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17 agosto 2009

ABUSO DO DIREITO DE ESTAR EM JUÍZO

ABUSO DO DIREITO DE ESTAR EM JUÍZO
(Direito de Reparação Decorrente da Má-Fé Processual)



RUI STOCO
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo
Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça
Pós-graduado em Direito Processual Civil
Professor e coordenador em cursos de pós-graduação



Questão que desperta grande interesse é aquela suscitada quando determinada pessoa ajuíza uma ou mais ações judiciais buscando fazer prevalecer o que entende ser direito seu, mostrando-se, contudo, insistente e impertinente nos autos, criando incidentes, recorrendo das decisões interlocutórias através de agravo de instrumento e das decisões de mérito através de recursos ordinários e extraordinários ou especial ou, ainda, renovando causa que já havia sido julgada. Enfim, insistindo em um resultado que lhe foi negado ou no reconhecimento de um direito que foi declarado inexistente através de decisão transitada em julgado. Como também deduzindo pretensão que sabe absurda e contrária à lei; juntando documentos falsos aos autos; buscando objetivo ilegal ou criminoso ou retardando o andamento do processo.

Há precedentes em que a pessoa ingressou com inúmeras ações contra outra, sendo vencida em todas. O réu nas ações que lhe foram intentadas, saindo vencedor em todas as demandas, passou a entender que aquele que lhe moveu ações (autor) infundadas teria praticado abuso de poder ou abuso do direito de aviventar ações em juízo e, mesmo, abuso do direito de recorrer.

A questão, como se verifica, não é simples.

O tema relativo ao abuso do direito em si, sua concepção, origem, fundamentos e efeitos é tão intrincado quando instigante, mas seu estudo não se comporta nos estreitos limites da problemática que se quer abordar, pois mereceria conter-se em um compêndio de mais de mil páginas.

Mas cabe lembrar que PLANIOL[1], ao criticar o que se chamou de “abuso de direito”, verberou:

“Fala-se facilmente do uso abusivo de um direito, como se esta expressão tivesse um sentido claro e preciso. Mas é necessário não nos iludirmos: o direito cessa onde começa o abuso, e não pode haver uso abusivo de um direito qualquer, porque um mesmo ato não pode ser, a um só tempo, conforme e contrário ao direito”.

Buscou PLANIOL mostrar que a doutrina do abuso do direito é teoricamente contraditória.

Contudo, redargüiu JORGE AMERICANO[2]: “Se, por um lado, a noção do direito exclui a idéia do abuso, porque o abuso desnatura o direito e faz com que deixe de o ser, por outro lado não há contestar a realidade dos fatos, que verifica, em uma série de atos ilícitos, um falso assento em direito, diversamente do ato ilícito, genericamente considerado em que se não invoca nenhum assento em direito”.

E DEGUIT[3], afastando-se do entendimento de PLANIOL, para dele discordar parcialmente, lembrou: “Eu não diria, com Marcel Planiol que a fórmula “uso abusivo dos direitos” é uma logomaquia, mas, como ele, entendo que se há direito, este cessa onde o abuso começa. E acrescento que esta teoria, ou pelo menos esta fórmula – abuso do direito – explica-se pelas circunstâncias”.

E o maior estudioso da doutrina do abuso do direito, o mestre JOSSERAND[4], também refutou PLANIOL observando não existir contradição em que um ato seja a um só tempo conforme a tal direito determinado e, entretanto, contrário ao direito considerado em sua generalidade e em sua objetividade.

Para não polemizar ainda mais e manter discussão sobre a “luta de palavras”, que não se comporta neste estudo, cabe apenas dizer que a teoria do abuso do direito está consagrada hoje em quase todos os ordenamentos jurídicos das nações desenvolvidas.

O ato jurídico, porque encampado pela norma legal, pressupõe-se lícito.

O ato contrário ao direito não é ato jurídico. Caracteriza um ato ilícito posto não estar conforme ao direito.

Esse ato é ilícito desde a sua gênese: concepção, nascimento e efeitos que produz.

O abuso de direito, em palavras simples e objetivas, pressupõe licitude no antecedente e ilicitude no conseqüente, pois originariamente o agente lança mão de um direito mas o exerce com excesso ou com abuso.

Então, o ato que era inicialmente lícito, em um segundo momento converte-se em ilícito pelo excesso e não em razão de sua origem.

