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20 agosto 2009

O IMORAL NAS INDENIZAÇÕES POR DANO MORAL* - Parte 1


J. J. Calmon de Passos
Advogado e Consultor Jurídico em Salvador (BA); Coordenador da Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS); Professor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (Aposentado).

1. Quando refletimos sobre o que constitui o essencial da condição humana, duas coisas de logo ressaltam - liberdade e responsabilidade. Isso já foi intuído desde milhares de anos atrás e está representado, simbolicamente, no documento mais representativo do mito fundamentador da civilização ocidental - a Bíblia. No Livro do Gênesis, narra-se que Deus criou o céu e a terra e para fazê-lo disse: "Haja luz", e houve luz. E assim prosseguiu, sempre ordenando. Ordenou às águas que existissem, o mesmo às estrelas e a tudo enfim. No momento final da criação, entretanto, ele não disse "Haja o homem", colocando-o sob o inelutável de sua vontade. Agiu diferente. Disse: "Façamos o homem", e nesse façamos inseriu, no que era também criatura, um atributo negado a todas as outras já existentes - o poder de opção.

Tudo quanto existente até aquele momento era apenas criatura, a partir dele, entretanto, surgia um ser distinto, ao mesmo tempo criatura e criador, porque compelida a tomar decisões e capaz de acrescentar ao quanto já criado tudo que viesse a criar. Por isso, Deus prescreveu-lhe uma norma, um dever-ser: "Não deves comer da árvore da ciência do bem e do mal, porque se comeres dos seus frutos, morrerás ao certo". Deixou-lhe, assim, o poder da desobediência. Nesse preciso instante se pôs o dilema inafastável. Ou permanecer o homem, como todas as coisas, sob o império da necessidade e dos instintos, renunciando a sua humanidade, ou romper essa barreira e assumir todos os riscos de ser livre, tornando-se também responsável pelo seu próprio destino, submetendo-se ao imperativo da regulação social de sua conduta, obrigado a definir, individual e socialmente, o que deve e não deve ser feito.

2. Porque capaz de opção, o homem fez-se responsável. Tendo condições de fazer acontecer o que sem seu agir jamais teria acontecido, tornou-se obrigado a responder pelas conseqüências de seus atos. O relato bíblico consigna também esse primeiro momento. No episódio de Abel e Caim, está o começo da história de nossa responsabilidade. Abel, que sem dúvida morreria um dia, morreu, contudo, por ato de vontade de Caim. Por isso Deus o interpelou perguntando-lhe sobre seu irmão. E pouco lhe valeu ter respondido: "Serei eu acaso guardião de meu irmão?". Foi amaldiçoado, por haver matado o que ainda não tinha chegado à hora de seu perecimento, segundo o imperativo das leis que obrigam inelutavelmente tudo quanto existe.

O homem revelou-se não só apto para criar, como para destruir. Tornou-se capaz de ser homicida, genocida, ecocida e até mesmo suicida. Conseqüentemente, pode ser interpelado: "Que fizeste a mim?", "Que fizeste ao teu irmão?". E nossa responsabilidade se instituiu em face do outro e na medida em que podemos ser interpelados pelo outro a respeito dos danos que lhe causamos, a ele ou às coisas que lhe pertencem. Impossível cogitar-se de responsabilidade sem a culpa e sem o dano.

Portanto ela é impensável dissociada de um protagonista identificável, com um rosto, um nome e uma atividade, não o homem enquanto vocábulo, conceito, espécie, grupo ou coletividade, mas sim como alguém que pode ser interpelado: "O que fizeste a teu irmão?". Quando não sabemos a quem culpar, simplesmente suportamos o mal, por não podermos identificar quem o nos causou ou, irracionalmente, praguejamos ou destruímos pessoas e coisas, acometidos de fúria, sejam elas culpadas ou não.

3. Pensar nesses termos a responsabilidade também exige de nós refletirmos sobre o que é, afinal, isso que chamamos de liberdade, de capacidade, diria mesmo, necessidade de opção de que não nos podemos libertar. A mim, sempre pareceu que ser livre é muito menos sermos capazes de fazer o que nos aprouver, pois temos perfeita consciência dos muitos obstáculos que limitam o nosso querer, e muito mais não sabermos o que devemos fazer e, no entanto, estarmos compelidos a decidir para viver. Por isso mesmo, a liberdade já foi qualificada de "maldição". Ela não nos fez poderosos, mas sim temerosos. Sabemos que há um futuro, mas ignoramos o que ele será. Por força disso, experimentamos medo e ansiedade e nos embriagamos cultivando o mito da salvação ou nos deixando afogar no fugidio instante de nosso presente, porque, em verdade, se é significativo o nosso poder de agir, é bem precário o nosso poder de previsão. O amanhã é sempre uma porta aberta para o imprevisível. Cada decisão humana aponta para o inesperado e para o incontrolável, pelo que lutamos por tornar o futuro sempre cada vez mais controlável e previsível. Para minimizar o medo que essa perpétua interrogação gera em nosso espírito, o homem busca soluções em termos de fé, de ciência e de técnica.

