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03 setembro 2009

DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL – Parte 2 – Final


Humberto Theodoro Júnior
Advogado; Doutor em Direito; Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG; Desembargador Aposentado do TJMG; Membro da Academia de Direito de Minas Gerais, do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual e da International Association of Procedural Law.

3 As Reformas Por Que Vem Passando o Direito Processual Civil Brasileiro

Embora seja evidente a lentidão com que os processos caminham no foro brasileiro, há aqueles que criticam acidamente o projeto de reformas do nosso CPC, a pretexto de estar voltado apenas para o problema da celeridade, descuidando-se da preservação de outras garantias fundamentais a que a Constituição sujeita o processo, como a do contraditório e ampla defesa. Chega-se ao extremo de qualificar o modelo reformista brasileiro como acometido de uma patologia ainda mais grave do que a supervalorização da celeridade: afirma-se que "foi sendo esvaziado o papel do processo como instituição garantidora de implementação de direitos fundamentais", graças à implantação paulatina de um sistema que diminui "o espaço cognitivo formador das decisões" e promove "a defesa da rapidez procedimental a qualquer preço" 18.

Realmente, a celeridade da prestação jurisdicional, embora seja uma das garantias fundamentais figurantes nas modernas Constituições dos Estados Democráticos de Direito, não é a única, devendo, por isso mesmo, conviver e harmonizar-se com outras que igualmente merecem igual prestígio constitucional. O ideal na implantação do processo justo é, de fato, que sua duração seja breve, mas sem impedir que o contraditório e ampla defesa se cumpram. Cabe ao juiz esforçar-se por evitar delongas injustificáveis, reduzindo ao mínimo o tempo de espera da prestação jurisdicional, sem, entretanto, perder de vista que todas as garantias constitucionais do processo têm de ser observadas até chegar a um ponto de equilíbrio entre elas e o princípio de "duração razoável". É justamente esse equilíbrio, essa harmonia, que conduz à "verdadeira eficiência processual", num clima de adequada perseguição do "processo justo" 19. O "processo justo", enfim, não é aquele desempenhado segundo um único e dominante princípio, mas o que permite a convivência harmoniosa de todos os princípios e garantias constitucionais pertinentes ao acesso à justiça e prestação efetiva da adequada tutela aos direitos subjetivos materiais.

Destaca Aroldo Plínio Gonçalves, a propósito, que:

"(...) a economia e a celeridade do processo [embora sejam 'predicados essenciais da decisão justa, sobretudo quando a natureza dos interesses em jogo exige que os ritos sejam simplificados'] não são incompatíveis com as garantias das partes, e a garantia constitucional do contraditório não permite que seja ele violado em nome do rápido andamento do processo. A decisão - conclui o autor - não se qualifica como justa apenas pelo critério da rapidez, e se a justiça não se apresentar no processo não poderá se apresentar, também, na sentença." 20

Acontece, porém, que não se pode adotar uma posição radical e preconceituosa em torno do movimento reformista. Se o contraditório é uma garantia inafastável do processo judicial democrático - e isto ninguém contesta -, nem por isto se há de anatematizar todo e qualquer esforço para reduzir a injusta demora na duração do processo. Essa redução pode (e deve) perfeitamente ocorrer desde que, razoavelmente, se preserve uma adequada oportunidade para o contraditório.

A técnica do constitucionalismo contemporâneo é a de que não há princípios absolutos em seus domínios. Todos os princípios constitucionais são mais ou menos fluidos e suscetíveis de recíproca intercorrência. Entretanto, nenhum deles anula os demais, de maneira que cumpre ao intérprete buscar, segundo os critérios da razoabilidade e proporcionalidade, uma forma de harmonizá-los, fazendo com que convivam, nas situações concretas de aparente conflito, em lugar de proclamar, simplesmente, a supremacia absoluta de um deles.

Nas centenas de artigos do CPC remodelados nas reformas pontuais a que o estatuto se submeteu nos últimos anos, pouquíssimos são aqueles que se apresentam como de duvidosa compatibilidade com a garantia constitucional do contraditório e das liberdades individuais.

Já se apelidaram as reformas do CPC brasileiro, tendentes a agilizar o processo, como fruto de adoção de uma postura neoliberal incompatível com os princípios constitucionais brasileiros e de subserviência ao capitalismo global retratado pelo FMI e o Banco Mundial, fomentadores da justiça célere a qualquer custo.

