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21 agosto 2009

O IMORAL NAS INDENIZAÇÕES POR DANO MORAL* - Parte 2-Final


J. J. Calmon de Passos
Advogado e Consultor Jurídico em Salvador (BA); Coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS); Professor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (Aposentado).

Há danos, contudo, que não afetam nosso patrimônio nem nosso corpo. Eles representam perda naquela dimensão do existir especificamente humano, todo ele constituído do sentido e da significação que emprestamos ao nosso agir, algo que se situa não nas coisas nem na materialidade de nosso corpo, porém na dimensão de nossa subjetividade.

Por falta de um nome adequado, ou pela inconveniência de denominá-los por exclusão, denominamo-los de danos morais, ao invés de simplesmente serem considerados como danos não-materiais. Porque insuscetíveis de avaliação e dada a necessidade de também serem materializados, devem ser estimados em termos monetários. Outras reparações possíveis para eles foram descartadas, por incompatíveis com uma civilização em que tudo se fez mercadoria, deve ter um preço e submete-se às leis do mercado. Essa particularidade torna bem complexa a técnica do seu ressarcimento ou, com mais acerto, bem mais arbitrária e aleatória. Ainda mais entremeado de dificuldades é o problema do ressarcimento dos danos que afetam a nossa personalidade, os que provocam mudança no modo como nos víamos ou como éramos vistos (avaliados) pelos outros.

Em que pesem essas peculiaridades, tenho para mim que se deve afirmar como necessário, para serem atendidos, uns e outros, os critérios fundamentadores da liquidação dos danos materiais - devem ser precisamente provados, repelindo-se, tanto como critério para certificação de sua existência quanto para sua estimativa, o juízo de valor que a vítima faz de si mesma, cingindo-nos rigorosamente a padrões socialmente institucionalizados, o que assegura o mínimo de objetividade exigido de toda e qualquer aplicação do direito ao caso concreto.

11. Há mais uma observação que gostaria de fazer. Todo e qualquer dano insere em nosso existir um incômodo, algo que se soma à perda sofrida. Os contratempos derivados do conserto do carro objeto de colisão, por exemplo, mesmo que sejam pagas as despesas com a utilização de outro veículo, nosso quotidiano foi perturbado e algum desconforto ocorreu que jamais teria ocorrido não fosse aquele ato causador do dano. O sofrimento e o risco inerentes à cirurgia e ao tratamento a que tivemos de nos submeter, etc. Assim sendo, é da própria essência do dano esse acréscimo de desconforto e quebra de normalidade em nossa vida.

Será este o dano moral indenizável? Se a resposta for positiva, o correto seria acrescermos ao gênero perdas e danos, além dos danos emergentes e dos lucros cessantes, essa nova espécie, representada pelo incômodo ou dor que todo dano determina. Seriam eles não danos morais, mas sim um consectário inerente a todo dano material, devendo ser estimados em função desses mesmos danos materiais.

Se não é disso que cuidamos, o que será o dano moral puro, ou seja, possível de existir inexistindo danos materiais ou que nenhuma relação mantém com os mesmos? Só nos resta afirmar que nos situamos, aqui, no espaço do que se qualifica como valor, algo especificamente humano e insuscetível de objetivação, salvo se considerado em sua legitimação intersubjetiva. Sem esse consectário, torna-se aleatório, anárquico, inapreensível e inobjetivável. Não são os meus valores os tuteláveis juridicamente, mas sim os socialmente institucionalizados, porque é da essência mesma do direito seu caráter de regulação social da vida humana.

12. Essa minha percepção sempre me levou a não compreender o que seja a famosa reparação pela dor experimentada por alguém, associada ao ato do sujeito a quem se atribui tê-la provocado e que, não fora isso, jamais teria sido experimentada. Nada mais suscetível de subjetivizar-se que a dor, nem nada mais fácil de ser objeto de mistificação. Assim como já existiram carpideiras que choravam a dor dos que eram incapazes de chorá-la, porque não a experimentavam, também nos tornamos extremamente hábeis em nos fazermos carpideiras de nós mesmos, chorando, para o espetáculo diante dos outros, a dor que, em verdade, não experimentamos.