4. Quando, entretanto, aprofundamos a reflexão sobre nossa culpa, paradoxalmente concluímos que não somos rigorosamente responsáveis por nada. A sociedade nos faz e nos molda predominantemente. Há uma pré-compreensão que condiciona nossa abordagem dos fatos e dos acontecimentos. Sabemos sobre as coisas já pré-informados por um saber que nos foi inculcado. A par disso, nosso agir se dá num tecido de instituições que nos precederam e que não podemos, nem individual nem coletivamente, modificar em curto prazo. Somos, outrossim, condicionados por um código genético que nos impele em direções das quais, comumente, nem mesmo temos consciência. Daí a expressividade dos versos de Adélia Prado: "visto do alto da janela, nenhum homem tem culpa de nada".

Sempre que aprofundamos nossa análise, abrandamos nosso julgamento. E se fôssemos rigorosamente justos, chegaríamos à conclusão de que ninguém é culpado sozinho por nada do que faça, por mais livre que aparente ser. Para cada falta nossa, convergiram muitas causas não percebidas, um sem número de fatores e variáveis, pelo que, em última análise, toda culpa é sempre coletiva. Muitos se ocultam sob a capa do único que é escolhido para ser responsabilizado, deixando na sombra a culpa de todos. A necessidade de conviver sobrevivendo, entretanto, obriga-nos a responsabilizar o homem, e esta determinação individual da responsabilidade sempre se fez necessária.

Assim foi e é porque, simplificando, dizemos que ao homem é sempre possível dizer não em qualquer situação concreta de seu existir. Nem podemos fugir desse dilema, por mais questionável que seja a sua justiça. Se não personalizarmos a culpa, impossível cogitar de responsabilidade e reparação de danos. Tudo que acontece sem a participação do homem ou sem que seja possível identificar seu causador é inapto para gerar responsabilidade.

5. Por que tudo isso, tão evidente, problematizou-se em nosso tempo e deixou de responder às necessidades da convivência humana? Por que passamos a falar de responsabilidade objetiva, tornando-se muitas vezes irrelevante o problema da culpa? Por que se diz que o foco do interesse deslocou-se da culpa para o dano? Por que se afirma que a ilicitude do ato é descartável para determinação da responsabilidade? Em resumo - por que se excluiu da cena o mais importante dos protagonistas, o homem enquanto ser livre e responsável? Ou dizendo melhor: por que o homem, enquanto ser inédito e irrepetível, pessoa humana, como o qualificamos, deixou de ser preservado, buscando-se apenas fixar um preço para sua mutilação ou destruição?

Para tentar responder a essas perguntas, precisamos lembrar-nos de que nada acontece aos homens, em termos coletivos, como fruto do acaso ou de alguma necessidade que nos compele a percorrer predeterminados caminhos.

Recuso adesão aos que afirmam sermos livres, ou aparentemente livres, em termos individuais, porém socialmente tão determinados quanto todos os seres existentes. Se a sociedade nos molda, e o faz poderosamente, não podemos esquecer que somos nós que fazemos a sociedade que nos faz. É o agir individual, tornado hábito, que, socializando-se, molda as instituições da estrutura social. Sendo assim, as mudanças que se derem na origem do processo geram, necessariamente, transformações ao seu término, pelo que a sociedade de amanhã pode ser diferente da de hoje, como a de hoje é diferente da de ontem. Necessário, conseqüentemente, refletirmos sobre o que adquiriu força suficiente para determinar as mudanças que ocorreram e moldaram a sociedade de nossos dias, a qual, por sua vez, igualmente nos conforma.

6. A modernidade assentou em três pilares - o do Estado, o do mercado e o da comunidade. A par disso, deu visibilidade à dialética da convivência humana que se processa pela interação entre regulação e emancipação. Traduziu-se, em termos ideológicos, pela trilogia da Revolução Francesa - liberdade, igualdade e fraternidade; o Estado no papel de fiador da liberdade; o mercado como propiciador da igualdade; a fraternidade seria mera conseqüência da realização de ambas. A lógica intrínseca do capitalismo e o fato de haver-se confundido o desenvolvimento da racionalidade econômica com o da racionalidade tecno-científica importou, entretanto, num déficit de fraternidade e de solidariedade.

