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02 outubro 2009

A RESPONSABILIDADE DO ADVOGADO DE ESTADO – 3 - FINAL


Parte 3 - Final

Diogo de Figueiredo Moreira Neto

Procurador do Estado do Rio de Janeiro aposentado. Exposição apresentada em 31 de outubro de 2007, no auditório da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro.


3ª Parte: Os Pareceres Jurídicos como Atos Próprios de Consultoria de Estado e a Competência para o Controle sobre seus Prolatores


EQUÍVOCOS E CONCLUSÕES


37. Não obstante todos esses arrazoados harmônicos e reiterados, duas recentes e surpreendentes decisões da Suprema Corte, em Mandados de Segurança, n° 24.631 e nº 24.584, ambos de agosto de 2007, têm preocupado os Advogados de Estado no exercício de suas funções, pois esses arestos inauguram discrepância quanto à tradicional e sadia orientação daquele excelso Pretório. Na verdade, neles se inova o tratamento do tema ao considerar que o art. 38, parágrafo único da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ao tratar do procedimento licitatório, imporia responsabilidade solidária aos advogados de Estado, ao dispor que “As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes “devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração”32.


38. Examinavam-se, na hipótese, decisões do Tribunal de Contas da União a respeito de pareceres jurídicos emitidos por Procuradores Federais, em que esta Corte os responsabilizava pelo que considerava “manifestações jurídicas errôneas”, que redundaram na aprovação de aditivo de convênios administrativos. O Supremo Tribunal Federal levou em consideração certo argumento doutrinário, levantado pelo Tribunal de Contas, em que se distinguiam três hipóteses de Pareceres, segundo a natureza da consulta. Seriam, portanto, essas consultas:


“1ª) a facultativa, na qual a autoridade administrativa não se vincularia à consulta emitida;

2ª) a obrigatória, na qual a autoridade administrativa ficaria obrigada a realizar o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou não, podendo agir de forma diversa após emissão de novo parecer; e 3º) a vinculante, na qual a lei estabeleceria a obrigação de ‘decidir à luz de parecer vinculante’, não podendo o administrador decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir”.33


39. Vale dizer que na hipótese da consulta vinculante, aquela em que a Lei obriga o agente administrativo a seguir a orientação jurídica do Parecer, entender-se-ia que o Advogado de Estado que o emitisse estaria agindo como co-administrador público, podendo ser, portanto, responsabilizado como tal, solidariamente com o agente gestor prolator da decisão.


40. Novamente com a devida vênia do Excelso Pretório, essas decisões repetem os mesmos equívocos em que incidiu o Tribunal de Contas da União ao ressuscitar a perigosa tese da co-responsabilidade dos Advogados Públicos – e, ainda, com a máxima vênia, é de se qualificar como extremamente perigosa para a sobrevivência de uma Advocacia de Estado independente e altaneira - que é esta que se vem progredindo e aperfeiçoando em suas funções desde o novo status que lhe foi conferido pela Carta Política de 1988. E isso porque decisões que não façam o necessário discrímen entre funções de gestão pública e de advocacia pública, concorrem para debilitar essa elevada conquista do Estado Democrático de Direito, ora em pleno desenvolvimento de suas potencialidades em defesa da cidadania, pois esta é, afinal, tônica e finalidade última de todas as espécies instituídas de funções essenciais à justiça.


41. São sempre, ainda com permissão dos seus respeitáveis prolatores, sérios equívocos, a demandar nova reflexão e reconsideração que deles se espera, ainda porque, infelizmente, sua manutenção, ao revés de concorrer para o aperfeiçoamento da Administração, desestimulará uma geração de jovens advogados de Estado concursados, pois que, temerosos das conseqüências que possam decorrer do exercício independente e intimorato de sua profissão, ante a possibilidade de serem acoimados de faltosos e de receberem sanções pecuniárias, ao serem tratados como se fossem agentes gestores solidários e, sobre tudo isso, privados da garantia do devido processo da lei perante seus órgãos próprios de tutela, tão somente porque seus opinamentos jurídicos não coincidiram com o das Cortes de Contas, que os consideram “errôneos”.


Preferirão, estes jovens que ingressam nas Procuradorias, ou a comodidade da via de menor risco, ou seja, a falsa segurança de se inclinarem por uma negativa habitual que os desonere, ou, o que será igualmente catastrófico para todos os níveis da Federação, se afastarão da advocacia de Estado agentes de personalidade e de coragem, que são os que mais podem contribuir para a boa administração.