A possibilidade, inclusive, de retirarmos proveitos financeiros dessa nossa dor oculta, fez-nos atores excepcionais e meliantes extremamente hábeis, quer como vítimas, quer como advogados ou magistrados. Para se ressarcir esses danos, deveríamos ter ao menos a decência ou a cautela de exigir a prova da efetiva dor do beneficiário, desocultando-a. Hipocritamente descartamos essa exigência, precisamente porque, quando real a dor, repugna ao que sofre pelo que é insubstituível substituí-lo pelo encorpamento de sua conta bancária. Daí termos também, na nossa sociedade cínica, construído uma nova forma de responsabilidade objetiva - a responsabilidade por danos morais à base de standards de moralidade abstrata, já que a moralidade concreta já nem consegue se fazer ouvir, de tão debilitada que está. O anonimato do culpado ou seu rosto coletivo e a adesão à sociedade do risco desvinculou o problema moral da culpa por danos morais, desnaturando-a. A par disso, ou como consectário disso, o anonimato da moral, por força de suas muitas e mudáveis faces, porquanto se tornou caleidoscópica, levou à responsabilidade por danos morais sem se indagar concretamente sobre o problema moral no caso concreto.

Se o filho é vitimado, o pai é premiado com uma indenização, sem se cogitar das verdadeiras relações afetivas que existiam entre este reprodutor, chamado de pai, e o fruto de sua ejaculação. Antes, quanto menos dor realmente ele experimenta, tanto maior é sua dor oculta para fins de indenização. Não se indaga se aquele que se enche de furor ético porque teve recusado um cheque de sua emissão teve, por força disso, forte abalo emocional, ou é simplesmente um navegador esperto no mar de permissividades e tolerância que apelidamos de ousadia empreendedora.

Quando a moralidade é posta debaixo do tapete, esse lixo pode ser trazido para fora no momento em que bem nos convier. E justamente porque a moralidade se fez algo descartável e de menor importância no mundo de hoje, em que o relativismo, o pluralismo, o cinismo, o ceticismo, a permissividade e o imediatismo têm papel decisivo, o ressarcimento por danos morais teria que também se objetivar para justificar-se numa sociedade tão eticamente frágil e indiferente. O ético deixa de ser algo intersubjetivamente estruturado e institucionalizado, descaracterizando-se como reparação de natureza moral para se traduzir em ressarcimento material, vale dizer, o dano moral é significativo não para reparar a ofensa à honra e a outros valores éticos, mas sim para acrescer alguns trocados ao patrimônio do felizardo que foi moralmente (?) enxovalhado.

13. Precisamos refletir seriamente sobre que relação traduzível em dinheiro há entre a ofensa à honra e as pessoas do ofensor e do ofendido. A honra, no mundo capitalista, também tem um valor de mercado. Se não vale a lei da oferta e da procura, vale a lei do desencoraja e enriquece. O ofendido precisa lucrar com a ofensa e o ofensor estimar que o preço pago convida-o a sair do mercado, porque não compensador o negócio. Não me parece justo, entretanto, que o ganho do ofendido seja tão estimulante que ele se sinta tentado a explorar esse rendoso negócio. Sem esquecer o sócio de ambos os contendores, o advogado, sempre beneficiado com uma parcela não muito desprezível do resultado obtido, resultado esse impossível de ser alcançado sem que entre na cena um terceiro personagem também suspeito - o magistrado.

Nosso medo é que talvez tenhamos, dentro em breve, empresas especializadas no treinamento de pessoas para habilitá-las a criar situações que levem alguém a ofendê-lo moralmente. Sem esquecer que a transmudação do dano moral em dinheiro nem pede mais a repercussão social da ofensa. O que se tem que avaliar é a dimensão "subjetiva" da dor, tanto maior quanto menor o senso moral do ofendido, o que lhe dá desenvoltura para traduzir em cifras o tamanho da ofensa experimentada.

Mas há também alguma esperança. Nosso tempo, tão rico em avanços tecnológicos e fantásticas descobertas no campo da biologia, já se anunciando que poderemos fabricar, no futuro, homens dos tipos que forem socialmente necessários, certamente terá também, dentro em breve, condições de fabricar artefatos eletrônicos capazes de, mediante uma simples inserção de um cartão magnético específico no aparto, registrar quanto nos é devido pela ofensa moral de que fomos vítimas, caso registrável no programa elaborado com esse objetivo. Com simplicidade e presteza, inclusive aliviando a tremenda sobrecarga de trabalho do Poder Judiciário e as diabólicas tentações que acometem advogados, vítimas e julgadores, resolveremos tudo com presteza, objetividade, eliminando o risco de sermos achacados pelos excessivamente ambiciosos que postulam e dos excessivamente magnânimos que concedem.