Qualquer que seja o rumo adotado pela organização política do Estado, o combate à morosidade da justiça é imposição da própria garantia de tutela jurídica. A demora injustificável na resposta jurisdicional sempre foi e continua sendo vista como "denegação de justiça", seja o Estado liberal, social ou neoliberal. Tão importante é o combate a essa chaga do processo judicial que os tratados dos direitos do homem e as Constituições modernas consagram a celeridade processual como garantia fundamental.

Pode-se afirmar que só com a agilização do processo não se realiza a melhor prestação jurisdicional. Mas o que, data venia, não se justifica é a qualificação sistemática e apaixonada de neoliberalismo imposta a toda e qualquer reforma tendente a tornar mais pronta a tutela jurisdicional.

Se há outras medidas a tomar para o aprimoramento do processo, cabe aos juristas apontá-las e defendê-las. O que não se justifica é simplesmente rejeitar e recriminar sistematicamente a adoção de medidas de aceleramento processual, já que tal postura se contrapõe às próprias garantias de ordem constitucional vigentes.

É bom lembrar que, no século XX, o processo civil alemão, sem dúvida um dos mais eficientes da Europa continental, teve as mais acentuadas reformas com enfoque, sobretudo, nos meios de descongestionar os tribunais (expedientes de desburocratização e aceleração da marcha processual), como informa Hanns Prutting 21.

4 Reforma do Processo ou Reforma da Justiça?

Uma nota merece se fazer aos graves focos de deficiência da prestação jurisdicional localizados fora do procedimento. Não se pode esperar - como reiteradamente temos advertido - que, com uma simples alteração legislativa, o processo se torne automaticamente perfeito e garantida esteja a concretização de tudo aquilo visado pela reforma.

Entre a mudança da norma e a transformação da realidade dos serviços judiciários, vai uma distância muito grande, que não se cobre apenas pela edição de textos legislativos. Temos reiteradamente advertido para o fato de que a demora e ineficiência da justiça - cuja erradicação se coloca como a principal inspiração da reforma do processo - decorre principalmente de problemas administrativos e funcionais gerados por uma deficiência notória da organização do aparelhamento burocrático do Poder Judiciário brasileiro. Influem muito mais na pouca eficácia e presteza da tutela jurisdicional as etapas mortas e as diligências inúteis, as praxes viciosas e injustificáveis, mantidas por simples conservadorismo, que fazem com que os processos tenham que durar muito mais do que o tolerável e muito mais mesmo do que o tempo previsto na legislação vigente.

Um aprimoramento efetivo da prestação jurisdicional, por isso mesmo, só se poderá alcançar quando se resolver enfrentar a modernização dos órgãos responsáveis pela justiça, dotando-os de recursos e métodos compatíveis com as técnicas atuais de ciência da administração, e preparando todo o pessoal envolvido para adequar-se ao desempenho das mesmas técnicas 22.

Em suma, impende reconhecer, numa visão isenta, não apaixonada, sobre o problema, que a implantação do processo justo não depende tanto de reformas legislativas sobre os textos dos códigos. O que sua efetiva observância reclama, na verdade, é uma nova mentalidade para direcionar o comportamento dos operadores do processo rumo à valorização dos princípios constitucionais envolvidos na garantia do que hoje se tem por "processo justo". O legislador tem obrigação de aprimorar as normas procedimentais, sem dúvida. Na maioria das hipóteses, no entanto, basta aplicar o processo existente sob o influxo exegético dos princípios constitucionais para que o juízo se desenvolva de maneira a obter a otimização do processo, que se concretiza quando por ele se garante, em tempo razoável, e mediante amplo contraditório, a efetiva e adequada atuação do direito material 23.

5 Conclusões

O processo, no Estado Democrático de Direito, está, no campo de seus fundamentos e de sua macroestrutura, totalmente constitucionalizado. Os poderes de acesso à justiça e os deveres de tutela jurisdicional integram as garantias fundamentais proclamadas pelas Constituições dos países onde reina a democracia de forma mais ampla e autêntica.

A visão sintética e universal do moderno processo constitucionalizado (processo justo) é dada por Mauro Bove, para quem o Estado Democrático de Direito não pode apenas garantir a tutela jurisdicional, mas tem de assegurar uma tutela qualificada pela fiel observância dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente 24.

Em virtude do princípio da supremacia da Constituição, o comportamento dos órgãos jurisdicionais durante o desenvolvimento dos processos e o julgamento das causas há, sem dúvida, de ter como ponto de partida a observância das garantias constitucionais do moderno "processo justo" 25.

As leis processuais comuns formam um arcabouço instrumental destinado, sobretudo, a disciplinar os aspectos procedimentais para se alcançar a tutela jurisdicional. De modo algum sua interpretação e manejo podem contrariar as regras e princípios traçados pela ordem constitucional (onde hoje se insere a essência do tratamento jurídico-institucional do processo e da jurisdição).

