de ser informado), é pressuposto necessário para o controle do governo. Devemos ter sempre presente que o Estado de Direito abomina qualquer instância ilimitada de poder.

A par disso, a falta de acesso aos documentos governamentais acarretará um dano irreparável à nossa memória histórica: sem aceso às fontes primárias, só restará aos nossos historiadores e pesquisadores especular sobre o passado. Não poderemos conhecer a nossa história. E povo que não conhece a sua história nunca poderá constituir-se como sociedade, ficando condenado à condição de horda.

Extraído do Jornal Carta Forense, terça-feira, 1 de julho de 2008

Informações complementares do blog:
 
Texto integral da lei que regulamenta o sigilo no Brasil:

LEI Nº 11.111, DE 5 DE MAIO DE 2005.
Conversão da MPv nº 228, de 2004-Regulamenta a parte final do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 5o da Constituição Federal e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o Esta Lei regulamenta a parte final do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 5o da Constituição Federal.
Art. 2o O acesso aos documentos públicos de interesse particular ou de interesse coletivo ou geral será ressalvado exclusivamente nas hipóteses em que o sigilo seja ou permaneça imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, nos termos do disposto na parte final do inciso XXXIII do caput do art. 5o da Constituição Federal.
Art. 3o Os documentos públicos que contenham informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado poderão ser classificados no mais alto grau de sigilo, conforme regulamento.
Art. 4o O Poder Executivo instituirá, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, com a finalidade de decidir sobre a aplicação da ressalva ao acesso de documentos, em conformidade com o disposto nos parágrafos do art. 6o desta Lei.
Art. 5o Os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público da União e o Tribunal de Contas da União disciplinarão internamente sobre a necessidade de manutenção da proteção das informações por eles produzidas, cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, bem como a possibilidade de seu acesso quando cessar essa necessidade, observada a Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991, e o disposto nesta Lei.
Art. 6o O acesso aos documentos públicos classificados no mais alto grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo e prorrogação previstos no § 2o do art. 23 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991.
§ 1o Vencido o prazo ou sua prorrogação de que trata o caput deste artigo, os documentos classificados no mais alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público.
§ 2o Antes de expirada a prorrogação do prazo de que trata o caput deste artigo, a autoridade competente para a classificação do documento no mais alto grau de sigilo poderá provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que avalie se o acesso ao documento ameaçará a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do País, caso em que a Comissão poderá manter a permanência da ressalva ao acesso do documento pelo tempo que estipular.
§ 3o Qualquer pessoa que demonstre possuir efetivo interesse poderá provocar, no momento que lhe convier, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que reveja a decisão de ressalva a acesso de documento público classificado no mais alto grau de sigilo.
§ 4o Na hipótese a que se refere o § 3o deste artigo, a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas decidirá pela:
I - autorização de acesso livre ou condicionado ao documento; ou
II - permanência da ressalva ao seu acesso.
Art. 7o Os documentos públicos que contenham informações relacionadas à intimidade, vida privada, honra e imagem de pessoas, e que sejam ou venham a ser de livre acesso poderão ser franqueados por meio de certidão ou cópia do documento, que expurgue ou oculte a parte sobre a qual recai o disposto no inciso X do caput do art. 5o da Constituição Federal.
Parágrafo único. As informações sobre as quais recai o disposto no inciso X do caput do art. 5o da Constituição Federal terão o seu acesso restrito à pessoa diretamente interessada ou, em se tratando de morto ou ausente, ao seu cônjuge, ascendentes ou descendentes, no prazo de que trata o § 3o do art. 23 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991.
Art. 8o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 5 de maio de 2005; 184o da Independência e 117o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Marcio Thomaz Bastos
José Dirceu de Oliveira e Silva
Jorge Armando Felix
Álvaro Augusto Ribeiro Costa

Em 20/05/2008, o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, ingressou perante o STF (Supremo Tribunal Federal) com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4077) contra o sigilo de documentos públicos no Brasil, regulado pelas leis nº 8.159/91 e 11.111/2005.
A petição inicial contém 15 laudas e, no início, ao apontar a incidência de inconstitucionalidade formal da referida lei, por inexistência de relevância e urgência que justificasse sua alteração por Medida Provisória, ressaltou:

“Como sabemos, numa República Democrática, nem a cidadania nem os direitos políticos se resumem a votar e ser votado. Incluem também a participação ativa dos cidadãos no devido processo político, peticionando aos Poderes públicos, fazendo as suas sugestões, postulando o que de direito, conditio e condendo, questionando as decisões proferidas e, enfim, atuando plenamente na civitas. O pressuposto dessa atuação é exatamente o direito à informação (art. 5º , XIV e XXXIII).”

Os dispositivos legais questionados são os seguintes:


Art. 023, caput e § 003º, da Lei nº 8159, de de 08 de janeiro de 1991 e contra os arts. 003 e 004º, da Lei nº 11111, de 05 de maio de 2005.


Lei 8159, de 08 de janeiro de 1991.
Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências.


Art. 23. Decreto fixará as categorias de sigilo que deverão ser obedecidas pelos órgãos públicos na classificação dos documentos por eles produzidos.
(...)
§ 003º - O acesso aos documentos sigilosos referente à honra e à imagem das pessoas será restrito por um prazo máximo de 100 (cem) anos, a contar da sua data de produção.

A relatora da ADI é a ministra Ellen Gracie e não houve concessão de liminar, estando o processo em fase de instrução – colheita de informações e manifestação de interessados para ser posta em julgamento.

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