Todas as tentativas de se compatibilizar a liberdade com a igualdade resultaram frustrantes ou insuficientes para colocar a fraternidade em condições de efetivar-se. Nem o logrou o Estado como, por igual, o mercado, inexistindo, mesmo em médio prazo, no contexto da filosofia capitalista, perspectiva de que isso se faça possível. Essa realidade foi precisamente o que levou à teorização da responsabilidade objetiva que, antes de ser um avanço teórico, é uma conseqüência inelutável dos pressupostos de natureza sócio-político-econômica que a determinaram. Ao falarmos em responsabilidade sem culpa, usamos, na verdade, de um eufemismo encobridor de algo que ideologicamente precisa ser dissimulado. O puro fato da natureza, quando nos causa dano, se situa no âmbito do infortúnio, da fatalidade, da impotência humana diante de tudo quanto ainda não é capaz de controlar.

Em verdade, todas as hipóteses de responsabilidade sem culpa são ocorrências em que o causador do dano e responsável por ele ou se tornou anônimo, dada a intensa mecanização e massificação da vida moderna, ou de tal modo está distanciado da vítima que seria uma injustificável exigência atribuir ao lesado o dever de identificá-lo. Sem esquecer que, em seu núcleo, a teoria do risco, a mais objetiva das teorias objetivas, apenas atende ao fato de haver-se tornado, em si mesmo, perigoso, em nossos dias, viver e conviver. E se todos somos coletivamente culpados pela adesão emprestada a esse estilo de vida, que legitimamos com o nome de progresso, tornamo-nos todos, também, coletivamente responsáveis.

Os proveitos e vantagens do mundo tecnológico são postos num dos pratos da balança. No outro, a necessidade de o vitimado em benefício de todos poder responsabilizar alguém, em que pese o coletivo da culpa. O desafio é como equilibrá-los. Nessas circunstâncias, fala-se em responsabilidade objetiva e elabora-se a teoria do risco, dando-se ênfase à mera relação de causalidade, abstraindo-se, inclusive, tanto da ilicitude do ato quanto da existência de culpa.

7. Sobre esse estado de coisas Niklas Luhmann e Raffaele de Giorgi, em trabalho intitulado de L'analisi e lo studio del rischio nelle società complesse, afirmam poder este tema "ser objeto de pesquisa sociológica e de pesquisa orientada para uma teoria da sociedade", tal sua relevância. Lembram caber às ciências sociais a tarefa de fornecer análises que tornem possível uma compreensão das condições de vida da sociedade contemporânea. O horizonte de percepção desta sociedade, esclarecem, é caracterizado por uma crescente possibilidade de decisão.

E se entendermos perigo como a probabilidade de um evento futuro danoso, resultante do que pode ser imputado a algo externo, colocado fora do poder de opção do agente, será possível falar-se de risco quando um dano, qualquer que seja, for passível de ser entendido como conseqüência de uma decisão, seja ela imputável ao agente ou atribuível a um outro que não ele.

Nesses termos, a sociedade contemporânea caracteriza-se pela diminuição do perigo e incremento do risco. A ciência, a tecnologia, a economia de nossos dias contribuíram para a redução do perigo. A previsibilidade e o controle que a tecnologia já permite no tocante aos acontecimentos externos autorizam esta conclusão: o que é danoso por determinação externa se tornou altamente previsível e controlável, graças aos avanços da ciência.

Contudo, na medida em que se tornam evidentes e mais numerosas as possibilidades de decisão em relação a comportamentos, ou na medida em que podem se tornar visíveis as possibilidades das quais depende a ocorrência de danos futuros efetivos, impõe-se a tematização dos riscos. O horizonte do futuro se retrai, a sua prospectiva se desloca do âmbito do perigo para o âmbito do risco. Os riscos, agora, estão estreitamente relacionados ao desenvolvimento da própria sociedade, ao desenvolvimento da ciência, da tecnologia, da medicina, da política e em geral às transformações da estrutura nas quais se torna possível a comunicação social. Em suma, concluem, o risco se fez integrante do próprio modo de ser da sociedade contemporânea.

8. A par desse fenômeno da incorporação do risco à dinâmica da sociedade de nossos dias, fala-se também, hoje, com total procedência, em sociedade de massa, produção de massa, consumo de massa, comunicação de massa, contrato de massa, evidenciando-se o que já não pode mais ser ignorado por ninguém - um nível de interdependência entre os homens como jamais existiu antes, a par da capacidade das organizações privadas de atingirem, com impositividade bem próxima da que é específica dos organismos estatais, um universo ponderável de sujeitos impotentes para lhes oferecer resistência eficaz.