Isto, porém, não pode ser entendido como a liberação do juiz para proceder no processo apenas com respaldo na Constituição, criando procedimentos novos e desprezando aqueles determinados pelas leis infraconstitucionais em vigor. O Estado Democrático de Direito é, antes de tudo, um Estado de Direito, onde, portanto, não se vive sob regência do "direito livre" ou "alternativo", mas da lei emanada do órgão credenciado para instituir a ordem jurídica infraconstitucional. A Constituição é a lei suprema, mas as leis ordinárias são a maneira prática e efetiva de interpretar e traduzir a vontade fundamental, direcionando-a para a grande e pacífica convivência do quotidiano. Em princípio, pois, o que se deve presumir é que as leis comuns são legítimos mecanismos de detalhamento concreto da vontade organizadora geral da Constituição 26.

É sempre de ter em conta que o legislador ordinário desfruta de poder discricionário para disciplinar os procedimentos judiciais, os quais, portanto, podem ser regulados pelo modo que julgue "mais oportuno", desde que se mantenha nos limites impostos pelos princípios do processo constitucionalmente garantido 27, que se confundem com "direitos invioláveis do homem" 28.

Insubordinar-se, portanto, contra a lei ordinária equivale a atentar contra a própria ordem que a Constituição soberanamente idealizou e impôs tanto aos cidadãos como aos órgãos encarregados do exercício dos poderes estatais.

Juízes e tribunais, desse modo, não estão autorizados a desprezar os procedimentos comuns definidos pelas leis do processo, para, em nome de princípios genéricos da Constituição, proceder de maneira livre e autoritária, sujeitando os litigantes a ritos, obrigações, deveres e sujeições contrários aos ditames das leis processuais e materiais vigentes.

As regras e princípios constitucionais desfrutam de supremacia dentro de todo o ordenamento jurídico e, por isso, devem ser levados em conta sempre que se houver de interpretar e aplicar as leis processuais. Mas a operação exegética e prática haverá de respeitar a existência da vontade normativa infraconstitucional legítima.

Uma lei ordinária somente pode ter sua autoridade negada quando totalmente incompatível com a Constituição 29. Quando o juiz apenas imagina que o procedimento poderia ser melhor organizado se se observassem outros critérios de atuação, isto não o autoriza a agir como um normatizador primário, para suprimir a obra do legislador e fazer operar ex novo sua própria e pessoal normatização. Pouco importa que esteja motivado pelo desejo de melhor cumprir os princípios constitucionais.

A segurança jurídica resta sempre banida da convivência civilizada quando a norma de decisão é construída de surpresa, após já ocorrido o fato sobre o que se intenta fazê-la incidir. Sem segurança não há Estado de Direito, e muito menos Estado Democrático de Direito 30.

Use o juiz as técnicas de hermenêutica a seu alcance para aprimorar a interpretação e aplicação das leis processuais, mas não as ignore, nem substitua a vontade do legislador pela própria.

Notas do autor:

