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18 setembro 2009

REVISÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS E PRECLUSÃO TEMPORAL-2

REVISÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
APÓS O DECURSO DO PRAZO DE CINCO ANOS
(A QUESTÃO DA PRECLUSÃO TEMPORAL)


Parte 2 - Final

RUI STOCO

Desembargador do TJ-SP e Conselheiro do CNJ

5. A SEGURANÇA JURÍDICA COMO FATOR DE PACIFICAÇÃO:



Ora, atualmente, em nome do princípio da segurança jurídica, há de se estabelecer um prazo razoável para a anulação ou revisão de atos da Administração que interfiram na esfera jurídica de terceiros.


Esse prazo, para o ilustre jurista ALMIRO COUTO E SILVA , deveria ser o de cinco anos, a partir da aplicação extensiva do disposto no Decreto n.° 20.910/32, no Decreto-lei n.° 4.597/42 e, especialmente, no art. 21 da Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65).


Esse princípio – como acima observado – foi consagrado na Lei Federal n.° 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, tanto em seu art. 2o, que estabelece que a Administração Pública obedecerá ao princípio da segurança jurídica, quanto em seu art. 54, que fixa o prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram praticados os atos administrativos, para que a Administração possa anulá-los.


Incide o princípio da simetria, posto que se, para o particular acionar a Fazenda Pública, a legislação de regência estabelece o prazo prescricional de cinco anos, não há como admitir que a Administração Pública possa rever seus próprios atos, ainda que de forma oblíqua, através de comando emergente do Conselho Nacional de Justiça (que não tem competência jurisdicional – CF, art. 103-B, § 4o), em detrimento ou a dano do agente público ou do administrado, a qualquer tempo. Só poderá fazê-lo no mesmo prazo.


Como não se desconhece, o tempo é fator fundamental nas relações jurídicas. Tem o poder de apaziguar, superar contendas e arrostar nulidades.


Aliás, a segurança jurídica sobrepõe-se a qualquer outro interesse. Sobre ser fator de segurança é também fator de pacificação.


O Direito, como um todo harmônico e informado por princípios que sustentam o ordenamento jurídico, propõe-se a assegurar um certo equilíbrio e estabilidade nas relações humanas e um mínimo de certeza na regência da vida social.


Também CELSO ANTÔNIO entende que os institutos da prescrição, da decadência, da preclusão (na esfera processual), do usucapião, da irretroatividade da lei, do direito adquirido, são expressões concretas que bem revelam esta profunda aspiração à estabilidade, à segurança, conatural ao Direito.


Por sua vez, acrescentamos, o Direito Administrativo moderno, abeberando-se na sua fonte de origem – que é o Direito Constitucional – evoluiu no sentido de não mais colocar invariavelmente o Estado no vértice da pirâmide, cedendo lugar ao “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, como consta do intróito da Carta Magna.


São proposições e regras de superdireito de natureza programática, colocados no frontispício do Estatuto Constitucional para restar evidenciado que exsurgem e se postam como pressupostos das demais normas constitucionais escritas.


A segurança jurídica é um valor constitucional que se qualifica como subprincípio do princípio maior do Estado de Direito, que é o da legalidade.


Segurança jurídica e legalidade são, sabidamente, os dois pilares da sustentação do Estado de Direito .


Advirta-se que a segurança jurídica é, ainda, a forma de expressão e projeção na sociedade de três outros princípios expressamente previstos no art. 5o, inciso XXXVI da Magna Carta: a) direito adquirido; b) ato jurídico perfeito; c) coisa julgada.


O mestre CANOTILHO orienta no sentido de que “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida”. Por isso, diz: “desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito”.


CELSO ANTÔNIO , em outro rico trabalho doutrinário –– este mais específico –– com a proficiência de sempre, afirma a “impostergável exigência de estabilidade nas relações jurídicas”, esclarecendo que “...o Direito, postula a imutabilidade das situações constituídas”.


Historicamente sempre foi assim.


O constitucionalista LUIS ROBERTO BARROSO traz lição de inexcedível clareza acerca dos valores essenciais da República:


Num Estado Democrático de Direito, a ordem jurídica gravita em torno de dois valores essenciais: a segurança e a justiça, tanto material como formal, prevêem-se diferentes mecanismos, que vão da redistribuição de riquezas ao asseguramento do devido processo legal. É para promovê-la que se defende a supremacia da Constituição, o acesso ao Judiciário, o respeito a princípios como os da isonomia e o da retroação da norma punitiva mais benéfica. A segurança, por sua vez, encerra valores e bens jurídicos que não se esgotam na mera preservação da integridade física do Estado e das pessoas. Abrigam-se em seu conteúdo, ao contrário, conceitos fundamentais da vida civilizada, como a continuidade das normas jurídicas, a estabilidade das situações constituídas e a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas.