Do que se infere que a idéia do abuso sustenta-se em uma apreciação relativa ao modo pelo qual o titular exerce o direito.[5]

Quando a pessoa pratica uma ação ou omissão permitida, diz-se que praticou um ato lícito e, portanto, não proibido.

Diz-se também que agiu no exercício regular de um direito.

Sua ação é lícita.

Quando, porém, o indivíduo pratica uma ação ou omissão proibida, prevista expressamente na lei como não permitida, diz-se que cometeu um ato ilícito e, portanto, condenado pelo Direito Positivo.

Mas quando essa mesma pessoa faz valer ou exerce mal o seu direito, cometendo excesso, desvio ou abuso, nasce então o abuso do direito como verdadeiro tertius genus.

Segundo entendemos Código Civil, consagrou esse entendimento e cobriu lacuna do Código revogado, adotando a teoria do abuso do direito, definindo-o como ato ilícito e afastando discussão doutrinária secular.

O art. 187 do Código Civil está assim redigido:

“Art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Ressalta claro do texto que também o titular de um direito pode cometer ato ilícito quando o exerce mal e indevidamente, ultrapassando os limites estabelecidos ou desviando-se da boa-fé e dos bons costumes que, então, convertem-se em má-fé e em prática ruim e repudiada pelo estrato social, sendo certo que estes dois últimos comportamentos contra legem são gêneros de que o dolo é espécie.

Portanto, quando alguém ingressa com uma ação judicial está no exercício regular de um direito.
Se o seu comportamento processual se der secundum ius, ou seja, conforme a moldura estabelecida na lei processual civil, não há abuso nem desvio, pouco importando que o resultado da demanda lhe seja favorável ou desfavorável, na consideração de que a só perda da ação judicial não licencia o vencedor a pretender perdas e danos, como de resto não justifica invocar o fundamento de que a sua condição de réu (embora vencedor) causou-lhe incômodos e prejuízos.
Isto porque o fundamento moral do exercício regular de um direito, como causa de isenção de responsabilidade civil, está na certeza imposta pela lei de que, quem usa de um direito seu e o exerce regularmente não causa dano a ninguém.

Esse o princípio estabelecido no atual Código Civil ao dispor não constituírem atos ilícitos aqueles “praticados no exercício regular de um direito reconhecido” (art. 188, I).

Cabe lembrar que a Constituição Federal estabelece princípio irretirável e garantia fundamental contidos nos seguintes enunciados: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5o, XXXV) e que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Diante disso cabe assentar em reiteração que a utilização do direito de estar em juízo encontra proteção e garantia na Carta Magna, de modo que o só ajuizamento de ações judiciais não constitui abuso de direito mas exercício regular de um direito assegurado.

Mas a questão não se esgota com essa primeira conclusão.

Duas vertentes distintas devem ser estabelecidas para efeito de estudo.

A primeira, relativa ao chamado abuso de direito processual, com previsão nos artigos 16 a 18 do Código de Processo Civil sob a rubrica “Da responsabilidade das partes por dano processual”.

A segunda, pertinente ao abuso de direito da parte ou seu advogado em juízo, não mais pela atuação com má-fé processual, mas com o objetivo subalterno de causar dano ou obter vantagem indevida através do Poder Judiciário, agindo com dolo, hipótese que se amolda ao art.186 do Código Civil.

A distinção assume importância pois a declaração da má-fé processual e a correspondente fixação da indenização por perdas e danos ocorre nos próprios autos.

Nesta hipótese a declaração de má-fé pelo magistrado constitui mera questão incidente, que se resolve nos próprios autos em que as partes se contendem.

O CPC reputa de má-fé a parte que conduzir-se segundo os incisos I a VII do art. 17: I) deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II) altear a verdade dos fatos; III) usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV) opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V) proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI) provocar incidentes manifestamente infundados; VII) interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Para estas hipóteses prevê o art. 18 do CPC a imposição de multa não excedente de um por cento sobre o valor da causa e indenização dos prejuízos que a parte tenha sofrido, devendo o juiz, desde logo, nos próprios autos, fixar esse valor, se puder dimensioná-los ou, não sendo possível, determinar a liquidação por arbitramento (art. 18, § 2o).

Essas hipóteses do art. 17 foram estabelecidas em numerus clausus, não comportando ampliação.
Nesse sentido a doutrina de NELSON NERY JÚNIOR E ROSA MARIA ANDRADE NERY[6], JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM[7], MARCOS AFONSO BORGES[8] e ADROALDO LEÃO[9].