42. Podem ser, em suma, alinhados os seguintes seis equívocos, que evidenciam o agravamento dessa generalizada angústia por parte dos agentes jurídicos da advocacia de Estado, de modo que, quanto mais breve curso tenha, mais rapidamente se dissipará o temor de punições pecuniárias à conta de atos de terceiros e sem o devido processo próprio de suas prerrogativas, e melhor, afinal, para a afirmação que em última análise se espera, da advocacia, como função constitucionalmente independente.


1º Equívoco – Leis não podem alterar a natureza de competências constitucionais.


Com efeito, como a lei ordinária não se pode sobrepor à Constituição, tampouco se pode inferir que o art. 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, haja criado uma exceção à autonomia constitucional dos advogados, como operadores aos quais se incumbe meramente a dicção do direito, para desse modo confundi-los com a própria Administração, enquanto parte consulente.


2º Equívoco – A Lei de licitações, no art. 38, parágrafo único, não comete ao Advogado de Estado qualquer competência administrativa.


O Advogado de Estado nada decide quanto à conveniência ou à oportunidade dos atos que lhe são submetidos, mas, tão somente, sobre o que seja de sua competência, que vem a ser a sua intrínseca juridicidade, e tudo segundo sua ciência e sua consciência, pois que são esses os únicos referenciais de seu opinamento profissional, e sempre sub censura. Logo, à toda evidência, no desempenho desta função de dizer o direito aplicável, o Advogado de Estado não pratica ato de administração. E assim o é, porque nem tem investidura para prática de atos administrativos extroversos, nem, tampouco, dispõe da formação e da informação burocráticas necessárias para praticá-los.


3º Equívoco – O agente administrativo detém, em razão de sua competência própria, a plena decisão sobre a prática do ato sob questão, quer em sentido positivo como em sentido negativo, bem como para determinar os acertamentos que lhe pareçam oportunos e convenientes ou, de qualquer modo, necessários à higidez administrativa do ato. O que se lhe veda, com a vinculação ao Parecer, é apenas divergir da orientação jurídica nele contida.


4º Equívoco – A solidariedade, por decorrer expressamente da lei, não poderia ser implicitamente admitida pela prática de mero ato-condição, como o é o Parecer vinculatório, no qual a manifestação de vontade opinativa além de ancilar, está imitada a um juízo exclusivamente jurídico, que se torna vinculante apenas sob este exclusivo aspecto.

O Parecer vinculante integrará, por certo, a decisão adveniente do agente administrativo, mas apenas no que diz respeito à eficácia própria de sua natureza, ou seja: uma opinião jurídica que apenas autoriza, e sob este exclusivo aspecto, a prática do ato de gestão em questão. O Parecer jurídico não vai a ponto de recomendar nem, muito menos, de obrigar a prática do ato administrativo decisório, porque a vinculação, tal como na letra da lei se encontra, refere-se (ipsis litteris) a uma aprovação. Aprovar é admitir ou não a juridicidade – mas, frise-se, sempre e exclusivamente em termos de direito – ou seja, uma aprovação limitada à matéria jurídica opinada. Tem-se, pois, como problemático engano ampliar essa vinculação a ponto de se considerar que esse caráter vinculatório o seja com tal elasticidade e com tal desbordamento a ponto de obrigar a quem quer que seja o órgão gestor que deva decidir administrativamente, a tomar determinada decisão pelo simples fato de aprovação ou desaprovação de direito. Portanto, por ter essa natureza, de ato condição, apenas a desaprovação jurídica é vinculante de uma decisão administrativa, seja negativa, seja sanatória da ilegalidade lato sensu, já que, nesta hipótese, lhe faltaria, ao agente gestor, ao decidir, um elemento  legal essencial.

