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06 agosto 2009

A LIBERDADE, A CULPA E O DIREITO

Anderson de Moraes Mendes*

Todas as vezes que se busca compreender o fenômeno social acerca das principais questões concernentes aos reflexos da ciência do Direito na construção de nossa realidade, sejam de ordem material ou meramente processual, temos a tendência natural de reportar-nos às experiências realizadas no passado remoto.

As origens da formação da estrutura estatal, em que os homens mitigam sua liberdade em prol de uma maior segurança social, orientam todo o raciocínio lógico-dedutivo, fundamentando os alicerces necessários ao entendimento das questões que ora se revelam em nossa realidade.

Podemos afirmar, categoricamente, que o homem, e somente ele, mediante seu livre-arbítrio, deliberadamente escolheu abrir mão de sua liberdade, independentemente dos motivos e circunstâncias que lhe induziram à escolha de determinado caminho a trilhar.

Por mais que haja a influência de um líder, déspota ou democrático, cabe essencialmente ao indivíduo acolher idéias e projetos defendidos por tais "autoridades", tendo inegável influência em sua órbita pessoal e, holisticamente, em todo o plano social.

Assim, podemos concluir que somos diretamente responsáveis por nossas escolhas. Tal responsabilidade estaria revestida de alguma culpa?

A culpa revela-se no instante em que, direta ou indiretamente, passamos a ser protagonistas de um novo momento espacial, em decorrência dos efeitos dos atos materializados nos diversos planos da realidade social, sejam de ordem material, moral ou espiritual.

No sentido subjetivo, a culpa é um sentimento que se apresenta à consciência quando o indivíduo avalia seus atos de forma negativa, sentindo-se responsável por falhas, erros e imperfeições. O processo pelo qual se dá essa avaliação é estudado pela Ética e pela Psicologia.

No sentido objetivo, ou intersubjetivo, a culpa é um atributo que um grupo aplica a um indivíduo, ao avaliar os seus atos, quando esses atos resultaram em prejuízo a outros ou a todos. O processo pelo qual se atribui a culpa a um indivíduo é discutido pela Ética, pela Sociologia e pelo Direito.

A Doutora Wanda Morbeck, em artigo intitulado A Culpa Criou a Patologia Humana [1], traz importante reflexão acerca da Culpa e suas origens na própria história da evolução humana e social:

"O passado inteiro da humanidade foi construído sobre a culpa. E cada geração vai passando suas doenças à nova geração. E elas vão se tornando, naturalmente, cada vez maiores. Elas se acumulam com cada geração. E cada nova geração é mais sobrecarregada que a anterior... A culpa foi uma das estratégias básicas dos clérigos para explorar as pessoas. O padre, a freira, os sacerdotes, pastores, bispos não podem existir sem a culpa. Quando você se sentir culpado, lembre-se, o clérigo está ao seu redor. Quando você se sentir culpado, lembre-se, as mãos dos clérigos, estão ao redor do seu pescoço -- elas estão batendo em você. A culpa é uma estratégia para explorar as pessoas e transformar as pessoas em escravas.".

Por revelar-se em um importante fenômeno psico-social relacionado diretamente ao indivíduo, tem reconhecidos impactos nos campos da religiosidade, bem como das ciências sociais, como a Psicologia e do próprio Direito.

Bem adverte Caio Mário da Silva Pereira:

"Filosoficamente, a abolição total do conceito de culpa vai dar num resultado anti-social e amoral, dispensando a distinção entre o lícito e o ilícito, ou desatendendo à qualificação boa ou má da conduta, uma vez que o dever de reparar tanto corre para aquele que procede na conformidade da lei quanto para aquele outro que age ao seu arrepio." [2]

No campo do Direito, passamos a concentrar nossas digressões, guiados pelo pensamento de lição de Margarida Lacombe:

"Diferentemente dos juízos de realidade, sujeitos à demonstração, os juízos de valor são controversos [...]. [...] Os valores universais como o justo e o belo, por exemplo, pela sua indeterminação, são, em geral, capazes de promover um primeiro acordo mas à medida que as questões se particularizam em função de realidades concretas, os desacordos aparecem e o esforço argumentativo torna-se maior." [3]

Assim expressa o vocabulário jurídico De Plácido e Silva o conceito de culpa:

"CULPA: Derivado do latim culpa (falta, erro cometido por inadvertência ou por imprudência), é compreendido como a falta cometida contra o dever, por ação ou omissão, procedida de ignorância ou de negligencia. Revela, pois, a violação de um dever preexistente, não praticado por má-fé ou com a intenção de causar prejuízos aos direitos ou ao patrimônio de outrem, o que seria dolo". [4]

Orlando Gomes [5] traz o conceito de culpa em direito civil como a violação de um dever jurídico por negligência, imprudência e imperícia, afirmando que ela se manifesta através da violação de um dever jurídico oriunda de contrato, ou de dever jurídico existente independentemente de qualquer vínculo obrigacional.