No campo delimitado por essas duas coordenadas - o incremento do risco e o crescente esgarçamento e anonimato das relações sociais - a velha responsabilidade civil viu-se compelida a buscar outros fundamentos que não a culpa individual, deduzida de um comportamento sobre o qual teria o agente algum poder de opção, procurando, contudo, ocultar a culpa social que a substituiu. Daí porque, na atualidade, deslocou-se o ponto focal da responsabilidade, justamente em sua dimensão mais significativa, a do causador imediato do dano e de sua culpa, para o imperativo da reparação do dano que, embora experimentado individualmente, tem sua causa em algo de que, mesmo indireta e remotamente, se beneficia a própria vítima.

9. As luzes se dirigem, agora, para o que se fez centro, por sua relevância - o dano. É ele que cumpre seja reparado, independente da investigação de quem seu real causador e de sua culpabilidade, uma vez que se tornou produtora de danos a própria convivência humana na sociedade do capitalismo avançado e da revolução tecnológica. Dissociada da culpa, a responsabilidade foi vinculada ao nexo causal entre o evento e o resultado danoso, imputando-se ao agente mais facilmente identificável a responsabilidade pelo ressarcimento, ainda quando nenhum ou quase nenhum seu poder de influir sobre os acontecimentos. Responsável e vítima são apenas peças de uma engrenagem que opera segundo uma lógica impiedosa que, paradoxalmente, premia e pune tanto vitimador quanto vitimado.

Para essa realidade nova, as respostas antigas se mostraram ou iníquas ou inócuas. As conseqüências dramáticas e imobilizantes a que conduziria a persistência do antigo entendimento, segundo o qual a responsabilidade se vinculava à culpa individual, já reclamara sua ultrapassagem pela teorização da culpa presumida, avançando para a responsabilidade objetiva que se pretende seja ultrapassada pela teoria do risco, só justificável se entendida como responsabilidade coletiva, porque fruto de uma sociedade que incorporou o risco ao seu quotidiano como preço a pagar pelo que foi erigido em prioridade - o progresso tecnológico, casado à filosofia capitalista. Os danos que decorrem de atividades cuja licitude foi admitida em proveito (teoricamente) de todos, conseqüentemente em benefício da convivência social, em que pese seu componente de risco, devem ser por essa mesma sociedade suportados. Revelou-se induvidoso que se admitir a responsabilidade pelo risco, de matriz social, mantendo-se a antiga técnica de reparação às custas do patrimônio do responsável mais próximo, significaria inviabilizar-se a atividade produtiva, incapaz de arcar com o ressarcimento dos danos inerentes a essa mesma atividade, caso conservada a velha perspectiva. Para se tornar operacional a teoria do risco, sem acarretar graves disfuncionalidades, impôs-se a solução pelo seguro, que institucionaliza, em termos técnicos, um tipo de solidariedade impositiva numa sociedade de riscos. O que surgiu como um contrato entre pessoas, no qual uma delas assumia os riscos de indenizar a outra por força de algum sinistro que viesse a atingir o seu patrimônio ou a sua pessoa, tornou-se um instrumento a serviço do interesse geral, mais adequadamente definível como seguridade social ou segurança social, publicizando-se, ou socializando-se, se assim se preferir, sua configuração e sua finalidade.

10. É nesse contexto que a responsabilidade por danos morais deve também ser analisada. Para fazê-lo, impõe-se uma reflexão prévia sobre o que entendemos por dano. Tenho para mim que o elemento central do conceito é a existência de um prejuízo, da perda ou desfalque de algo que ao sujeito é passível de ser integrado, quer em termos de patrimônio, quer por inerente ao seu corpo ou a sua personalidade. Porque ocorreu o dano, deixamos de ter o que tínhamos, ou se fez impossível obter o que certamente conseguiríamos.

Os danos materiais, isto é, os que afetam econômica e financeiramente nosso patrimônio, são de fácil determinação. Constituem-nos os já bem conhecidos e badalados danos emergentes e lucros cessantes. Mesmo quando a lesão afeta o nosso corpo, sendo possível restabelecer-se o estado anterior, conceituam-se como danos materiais quanto seja necessário despender para lograr esse resultado, acrescido do que deixaremos de auferir por força da lesão.

Tudo quanto se fizer indispensável para retornar-se ao statu quo ante ou para minorar a perda sofrida, deve ser da responsabilidade do causador da lesão. Resta o problema da indenização devida quando a recuperação se torna inviável. Conseqüências materialmente avaliáveis podem resultar desse fato. A incapacidade total ou parcial da vítima para o trabalho, a fragilização de sua saúde e provável redução da expectativa de vida, etc. Tudo isso suscetível de avaliação.

* Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 26 - Set/Out de 2008 e reproduzido no CD Magister 27 – Jun/Jul de 2009, de onde foi extraído.

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