18 NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e policentrismo: horizontes para a democratização processual civil. Tese de Doutoramento. PUC-MG, Belo Horizonte, 2008, p. 106.
19 TROCKER, Nicolò. Op. cit., p. 407.
20 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, p. 124-125. Trocker, também, ressalta a necessidade de invocar o critério da "razoabilidade" para avaliar o tempo aceitável de duração de um processo, pois o princípio da celeridade tem de respeitar a exigência de não comprometer a "eficiência processual" (Op. cit., p. 407). O processo é justo não apenas por célere, mas por observar uma adequada atuação de todas as condições que na ótica das garantias fundamentais se exigem para configuração do modelo ou tipo de processo preconizado pela Constituição (COMOGLIO, Luigi Paolo. Etica e tecnica del "giusto processo", p. 60).
21 PRUTTING, Hanns. Nuevas tendencias en el Proceso Civil alemán. Gênesis - Revista de Direito Processual Civil, n. 41, p. 202, jan./jun. 2007. A Constituição italiana chegou também a ser emendada para declarar a garantia do "processo justo", com explicitação do direito ao "prazo razoável" para obtenção da resposta jurisdicional (art. 111, reformado em 1999).
22 Diante da crise vivida pela Justiça italiana, que não é diferente da brasileira, procedeu-se a uma ampla reforma do seu Código de Processo Civil. Todavia, embora o direito processual peninsular desfrute do mais elevado conceito nos meios científicos, Giuseppe Tarzia destacou o foco da crise judiciária fora das normas procedimentais: "Os problemas mais graves da Justiça Civil, pelo menos na Itália, dizem respeito, de outra parte, não à estrutura, mas à duração do processo, dizem respeito aos tempos de espera, aos 'tempos mortos', muito mais que aos tempos de desenvolvimento efetivo do juízo. A sua solução depende, portanto, em grande parte, da organização das estruturas judiciárias e não das normas do Código de Processo Civil. A aceleração da Justiça não poderá, portanto, ser assegurada somente com a nova lei ou com a revisão de todo o processo civil italiano, que está atualmente em estudo" (O novo processo civil de cognição na Itália. Ajuris, vol. 65, p. 89). A constatação dessa dura realidade, aliás, não é nova. Já há muito tempo Alcalá-Zamora chamava a atenção dos estudiosos do processo civil para o gravíssimo problema das chamadas "etapas mortas" da marcha procedimental em juízo, como a grande causa da procrastinação da prestação jurisdicional.
23 "Siamo lieti che una onerevole retorica abbia dato vigore e vigenza positiva alla espressione 'giusto processo', e siamo certi che ne potranno sortire benefici influssi si sul piano esegetico-ricostruttivo attraverso il convinto lavorio della dottrina, sia sul piano dell'esperienza pratica per giudice di pace e tribunali e corti, sia soprattutto attraverso la spinta degli avvocati, che una volta muniti dello strumento testuale non mancheranno - ed è bene che non manchino - di stimolare i giudici e portarli ad intendere il processo non come una successione di udienze, dilatabile come um elastico, nelle quali talvolta qualcosa si fa e talvolta non, ma come un affare da sbligare e un risultado da raggiungere in tempi utili." (LA CHINA, Sergio. Rivista di Diritto Processuale, anno LX, seconda serie, n. 4, p. 1125, ottobre/dicembre 2005)
24 Ao legislador constitucional "non è sembrato sufficiente garantire al singolo il fatto che avrà una tutela giurisdizionale, ma egli ha ritenuto anche di aggiungere la necessità che l'attività strumentale alla tutela si strutturi secondo cannoni fondamentali ritenuti irrenunciabili" (BOVE, Mauro. Art. 111 Cost. e "giusto processo civile". Rivista di Diritto Processuale, v. LVII, II serie, anno 2002, p. 482).
25 Merece ser compartilhada a esperança sempre renovada de Carlos Roberto Siqueira Castro "de que a aplicação crescente da garantia do devido processo legal e dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, no âmbito das relações tanto públicas quanto privadas, possa ser cada vez mais um manancial inesgotável de energia constitucional de que tanto precisamos para ascender a um patamar de proteção dos direitos fundamentais compatível com as conquistas do humanismo solidarista e cristão neste início do século XXI" (O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 421-422).
26 Adverte Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, com propriedade, "que normalmente o conflito entre os direitos fundamentais da efetividade e da segurança está resolvido previamente pelo texto legislativo [lei ordinária material ou processual], presumivelmente em consonância com o sistema constitucional em que se insere" (Op. cit., p. 24).
27 BOVE, Mauro. Lineamenti di diritto processuale civile, p. 42.
28 COMOGLIO, Luigi Paolo. Op. cit., p. 54 e 26.
29 "O desrespeito ao texto só será possível se sua aplicação conduzir a uma flagrante injustiça ou em vista de conflito com outro direito fundamental, que mereça ser potencializado em função das características especiais do caso concreto" (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Op. cit., loc. cit.). Advirta-se, todavia, de que a injustiça da aplicação da lei ordinária, invocada pelo autor, não é a injustiça subjetivamente avaliada apenas por padrões éticos. É aquela apurada objetivamente em face dos direitos fundamentais consagrados na ótica de Constituição.
30 Alerta Carlos Alberto Alvaro de Oliveira para o cuidado com que o juiz tem de usar os poderes de aplicar princípios constitucionais em prejuízo de textos legais existentes, mesmo através de processos hermenêuticos: "Na aplicação dos direitos fundamentais, apenas em espécies excepcionais poderá o juiz, com o auxílio de regras de hermenêutica, a exemplo da proporcionalidade, da razoabilidade e da igualdade, criar norma que destoe flagrantemente do texto legal. Mesmo assim, algumas precauções devem ser tomadas, sob pena de ser violado o direito fundamental à segurança, cuja essência é a previsibilidade" (Op. cit., loc. cit.).

*Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 25 - Jul/Ago de 2008 e reproduzido no CD Magister 27 – Jun/Jul de 2009, de onde foi extraído.

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