Do que se conclui que o próprio legislador admitiu a possibilidade de outras hipóteses ali não contidas, que podem configurar abuso de direito e admitir indenização com base no Direito Comum, ou seja, com supedâneo no Código Civil, na consideração de que o conceito de improbus litigator não se esgota na noção da má-fé processual, que se amolda à fraude processual (dolo) mas deixa de fora da previsão outros comportamentos considerados ilícitos.

Nestes casos, que devem ser identificados, impõe-se o ajuizamento de ação específica e não o aproveitamento da ação judicial onde o ilícito teria sido cometido pela parte ou seu advogado (cf. art. 32 da Lei n.º 9.906/94 – Estatuto da Advocacia).

Nesta impõe-se ao autor que pleiteia reparação fazer prova do fato, de quem o praticou, da conduta dolosa deste último e da existência de um dano.

Segundo nos parece, se estamos falando de má-fé e de conduta fraudulenta da parte, ressuma evidente que há ali identificado o elemento intencional, qual seja o animus nocendi (intenção de prejudicar) ou de obter vantagem indevida.

Assim, o abuso do direito de estar em juízo e de produzir acusação ou defesa em ações cíveis ou criminais, tem como substrato o dolo do agente; a vontade dirigida a um fim. Significa que a culpa stricto sensu não é suficiente para empenhar sua responsabilidade, não obstante o entendimento de consagrados autores, aos quais pede-se vênia para discordar.

Lamentavelmente a doutrina não é muito clara a esse respeito.

PEDRO BAPTISTA MARTINS[10] nos dá uma visão diversa da questão assim se manifestando: “Culpa e exercício de um direito são duas noções incoadunáveis. Onde a culpa aparece não pode haver exercício de um direito e, reciprocamente, a idéia de um direito em ação exclui definitivamente a de culpa”.

Esqueceu-se, porém, que no abuso do direito há legitimidade no antecedente, quando a pessoa atua exercendo um direito legítimo e previsto (como o direito de ação) e dolo no conseqüente, a partir do momento em que desborda do direito concedido (abusando daquele direito de ação), tendo em vista o modo irregular com que o exerce.

Ademais, não se pode aceitar a tendência deste último e consagrado autor ao insinuar que o abuso do direito desprende-se do conceito de culpabilidade para encontrar apoio e sustentação na responsabilidade objetiva ou sem culpa.

Outros autores defendem a tese de que quando o abuso se caracteriza pela intenção de prejudicar, constitui uma falta delitual. Se essa intenção não ocorre, o ato abusivo pode constituir uma culpa quase-delitual, caracterizada pela imprudência ou pela negligência.

Nessa esteira COLIN e CAPITANT[11] concluíram: “Para que haja abuso do direito não é indispensável que se descubra no autor do prejuízo causado a outrem a intenção de prejudicar, o animus nocendi. É bastante que se observe na sua conduta a ausência das precauções que a prudência de um homem atento e diligente lhe teria inspirado”.

Contudo – insistimos – na hipótese sob estudo não basta o agir culposo da parte em juízo ou de seu defensor ou representante legal, pois o conceito de fraude processual e de má-fé processual liga-se intimamente ao dolo, estando incluída nesse conceito a culpa grave, quando o agente assume integralmente o risco de prejudicar ou age com tal desídia que o seu atuar exsurge inescusável e, assim, confina-se e se aproxima do próprio dolo.

E a afirmação de que a má-fé processual ingressa no campo do abuso do direito não pode encontrar disceptação. Em excelente trabalho de doutrina FRANCISCO FERNANDES DE ARAÚJO assim se manifestou: “Sendo a litigância de má-fé caracterizadora do abuso do direito, por evidente constitui um ilícito, conforme, aliás, é o pensamento quase maciço dos autores pesquisados”.[12]

Mas cabe desde logo advertir que não constituirá seara de suave colheita identificar a hipótese de ilícito decorrente de abuso do direito cometido no bojo de ação judicial, não contido nas hipóteses previstas no art. 18 do CPC, embora não se possa, desde logo, afastar essas possibilidade.

