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10 agosto 2009

O ADVOGADO E OS PRINCÍPIOS ÉTICOS DO PROCESSO



Ada Pellegrini Grinover*
Professora Titular de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP.

O advogado tem que ser inteiramente livre para poder ser inteiramente escravo do dever profissional. O único juiz de sua conduta há de ser a própria consciência.
Alfredo Pujol

SUMÁRIO: 1 Munus Público e Responsabilidade do Advogado; 2 Deveres Éticos do Advogado e Princípios Éticos do Processo; 3 Abuso do Processo; 4 Infrações Disciplinares; 5 A Necessária Colaboração do Advogado para o Desafogo dos Tribunais; 6 Conclusões.

1 Munus Público e Responsabilidade do Advogado

A advocacia não é apenas uma profissão liberal, mas um munus público: mais exatamente, um munus público exercido por particulares. Nesse enfoque, avulta a responsabilidade do advogado, não só perante seu patrocinado, mas também perante a Justiça.

Comprometido com a defesa dos interesses do cliente, o advogado jamais pode descurar seu compromisso frente à administração da Justiça. Não é por acaso que a Constituição conceitua o exercício da advocacia como função essencial à Justiça, considerando o advogado essencial à sua administração (Capítulo IV do Título IV e art. 133 da CF).

2 Deveres Éticos do Advogado e Princípios Éticos do Processo

Por essas razões, o exercício da advocacia envolve a necessidade da observância rigorosa de princípios éticos que devem nortear sua conduta. E, quando se trata de processo, a necessidade de observância rigorosa dos princípios éticos do processo.

A relação jurídica processual, estabelecida entre as partes e o juiz, rege-se por normas jurídicas e por normas de conduta. De há muito o processo deixou de ser visto como instrumento meramente técnico, para assumir a dimensão de instrumento ético voltado a pacificar com justiça.

Nessa ótica, a atividade das partes, embora empenhadas em obter a vitória, convencendo o juiz de suas razões, assume uma dimensão de cooperação com o órgão judiciário, de modo que de sua posição dialética no processo possa emanar um provimento jurisdicional o mais aderente possível à verdade, sempre entendida como verdade processual e não ontológica, ou seja, como algo que se aproxime ao máximo da certeza, adquirindo um alto grau de probabilidade.

É por isso que os códigos processuais adotam normas que visam a inibir e a sancionar o abuso do processo, impondo uma conduta irrepreensível às partes e a seus procuradores.

É o que se passa a verificar.

3 Abuso do Processo

Todos os códigos processuais modernos contêm regras destinadas a caracterizar e a punir o abuso do processo, conceituado no Brasil como litigância de má-fé.

O Código de Processo Civil brasileiro define como atos de litigância de má-fé e atentatórios à dignidade da justiça os seguintes: a) deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso (art. 17, I); b) alterar a verdade dos fatos (art. 17, II); c) usar o processo para conseguir objetivo ilegal (art. 17, III); d) proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo (art. 17, V) (grifei); e) provocar incidentes manifestamente infundados (art. 17, VI); f) fraudar a execução (art. 600, I); g) opor-se, maliciosamente, à execução, empregando ardis e meios artificiosos (art. 600, II); h) empregar expressões injuriosas (art. 15).

As sanções previstas têm por objetivo punir a parte que tenha praticado o ato ofensivo, de desrespeito ao Poder Judiciário. A punição, de natureza pecuniária, será aplicada sumariamente, de ofício ou a requerimento da parte (arts. 15, 18 e 601), nos mesmos autos, mediante incidente processual, revertendo em favor da parte prejudicada.

Outras normas processuais atuam na vertente da necessária observância das decisões judiciárias. São exemplos dessa espécie, no sistema brasileiro, as condutas descritas nos arts. 17, IV, 600, III, 600, IV, 644 e 733 do CPC. A sanção pecuniária, nesses casos, é de natureza coercitiva e não compensatória. Sua aplicação dá-se nos mesmos autos, de ofício ou a requerimento da parte, mediante procedimento sumário. Mas aqui também a multa reverte em favor da parte prejudicada e não do Estado.

O art. 14 do CPC, por sua vez, estabelece os deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo, entre os quais avulta, para efeito desta consulta, o de não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento (III).

E, finalmente, o parágrafo único do próprio art. 14 introduziu em nosso sistema processual o contempt of court, denominado de ato atentatório ao exercício da jurisdição, consistente na violação do dever de cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação dos provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final (inciso V do art. 14), punido, independentemente das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, em multa a ser revertida a favor da União ou do Estado.

Toda essa preocupação dos códigos processuais com os deveres das partes e dos advogados, as sanções para a litigância de má-fé, a previsão do contempt of court, tudo isso constitui um norte para a atuação do advogado, para prevenir mais do que punir o abuso do processo, pela fixação de regras jurídicas e de normas de conduta a serem escrupulosamente observadas no desempenho das funções de advogado.

4 Infrações Disciplinares

Como se não bastasse, o Estatuto da OAB (Lei nº 4.215, de 27.04.63) considera infração disciplinar, que sujeita o advogado às penalidades nele previstas, transgredir preceito do Código de Ética Profissional (art. 103, I, do Estatuto). E, dentre os preceitos do Código de Ética Profissional, consta como dever do advogado o de informar o cliente dos riscos, incertezas e demais circunstâncias que possam comprometer o êxito da causa (Seção II, I, d). Essa regra de conduta, embora destinada precipuamente à "aceitação da causa", é sem dúvida aplicável em sede de ajuizamento de recurso.

5 A Necessária Colaboração do Advogado para o Desafogo dos Tribunais

A caótica situação da Justiça brasileira, com recursos que se acumulam perante os tribunais e que levam anos para ser julgados, atravancando as pautas e tornando a resposta jurisdicional definitiva tão demorada, a ponto de corresponder a denegação de justiça, indica mais uma regra de conduta para o advogado, em sua faceta de portador de munus público, essencial ao exercício da função jurisdicional: o dever de não interpor recurso que, segundo a orientação dos tribunais, certamente não conseguirá provimento.

Várias técnicas legislativas tendem ao mesmo desideratum: a limitação da abrangência de certos recursos, como o de embargos infringentes; a limitação dos casos de remessa necessária; o tratamento dos processos repetitivos; novos filtros para o Recurso Extraordinário; a própria súmula vinculante. Sem falar no impulso aos chamados métodos alternativos de solução das controvérsias. Tudo a indicar ao advogado seu dever de colaborar com o legislador no sentido de desafogar os tribunais, em prol do bem comum, não recorrendo quando a jurisprudência já firmada demonstre que o recurso não merecerá provimento.

Com isso o advogado também estará atuando em prol do interesse de seu cliente, que terá uma diminuição nos custos do processo e nos honorários advocatícios, quando os serviços forem contratados conforme o pacto quota litis, segundo o qual a cada ato praticado caberá uma parcela de honorários - que, aliás, foi o critério estipulado no caso concreto.

6 Conclusões

Diante de todo o exposto, pode-se tranqüilamente responder à consulta no sentido de que foi absolutamente ético o procedimento do ilustre advogado, Dr..., ao aconselhar seu patrocinado a não interpor recurso da sentença desfavorável de primeiro grau de jurisdição, frente à existência de jurisprudência consolidada dos tribunais - inclusive do STJ - em sentido oposto à sua pretensão. Conduta diversa teria sido reprovável, infringindo normas legais e regras de conduta acima referidas.

*Artigo publicado originalmente na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 25 - Jul/Ago de 2008 e integrante do CD Magister 25-fev-mar de 2009.

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