Divide a culpa, em razão do interesse jurídico protegido, em contratual, quando advinda de um contrato, e extracontratual ou aquiliana, quando é induzida a partir de um dever jurídico previamente estabelecido em lei. [6]
Zaffaroni também situa a culpa, no direito penal, dentro da transgressão de um dever de cuidado na busca de uma finalidade, ocasionado por negligência, imprudência ou imperícia:

"O tipo culposo não individualiza a conduta pela finalidade e sim porque na forma em que se obtém essa finalidade viola-se um dever de cuidado, ou seja, como diz a própria lei penal, a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia." [7]

Em sentido amplo, o membro-associado da Associação dos Criminalistas do Estado do Pará, especialista em Direito Penal e Processo Penal, Marcus Valério Guimarães de Souza, traça seu entendimento acerca da culpa:
"Pode-se definir a culpa, em sentido amplo, como a violação de um dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência de um fato intencional ou de omissão de diligência ou cautela, que compreende: o dolo, sendo este a violação intencional ao dever jurídico; e a culpa em sentido estrito caracterizada pela imperícia, imprudência ou negligência". [8]

A culpa, considerada como resultado de uma ação e/ou omissão do agente, desdobra-se em 03 manifestações decorrentes de suas causas/conseqüências, merecendo atenção especial da doutrina, ao precisar os conceitos e parâmetros que delineiam a negligência, imprudência ou imperícia, conforme as circunstâncias fáticas decorrentes do caso em concreto.

Por negligência, do latim negligentia, entende-se como o termo que designa falta de cuidado ou de aplicação numa determinada situação, tarefa ou ocorrência. É frequentemente utilizado como sinónimo dos termos "descuido", "incúria", "desleixo", "desmazelo" ou "preguiça". Entende-se, nesse diapasão, como sendo a inércia psíquica, a indiferença do agente que, podendo tomar as devidas cautelas exigíveis, não o faz por displicência, relaxamento ou preguiça mental. [9]

De Plácido e Silva assim expõe:

"NEGLIGENCIA - Do latim negligentia, de negligere (desprezar, desatender, não cuidar), exprime a desatenção, a falta de cuidado ou de precaução com que se executam certos atos, em virtude dos quais se manifestam resultados maus ou prejudicados, que não adviriam se mais atenciosamente ou com a devida precaução, aliás ordenada pela prudência, fossem executados. (...) evidencia-se pela falta de corrente de não se acompanhar o ato com a atenção com que deveria ser acompanhado. É a falta de diligencia necessária à execução do ato". [10]

Já a imprudência revela-se na atitude precipitada do agente, que age com afoiteza, sem cautelas, não usando de seus poderes inibidores, criação desnecessária de um perigo.

"IMPRUDÊNCIA - Derivado do latim imprudentia (falta de atenção, imprevidência, descuido) tem sua significação integrada com imprevisão. Na terminologia jurídica, possui sua acepção própria, que o distingue de outros vocábulos, compreendidos na classe das imprevisões, tal como negligencia. (...). Resulta da imprevisão do agente ou da pessoa, em relação 1as conseqüências de seu ato ou ação, quando devia ou podia prevê-las". [11]

Na lição de Fernando Capez:

"Consiste na violação da regras de condutas ensinadas pela experiência. É o atuar sem precaução, precipitado, imponderado. Há sempre um comportamento positivo. É a chamada culpa in faciendo. Uma característica fundamental da imprudência é que nela a culpa se desenvolve paralelamente à ação. Deste modo, enquanto o agente pratica a conduta comissiva, vai ocorrendo simultaneamente a imprudência." [12]

Por fim, a imperícia, exteriorizando-se na incapacidade, a falta de habilidade específica para a realização de uma atividade técnica ou científica, não levando em consideração o que o agente sabe ou deveria saber.

"A imperícia se revela pela ignorância, inexperiência ou inabilidade sobre a arte ou profissão que pratica. É uma forma culposa que gera responsabilidade civil e/ou criminal pelos danos causados." [13]

Na precisa lição, De Plácido e Silva assim expõe:

"IMPERÍCIA - Derivado do latim imperitia, de imperitus (ignorante, inábil, inexperiente), entende-se, no sentido jurídico, a falta de prática ou ausência de conhecimentos, que se mostram necessários para o exercício de uma profissão ou de uma arte qualquer. (...) Revela-se na ignorância, como na inexperiência ou inabilidade acerca de matéria, que deveria ser conhecida, para que se leve a bom termo ou se execute com eficiência o encargo ou serviço, que foi confiado a alguém". [14]

Em comum às três manifestações da culpa, negligência, imprudência e imperídica, tem-se o livre-arbítrio. Entretanto, sua liberdade de escolha enseja, necessariamente, à restrição de sua própria liberdade.
O homem, enquanto ser racional, é livre para definir seus comportamentos, fazer suas escolhas, manifestar suas atitudes. Sendo plena sua liberdade para tal, nada mais justo do que ser, em via direta, responsável pelos resultados oriundos de sua conduta.