Apenas nos últimos anos, é oportuno lembrar, a legislação da União, especialmente as Leis n.°s 9.784, de 29.01.99 (arts. 2o e 54); 9.868, de 10.11.99 (art. 27) e 9.882, de 03.12.99 (art. 11), passaram a dispor, respectivamente, acerca do processo administrativo da União, da Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, referindo-se à segurança jurídica, quer como princípio geral da Administração Pública, de matriz constitucional, a justificar a permanência no mundo jurídico de atos administrativos inválidos, quer como valor constitucional a ser ponderado, em determinadas circunstâncias, em cotejo com os princípios da supremacia da Constituição e da nulidade ex tunc da lei inconstitucional.


Como advertiu o citado MAURO ROBERTO FOMES DE MATTOS : “A indeterminação e a perpetuidade da Administração Pública rever seus atos ad eternum, criaria verdadeiro caos para a sociedade, administrados e servidores públicos, em razão da criação da instabilidade jurídica que seria vivida por todos”.


Essa tese da segurança jurídica foi abraçada e defendida pelo Ministro CEZAR PELUSO no julgamento das contas do Presidente da República, relativas às últimas eleições, no que foi acompanhado pelos demais integrantes do Tribunal Superior Eleitoral.


6. OS PRECEDENTES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES E DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA:

 
O entendimento doutrinário acima exposto tem recebido o apoio e adesão dos tribunais e do Conselho Nacional de Justiça.


No Tribunal de Justiça de São Paulo colhe-se o seguinte julgado:


“É hoje entendimento assentado pela doutrina que, também a anulação de ato pela própria administração, sujeita-se ao prazo de cinco anos, sob o nome de prescrição ou preclusão administrativa. Nos casos de revisão de ato administrativo para efeito de anulação de licitação e do contrato firmado, impõe-se assegurar ao vencedor que adjudicou a obra ou serviço o direito de defesa, da forma mais ampla possível” (TJSP – 3a C. Dir. Público – Ap. 50.119-5/2 – Rel. Rui Stoco – j. 21.12.99 – Voto 1.301/99).

Também o Superior Tribunal de Justiça assim decidiu:
“A aplicação da denominada “teoria do fato consumado” pressupõe uma situação ilegal consolidada no tempo, em decorrência da concessão de liminar. Inaplicabilidade desse entendimento para se reconhecer o direito sobre situação que ainda não ocorreu (nomeação de candidato aprovado sub judice em concurso público)” (STJ – 3ª Seção – MS 6.215 – Rel. Min. Felix Fischer – j. 23.06.99 – RSTJ 128/403).
No âmbito do Conselho Nacional de Justiça o tema recebeu atenção especial e o posicionamento da Corte foi construído paulatinamente, após inúmeros e longos debates.
Firmou-se entendimento no sentido de que os atos administrativos praticados há mais de cinco não se submetem a controle, impondo-se a sua manutenção, como se verifica dos precedentes abaixo:


Promoção por merecimento. Controle de ato administrativo praticado em 1994. Decadência do direito. – “O CNJ não controla atos administrativos praticados há mais de 5 anos, que não afrontem diretamente a Constituição, por força do disposto no art. 95, parágrafo único do RICNJ” (CNJ – PCA 200810000006287 – Rel. Cons. Paulo Lôbo – 65ª Sessão – j. 24.06.2008 – DJU 05.08.2008).
Recurso Administrativo contra decisão monocrática. Questões relativas a concursos ocorridos em 1988 e 1992. Alegação de nepotismo no âmbito do TJSE. – “1) Não pode o CNJ controlar atos administrativos ocorridos há mais de cinco anos. II) O Requerente poderia ter promovido das medidas pertinentes à defesa dos interesses de seus associados à época em que pretensamente seus direitos teriam sido ofendidos. III) Alegação de nepotismo sem concretude e sem provas não pode ser acolhida.” (CNJ – PP 200810000014910 – Rel. Cons. Marcelo Nobre – 75ª Sessão – j. 02.12.2008 – DJU 19.12.2008).
7. CONCLUSÃO:


Todavia, a expressiva maioria dos membros do Conselho evoluiu no sentido de adotar interpretação restritiva, firmando entendimento de que o prazo decadencial de cinco anos a que se referem o art. 54 da Lei 9.784/99 e o art. 95, parágrafo único do Regimento Interno do CNJ (em sua versão antiga), estabelecido para a revisão e anulação de ato administrativo irregular, não se aplica quando este ato tiver afrontado diretamente norma constitucional, “que restaria inócua se tal revisão não pudesse ser admitida, segundo a dicção da maioria”.
Tal restrição não recebeu nossa adesão, na consideração de que onde a lei não distinguiu não cabe ao intérprete fazê-lo.


Perceba-se que o referido art. 54 da Lei nº 9.784/99 negou o direito de a Administração anular atos dos quais decorram efeitos favoráveis para os seus destinatários, impondo a decadência desse direito após cinco anos.