Ensinava o notável e saudoso PEDRO BAPTISTA MARTINS[13] acima citado que: “O exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha, também, condicionado a um motivo legítimo. Quem recorre às vias judiciais deve ter um direito a reintegrar, um interesse legítimo a proteger, ou pelo menos, como se dá nas ações declaratórias, uma razão séria para invocar a tutela jurídica. Por isso, a parte que intenta ação vexatória incorre em responsabilidade, porque abusa de seu direito”.

Impõe-se também obtemperar que o abuso de direito que se converte em má-fé processual, previsto nos arts. 16 a 18 do CPC, só comporta reparação por dano material.

Essa limitação resta clara e evidente quando o art. 16 menciona “perdas e danos” e o art. 18 fala em “prejuízos que esta sofreu”.

Mas essa indenização não afasta a possibilidade de compensação por dano moral.

Este encontra suporte no art. 5o da Constituição Federal e não pode ser desconsiderado.

Ninguém poderá negar que a condição de réu em qualquer ação judicial, seja no âmbito penal ou civil, causa incômodo, transtorno, mal estar e intensa angústia.

Ademais desses males d’alma há ainda a ofensa à imagem e ao bom nome, valores subjetivos e inestimáveis que a Carta Magna resguarda e preserva.

Portanto, não há empecilho em obter nos próprios autos, onde as partes litigam, a reparação das perdas e danos em razão da má-fé processual de uma delas e ali reconhecida pelo magistrado e, em ação distinta, buscar reparação por dano moral.

BIBLIOGRAFIA:
AMERICANO, Jorge. Do abuso do direito no exercício da demanda. 2. ed. São Paulo, 1932.
ARAÚJO, Francisco Fernandes de. O abuso do direito processual e o princípio da proporcionalidade na execução civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
ARRUDA ALVIN, José Manoel de. Cód. de Processo Civil Comentado. São Paulo: Ed. RT, v. 2, 1975.
BORGES, Marcos Afonso. Comentários ao CPC. São Paulo: LEUD, 1977, v. I.
COLIN e CAPITANT. Droit Civil Français. Paris, 1923.
DEGUIT, Léon. Les transformations générales du Droit Privé.
JOSSERAND, Louis. De l’Esprit des Droits et leur relativité, 1927.
LEÃO, Adroaldo. O litigante de má-fé. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
LORENZETTI, Ricardo Luis. Nuevas fronteras del abuso de derecho, Revista dos Tribunais n. 723, p. 53.
MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, Rio, atualizada por José da Silva Pacheco.
NERY JÚNIOR, Nélson e NERY, Rosa Maria Andrade. CPC Comentado. 7. ed. São Paulo: Ed. RT.
PLANIOL, Marcel. Traité de Droi Civil, v. II.

Notas do autor:
[1]. MARCEL PLANIOL. Traité de Droi Civil, v. II, n. 870.
[2]. JORGE AMERICANO. Do abuso do direito no exercício da demanda. 2. ed. São Paulo, 1932, p. 5.
[3]. LÉON DEGUIT. Les transformations générales du Droit Privé, p. 199.
[4]. LOUIS JOSSERAND. De l’Esprit des Droits et leur relativité, 1927, p. 312 e segs, n. 245.
[5]. RICARDO LUIS LORENZETTI. Nuevas fronteras del abuso de derecho, Revista dos Tribunais n. 723, p. 53.
[6]. NELSON NERY JÚNIOR E ROSA MARIA ANDRADE NERY. CPC Comentado. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, p. 371.
[7]. JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM. Cód. de Processo Civil Comentado. São Paulo: Ed. RT, v. 2, 1975, p. 149.
[8]. MARCOS AFONSO BORGES. Comentários ao CPC. São Paulo: LEUD, 1977, v. I, p. 28.
[9]. ADROALDO LEÃO. O litigante de má-fé. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 37.
[10]. PEDRO BAPTISTA MARTINS. O abuso do direito e o ato ilícito. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, Rio, atualizada por José da Silva Pacheco, p. 157.
[11]. COLIN e CAPITANT. Droit Civil Français. Paris, 1923, p. 358, letra “b”.
[12]. FRANCISCO FERNANDES DE ARAÚJO. O abuso do direito processual e o princípio da proporcionalidade na execução civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 57.
[13]. PEDRO BAPTISTA MARTINS. O abuso do direito e o ato ilícito. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, Rio, atualizada por José da Silva Pacheco, p. 71.

Extraído do Boletim Mensal de Doutrina e Jurisprudência do CNJ, n. 06, Julho de 2009

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