Nas palavras do filósofo grego Epicuru [15]: "A liberdade é o maior fruto da auto-suficiência."

No instante em que o homem resolve associar-se a um determinado grupo social, passando a compôr mais um elo integrante desta teia social, abre mão de parcela de sua liberdade em prol de segurança, bem-estar e, principalmente, convívio social.

Ultrapassada esta fase primária, o homem adquire uma nova dimensão. O pensamento dirigido para a auto-sobrevivência volta-se, então, para a intersobrevivência.

"Estamos perante o ser humano enquanto ser social, que, entre diversas acepções e em sentido restrito, pode traduzir-se em "consciência comum dos elementos de um grupo ou sociedade sobre os problemas sociais, posição social do homem e governo ou regulamentação da vida social". [16]

Neste momento, transforma-se em ser social que incorpora, entre outros, o elemento político, pois não se pode falar de sociedade sem tratar de sua organização e regulamentação. Vale lembrar, aqui, o reconhecido precioso pensamento Aristotélico: "O Homem é um animal político"[17].

No exato momento em que o homem realiza este importante passo na direção da convivência em sociedade, ultrapassa a linha tênue que o separa de seu semelhante, passando a conviver em permanente interceção social. Surge uma verdadeira cariogamia social, levando à respectiva cissiparidade social, em que dois indivíduos passam a compor, abstratamente, um novo ser, mais forte, robusto e resistente às adversidades inerentes à própria evolução social.

Independentemente do que motivou o homem a posicionar-se em tal direção, nesse instante, ele carrega parcela de culpa para essa nova relação, sendo responsável pelos atos e resultados advindos de seus desdobramentos.
Como podemos perceber ao longo da própria história social, muitas dessas iniciativas geraram excelentes frutos, contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento de novas e importantes gerações. Outras, nem tanto.

Todavia, é ponderável o fato de que o Direito nasce da própria culpa, uma vez que ao tomarmos a decisão de conviver em um determinado grupo social, abrimos mão de parcela de nossa liberdade em prol desse novo momento.

A ciência do Direito, nesse diapasão, apresenta-se com uma profícua missão integradora, normatizadora e, principalmente, orientadora no desenvolvimento dessa nova manifestação social, definindo as garantias necessárias para um melhor desenvolvimento social. Mediante a atuação de seus agentes, zela pela preservação do equilíbrio social, elevando os valores da Vida e da Liberadade a patamares equânimes na cadeia valorativa individual.

Tal garantia demonstra o elevado nível de preocupação do legislador em estabelecer as devidas garantias para a construção de um ordenamento jurídico alicerçado em tais valores, buscando a devida mitigação desse conceito subjetivo de culpa, dando vida à nossa constituição normativo-social, conforme podemos constatar do texto esculpido no preâmbulo da Constituição Federal:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil." (grifo nosso)

Proporcionar uma vida com liberdade, sem culpa. Esta deve ser a meta a ser almejada por todos os membros que integram e contribuem para a formação de determinado grupo social buscando, nos postulados do Direito, os instrumentos necessários para a garantia da ordem estabelecida, da segurança jurídica e da própria pacificação social.

Afinal, com muita propriedade, a lição de Chaim Perelmam (PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica) para reflexão:

"O que parece justificar o ponto de vista positivista é que, graças à experiência e à demonstração, pode-se estabelecer a verdade de certos fatos e de certas proposições, lógica, matemáticas, enquanto os juízos de valor permanecem controvertidos, sem que seja possível encontrar um método racional que permita estabelecer um acordo a respeito deles".

1. Artigo "A culpa criou a patologia humana", disponível em http://jornaldeportalegreartigos.blogspot.com/2008/03/culpa-criou-patologia-humana.html.
2. Caio Mario da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol. III.
3. Margarida Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Uma Contribuição ao estudo do Direito.
4. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico.
5. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil.
6. GOMES, Orlando, op. cit.
7. ZAFFARI, Eugenio Raul e PIERANGELLI, José Henrique, op. cit.
8. Em http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/13569
9. Dicionário Jurídico.
10. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico.
11. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico.
12. Curso de Direito Penal Legislação Penal Especial, volume 4.
13. Dicionário Jurídico
14. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico.
15. www.mundodosfilosofos.com.br/epicurismo.htm
16. Daniel de Sousa, Introdução à Sociologia.
17. Aristóteles, Política.
BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. Política. Brasília, Editora UNB.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2000.
CAMARGO, Margarida M. Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Uma Contribuição ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2ª Edição. 2001.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal Legislação Penal Especial, volume 4.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil.19ª Edição. 2007.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III, Ed. Forense, 3ª edição, 1994.
PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 27 Edição. Editora Forense 2008.
SOUSA, Daniel de. Introdução à Sociologia. 1ª Edição. Lisboa 1977.
SOUZA, Marcus Valério Guimarães. Artigo científico consultado em http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/13569.
ZAFFARONI, Eugênio Raul e PIERANGELLI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

*Extraído do site LFG (lfg.com.br)

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