Ora, não há como aderir ao entendimento de que não se pode pacificar e preservar atos favoráveis aos destinatários, editados há mais de cinco anos, quando tenham afrontado a Constituição Federal posto que buscou o legislador, em casos excepcionais, preservar os atos administrativos, ainda que sejam ilegais, empregada essa palavra como gênero.


Como ensinava HANS KELSON : “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação correta. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente”.


Cabe, por derradeiro, acrescentar que a decadência e a preclusão constituem hipóteses de perecimento, tal como ocorre com a prescrição. São figuras expressivas da necessidade de pacificação e da segurança jurídica.


Justamente por essa razão é que a imprescritibilidade só pode ocorrer quando expressamente declarada na Constituição Federal.


E esta Carta de Princípios o fez in numerus clausus, quer dizer, estabeleceu previsão taxativa das hipóteses de imprescritibilidade, não se podendo acrescentar-lhes qualquer outra, quais sejam: a) racismo (art. 5º, XLII); b) ação de grupos armados (art. 5º, XLIV); c) para alguns, a imprescritibilidade das ações de ressarcimento por ilícitos praticados por servidores públicos (art. 37, § 5º); d) direito dos índios sobre terras que tradicionalmente ocupam (art. 231, § 4º).


Ainda que haja maltrato a texto constitucional só se admitirá a imprescritibilidade e a retroação no tempo sem limites para a desconstituição do ato se a própria Carta Magna assim estabelecer expressamente, como efetivamente o fez para reduzidas hipóteses.


Nosso grande pensador moderno, PAULO BONAVIDES , assim se manifestou certa ocasião: “Como disse na tribuna portuguesa Latino Coelho, o grande publicista da liberdade, “o silêncio da Constituição é lei tão obrigatória como a sua palavra”.


Não obstante isso, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou o novo Regimento Interno na 79ª Sessão de julgamento, realizada em 3 de março de 2009 dando nova redação ao parágrafo único do art. 91, assim redigido:


Parágrafo único. Não será admitido o controle de atos administrativos praticados há mais de cinco (5) anos, salvo quando houver afronta direta à Constituição.
Durante os debates apresentamos, como Conselheiro da Corte, nossa insurgência contra essa modificação e registramos nossa discordância durante a Sessão de julgamento que aprovou o novo texto.
Caberá, então, ao colendo Supremo Tribunal Federal dirimir essa importante questão, até porque as Leis nºs 9.882/99 e 9.868/99 – que dispõem, respectivamente, acerca do processo administrativo da União, da Ação Declaratória de Constitucionalidade, Ação Direta de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – criaram a possibilidade dessa Corte fixar o momento em que a norma inconstitucional perde a eficácia, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, podendo restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir do seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.


Parece, dessarte, que o aplicador da lei só pode fazer a modulação prospectiva in bonam partem pois, segundo as leis referidas, tal ocorre em nome da segurança jurídica e do interesse social.

Notas do Autor:

15. COUTO E SILVA. Almiro. Prescrição quinquenária da pretensão anulatória da Administração Pública com relação aos seus atos administrativos. Revista de Direito Administrativo, n. 204, p. 21-31, abril-junho/1996.
16. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 113.
17. COUTO E SILVA. Almiro do. Revista de Direito Administrativo, Renovar, v. 237, p. 280.
18. CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, p. 252.
19. BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. O Direito adquirido e o Direito Administrativo, Interesse Público, Revista Notadez, Porto Alegre, ano VIII, n. 38, 2006, p. 13.
20. BARROSO. Luis Roberto. Autonomia do Direito Administrativo e inaplicabilidade da regra geral do Código Civil. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, v. 27, p. 89-107.
21. MATTOS. Mauro Roberto Fomes de. Princípio do fato consumado no Direito Administrativo, RDA 220/195, abr.-jun/2000.
22. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1997, p. 396.
23. BONAVIDES, Paulo. O direito à paz como direito fundamental da quinta geração. Interesse Público. Revista Notadez, Porto Alegre, ano VIII, n. 40, 2006, p. 17.

Extraído do Boletim Mensal de Doutrina e Jurisprudência do CNJ, no. 02/2009
Mandado de segurança. Ato administrativo. Preclusão administrativa. — “I - O ato administrativo conta com a retratabilidade que poderá ser exercida enquanto dito ato não gerar direitos a outrem. Ocorrendo a existência de direitos, tais atos são atingidos pela preclusão administrativa, tornando-se irretratáveis por parte da própria administração. II – É que, exercitando-se o poder da revisão de seus atos, a Administração tem que se ater aos limites assinalados na lei, sob pena de ferir o direito líquido e certo do particular, o que configura ilegalidade e ou abuso de poder. III – Segurança concedida” (STJ – 1a Seção – MS 009-DF – Rel. Min. Pedro Accioli – j. 31.10.89 – RSTJ 17/195).

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