5º Equívoco – Apenas ad argumentandum: ainda que se considerasse que a emissão de um Parecer jurídico tido pelas Cortes de Contas como errôneo, omisso, com deficiente ou falso embasamento doutrinário ou jurisprudencial, tendencioso ou eivado de vícios técnicos ou de vontade, ainda assim, a responsabilização do Advogado de Estado, que legitimaria aqueles Órgãos a aplicar-lhe sanção pelo presumido exercício faltoso de sua profissão, dependeria sempre da prévia prova de culpa ou de dolo, processualmente formada perante seus órgãos próprios de controle – sejam os corporativos, seja o Judiciário – e por eles decidida no exercício de suas próprias e indelegáveis competências e, como tal, inafastáveis. Realmente, a aplicação de sanção pecuniária ao Advogado do Estado em razão da constatação de vício em sua atuação profissional constitui-se em intervenção de uma função constitucionalmente autônoma (a dos Órgãos de Contas) sobre outra (a dos Órgãos Corporativos da Profissão de Advogado); intervenção essa que seria de tipo não previsto na Carta Política, na verdade, o único texto que poderia autorizar tal sorte de controle. Ao contrário do afirmado, o abuso advocatício, se perpetrado, não restaria em absoluto incontrolável em tais hipóteses, pois, obviamente, os controle próprios já existem, devidamente previstos, sendo eles: primo, o controle corporativo – exercido pelos órgãos colegiados a que está sujeito o presumido advogado infrator, e em duplicidade, no caso do Advogado de Estado (as Procuradorias próprias e a Ordem dos Advogados do Brasil), e, secundo, o controle jurisdicional, bastando apenas que o Órgão de Contas, nessa hipótese, os acione, por uma simples comunicação por ofício, para pôr em marcha os devidos processos legais aptos para impor sanções administrativas a advogados.

6º Equívoco – O texto do art. 38, parágrafo único, não se refere exatamente a uma atividade de consultoria jurídica, mas a uma atividade de assessoria jurídica, atuação esta técnica e legalmente distinta daquela.

Reza a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – Ordem dos Advogados do Brasil:

“Art.1º. São atividades privativas de advocacia:

I - a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais.

II - as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.” (n/grifo).

Em razão dessa diferença introduzida na Lei, é possível deduzir-se que uma interpretação conforme a Constituição desse dispositivo, para que a legislação infraconstitucional não conflite com a Lei Magna, é excludente da atividade parecerista. Com efeito, a atividade de consultoria jurídica reservada ao Advogado de Estado é atividade em que este emite uma opinião própria e sempre vinculante, porque, pelo menos, exigirá que a autoridade decisória motive cabal e explicitamente porque não segue o opinamento nele contido. Distintamente, porém, na atividade de assessoramento jurídico, embora também de reserva legal do Advogado de Estado, o assessor apenas coadjuva e supre o assessorado com justificativas e com motivações que podem, até mesmo, não serem de sua própria convicção, mas sugeridas com vistas a colaborar e a suprir, com argumentos jurídicos, o ponto de vista próprio do assessorado, como órgão decisório. Nestas condições, não se trata de função de assessoria, mas de consultoria, a desempenhada pelo Advogado de Estado, pois que só esta vincula, já que na função de assessoria, o agente gestor assessorado colhe apenas subsídios de seu assessor, para chegar à sua própria conclusão sobre o ato de gestão que dele se espera. Assim, em razão mesmo da independência funcional do Advogado de Estado, que age em atividade de consultoria – e não de assessoria – seria tecnicamente impossível, como sustentado, cogitar-se de solidariedade e, mesmo que se pudesse lidimamente suspeitar que o agente jurídico, nesta qualidade, agiu com dolo ou culpa, a sua apuração deveria seguir o devido processo da lei, como garantia geral de todo e qualquer cidadão, e, portanto, perante os órgãos competentes para processar e impor sanções a advogados faltosos.

Conclusão

1. À guisa de resumo, é possível deixar alinhadas as seguintes conclusões:

Atividade advocatícia pública não se confunde com atividade de administração pública.

Ato próprio de Advogado de Estado não é ato de gestão administrativa de dinheiros, bens e valores públicos.

Advogado de Estado é agente público sui generis, de natureza política e status constitucional, pois exerce unipessoalmente uma parcela do poder do Estado que lhe é conferida em seu ministério, de impulso e de dicção do direito, e não um agente administrativo que pratica atos de gestão sob ordens hierárquicas.

O Parecer jurídico é ato próprio da atividade advocatícia, privada ou pública, e não um ato próprio da Administração.34

A solidariedade decorre expressamente da lei, não podendo ser inferida de uma autorização, máxime quando se trate de uma apreciação parcial – apenas de legalidade – de uma questão que deve ser decidida administrativamente, ou seja, à luz de outras premissas, tais como conveniência, oportunidade, legitimidade e economicidade – essas, portanto, postas sob a competência das Cortes de Contas.