14. Gostaria de encerrar este meu trabalho referindo-me a quatro casos concretos nos quais tive participação como parecerista. São paradigmáticos sob dois pontos de vista - ocorreram sem que nenhuma punição houvesse para advogados, magistrados e vítimas em face de seu escancarado, imoral e criminoso comportamento e nada têm de excepcional no quotidiano na vida forense.

(a) O primeiro deles envolve um magistrado integrante de um dos nossos tribunais superiores, que acionou um grande banco de nosso país pleiteando R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) a título de danos morais, com base nos seguintes acontecimentos. Fora, durante alguns anos, correntista desse banco, tendo deixado de movimentar essa conta por cerca de dez anos. Ocorre que alguém, jamais identificado, apoderou-se de um talonário referente a essa velha conta-corrente e que não se explicou porque, sendo inútil, foi conservado por tão longo tempo e guardado com tanto descuido, a ponto de ter sido furtado sem que do furto se desse conta o magistrado. Esse ladrão incógnito, de posse do talonário, preencheu alguns cheques de pequeno valor, firmando-os grosseiramente com o nome do correntista negligente. O banco devolveu-os todos por impossibilidade de resgatá-los, visto como inexistiam fundos para honrá-los. Obediente às normas do Banco Central, comunicou-lhe a ocorrência. O correntista descuidado, desejando obter um cheque especial de outro banco, foi informado de que era impossível consegui-lo, por ter seu nome incluído na lista elaborada pelo BACEN. Pois bem, sem ter postulado do banco de que foi correntista qualquer providência saneadora do episódio, inclusive jamais tendo avisado ao banco de que seu talonário fora furtado, acionou-o postulando a respeitável quantia já indicada para ter sua dor oculta amenizada. Entre os fundamentos do pedido constavam as alegações de que o banco não lhe informara sobre o furto do talonário (!) e foi descortês deixando de entrar em contato com ele antes de recusar o pagamento dos cheques. O julgador reduziu a indenização para R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais) tendo julgado antecipadamente a lide.

(b) O segundo caso não é menos representativo. Uma microempresa da área de metalurgia comprou, em mãos de uma multinacional do ramo de alumínio, alguns tubos desse material e de determinada especificação pelo valor de R$ 2.600,00. Ingressou em juízo, depois de ter requerido e obtido uma antecipação de prova pericial realizada sem citação da requerida, com uma ação principal pleiteando danos morais no valor de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), porque com os tubos, à semelhança do que ocorreu com o milagre dos peixes e dos pães, iria fabricar milhares e milhares de aros para rodas de bicicleta e dada a imprestabilidade do material vendido (apurada na tal perícia inaudita altera pars) teve que desfazer vários contratos e ficou desacreditado na praça, sendo obrigado a vender suas quotas na sociedade. Curioso nessa artimanha primária é que o moralmente vitimado alienou suas quotas, estimadas em R$ 2.000,00 (dois mil reais), e no negócio jurídico de cessão de quotas se estabeleceu que a indenização que viesse a obter a pessoa jurídica, autora da demanda, reverteria em favor dele, pobre vítima de toda essa conspiração do capital internacional sem entranhas. Para não ser prolixo, esclarecerei que a ação foi julgada procedente e com julgamento antecipado, visto que teve o juiz como desnecessária a produção de provas em audiência. Nem se impressionou muito como um modesto investimento de dois mil e poucos reais pode ocasionar tanta repercussão a ponto de proporcionar à feliz vítima um lucro de mais de cem mil por cento. Por isso foi que Pero Vaz de Caminha disse ao rei D. Manuel: "aqui, em se plantando, tudo dá", e como dá...