2. Por óbvio, não se questiona a competência das diversas Cortes de Contas do País de adotarem suas próprias interpretações do Direito, pois o critério de juridicidade contido nos Pareceres jurídicos dos Advogados de Estado não se lhes obriga, uma vez que são apenas atos opinativos estão sub censura, como, de resto, todos os atos interpretativos do Direito, até mesmo os judiciais, até que transitem em julgado.

3. Assim é que as Cortes de Contas, por se tratarem de órgãos constitucionalmente autônomos em suas respectivas funções, tanto quanto o são os órgãos exercentes das funções essenciais à justiça em suas funções próprias, estão livres para adotar as interpretações que lhes pareçam mais adequadas, divergindo, criticando e repudiando as conclusões de direito contidas em Pareceres jurídicos, mas, mesmo que os tenham como ineptos ou viciados, não podem impor aos Advogados de Estado as sanções administrativas de sua competência, reservada aos gestores, apenas por entenderem que os profissionais de direito, nesta qualidade, cometeram faltas.

4. Com efeito, o poder sancionatório desses órgãos de fiscalização de contas do País, previsto no art. 71, VIII, da Constituição35, é exclusivamente dirigido aos gestores administrativos referidos no supracitado art. 70, parágrafo único, pois são esses que exercem competência decisória (administrativa) na prática de atos eivados de ilegalidade de despesa ou com irregularidade contábil.

5. Por outro lado, é evidente que, pela aplicação de sanções aos Advogados de Estado, por considerá-los “co-autores” de ilegalidades ou de irregularidades de gestão administrativa pública em razão de sua atuação funcional, os órgãos de contas estariam se substituindo, sem o devido fundamento constitucional e sem o devido processo legal, aos órgãos colegiados de controle e, ainda com maior razão, aos próprios órgãos judiciais, em suas respectivas funções constitucionalmente privativas de controle e de imposição de sanções.

6. Todavia, essa usurpação de funções sancionatórias sobre Advogados de Estado, a que se arrogam as Cortes de Contas, por si só inconstitucional, por se dar em violação da autonomia funcional de que gozam os órgãos exercentes das funções essenciais à justiça, ainda mais se agrava quando vem aplicada sob o fundamento de pretendida “solidariedade”, porque:

1º - tanto no juízo corporativo interno do ato advocatício tout court, como atividade privativa dos órgãos colegiados, conformados por seus pares advogados;

2º - quanto no juízo corporativo interno do ato advocatício de Estado, privativa dos órgãos colegiados, conformados por seus pares advogados de Estado;

3º - quanto, por fim, no juízo jurisdicional externo do ato advocatício, não importando se for ato privado ou público, como competência dos órgãos do Judiciário – se tem que quaisquer sanções, como a de imposição pecuniária, que decorram de imputação de falta profissional de advogado, depende inafastavelmente da prova de culpa ou de dolo, sempre formada em processo próprio, perante órgãos competentes, em que seja franqueada ampla defesa.

7. A Advocacia de Estado – por derradeiro, como de resto qualquer dos ramos de seu antigo e respeitável ministério, necessita de segurança e de serenidade para uma atuação profícua, em benefício dos sagrados valores que deve sustentar e, no Estado Democrático de Direito, desde logo o são dignidade humana e cidadania – tem no medo o seu pior inimigo.

Notas do Autor:

32 Art. 38, parágrafo único, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1.993 (com a redação dada pela Lei 8.883, de 8 de junho de 1994). (n/grifo).
33 MS 24.631, Relator o Min. Joaquim Barbosa (nossos grifos para caracterizar a tipologia inovada nessas decisões).
34 A este respeito, até a promulgação da Carta Política de 1988 era perfeitamente plausível a inclusão do Parecer jurídico na categoria geral dos pareceres administrativos, porque não se havia destacado constitucionalmente as funções essenciais à justiça e, entre elas, a função de advocacia de Estado.
35 “Art. 71. (...) - VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei...”

Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, no. 63, ainda no prelo e em fase de revisão de provas gráficas, mas cujo artigo foi publicado na íntegra no site da PGR-RJ, de onde foi extraído.

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