(c) Terceiro caso é o de uma senhorita já balzaquiana há anos que, na casa de sua sogra e no quintal dessa casa, foi atingida por um brinquedo conhecido como fadinha bailarina. Rodopiando e rodopiando, manipulado por uma criança que ficou anônima no feito, o brinquedo atingiu o olho da vítima, que, por sinal, já se submetia a tratamento oftalmológico há algum tempo. Pois bem, em virtude desse episódio doméstico, uma fábrica de brinquedos que tem, sem exclusividade, autorização para importar o artefato, de origem chinesa, foi acionada para pagar modestos cruzeiros de danos materiais e a polpuda quantia de R$ 500.000,00 como danos morais. O curioso dessa tramóia é que a vítima, caso tivesse reclamado lucros cessantes, por ter ficado (e não ficou) totalmente incapacitada para trabalhar o resto de sua provável vida, não obteria nem a metade do reclamado a título de danos morais.

(d) Para encerrar o relato, um caso mais requintado. Advogados, juízes e desembargadores se sensibilizaram com a seguinte situação. O advogado, bem acompanhado por sequazes hábeis, mandava uma pessoa humilde (no caso uma empregada de uma loja de departamentos) abrir uma conta no banco. Recebido o talonário, eram emitidos alguns cheques com fundos. Depois disso, um dos integrantes do grupo progressista imitava a assinatura do correntista e emitia cheque que sabia não ter fundos para ser honrado, em favor de um outro grupo da quadrilha. O banco, certamente, recusava o pagamento. O beneficiário do cheque, membro da quadrilha, dava conhecimento do fato à polícia e pedia que fosse processado o emitente do cheque como estelionatário. Feita a perícia, concluía-se que a assinatura não era do correntista. Nesse passo, a vítima constituía procurador um dos advogados da quadrilha que acionava o banco por danos morais. No caso em que funcionei, a empregada de salário mínimo que, inclusive, foi de logo transferida para outra cidade onde passou a trabalhar, exigia indenização de R$ 1.000.000,00, a serem recebidos por seu procurador cujo mandato lhe dava poderes plenos ou pleníssimos. Essa tramóia só mereceu corrigenda no STJ, mas sem que se tenha ouvido falar de punição para quem quer que seja.

O elenco poderia ser bastante enriquecido. Acho que as preciosidades narradas são suficientes para exigir de nós alguma reflexão. Ainda quando não seja de estranhar que no momento em que os ganhos tecnológicos e os ganhos financeiros se fazem mais valiosos que a vida humana não é absolutamente de estranhar que o despudor se tenha tornado a expressão mais forte de nossa ética, também uma mercadoria destinada a proporcionar ganhos tecnológicos (teóricos) e lucros (as demandas em que os mais hábeis saberão, certamente, retirar o maior proveito mesmo que seja da menor ofensa). Desculpe, aliás, pela impropriedade do termo, não se cuida de ofensa, mas de dano moral.

15. A circunstância dessa inviabilidade de determinação objetiva, material, do prejuízo experimentado pela vítima, não circunstancial, mas essencial, é que qualifica impropriamente o dano como moral, a meu ver com o grave prejuízo de correlacionar com a moral o que com ela nada tem a ver. Para obviar os inconvenientes que disso resultam, em termos de imprecisão jurídica e arbítrio judicial, temos que dessubjetivizar esses danos, construindo referenciais de natureza social como parâmetros para sua definição e estimativa. Se pretendermos sair desses limites, estaremos introduzindo no jurídico o que no jurídico é inaceitável - a tutela do subjetivo não socialmente institucionalizado, a par do arbítrio aleatoriamente controlável do decisor. Sem esquecer a agravante de que na sociedade atual, laica, pluralista, hedonista e em que a "fulguração" dos acontecimentos não deixa rastros duradouros, tal como acontece com as estrelas cadentes, a moral tornou-se algo extremamente relativo, esgarçado e sem profundidade.

Destarte, pensar a responsabilidade civil e o ressarcimento dos danos morais não escapa dessa exigência, sendo mera falácia pretender-se argumentar em termos de valores absolutos, eternos, supra-históricos e universais. Assim como os danos materiais têm que ser cumpridamente provados, os danos morais, essa misteriosa "dor" que se oculta no íntimo das pessoas, deve vir à luz com um mínimo de força de convencimento.

* Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 26 - Set/Out de 2008 e reproduzido no CD Magister 27 – Jun/Jul de 2009, de onde foi extraído.

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