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13 outubro 2009

O PÚBLICO E O PRIVADO EM HANNAH ARENDT-1


Parte 1

Marco António Antunes







Índice 1 Introdução. 2 Grécia Antiga: a génese da esfera privada e da esfera pública. 2.1 A esfera privada. 2.2 A esfera pública. 3 O social e o político. 4 A promoção do social. 5 A esfera pública: o comum. 6 A esfera privada: a propriedade. 7 O social e o privado. 8 A localização das actividades humanas. 9. Bibliografia.


Resumo:

As origens da acção remontam à polis grega, espaço de acção política, através da pluralidade de opiniões. Em As esferas pública e privada Arendt pretende realizar uma genealogia da acção política sublinhando a oposição entre a esfera daquilo que é comum (koinon) aos cidadãos - a esfera pública da política - e a aquilo que lhes é próprio (idion) ou do domínio da casa (oikos) – a esfera privada.


1 Introdução


Em A Condição Humana, Hannah Arendt tematiza os três conceitos fundamentais que constituem a génese da sua antropologia filosófica: trabalho, produção e acção (1). Quanto ao trabalho, ele é necessário à sobrevivência biológica e efectiva-se na actividade do animal laborans, o qual a partir de um estádio primitivo de existência vivia isolado dos outros seres humanos regendo-se apenas pelos ditames fisiológicos da vida animal. Em relação à produção, ela é o estádio do homo faber que produz objectos duráveis (técnicas) partilhando o seu saber de fabrico com outros homens. A acção é a característica matricial da vida humana em sociedade. Os homens agem e interagem uns com os outros no seio de uma vida política em sociedade. Só a acção é a única característica da essência humana que depende exclusivamente da contínua presença de outros homens. Arendt enquadra o trabalho (labor) e a produção (work) no domínio da esfera privada, enquanto a acção está exclusivamente no plano da esfera pública (política). O privado é o reino da necessidade. O público é o reino da liberdade. A acção (política) nunca é equivalente a um trabalho necessário à sobrevivência biológica ou à produção técnica. A acção é uma actividade comunicacional mediada pela linguagem da pluralidade de opiniões no confronto político e efectivada através da retórica.

Para Arendt, a evolução da sociedade, a assimilação da acção pelo social privado, o uniformismo das actividades humanas e o consequente conformismo demonstram bem até que ponto se perdeu a distinção entre a polis (esfera pública) e o oikos/idion (esfera privada). A sociedade actual representa a extensão da esfera privada doméstica ao espaço público da política. Este aspecto central é visível a partir da Modernidade verificando-se a assimilação da igualdade, outrora circunscrita ao espaço político, pela esfera privada. A igualdade moderna e contemporânea rejeita a praxis (acção) e a lexis (discurso) constituintes da comunidade política, valorizando o conformismo e uniformização do comportamento. Consequentemente, o homem reduz-se a um produto quantitativo condicionado, isto é, o objecto primordial das análises cientifistas das ciências sociais e em particular do behaviorismo, economia "matemática" e estatística.


Arendt afirma que o agir comunicacional da esfera política aparece absorvido pelos interesses privados da intimidade. Deste modo, a esfera social deixa de estar submetida à hierarquia do Poder. A política perde a personalidade da democracia grega transformando-se numa vontade geral burocrática. A conservação da vida e a desigualdade inerentes à esfera doméstica passam a ter interesse para a acção política. Do mesmo modo, as teorias políticas do Absolutismo acentuavam que o Estado, na figura do Rei, deveria assegurar o direito de propriedade e a acumulação de riqueza dos cidadãos. Contrariamente a estas concepções as doutrinas socialistas, desde Proudhon a Marx, defendem a abolição da propriedade privada e a distribuição da riqueza num sistema de produção cooperativista de base comunitária. Ora, Arendt embora aceite o princípio revolucionário marxista, segundo o qual a força de trabalho é a origem da propriedade rejeita os regimes socialistas e em particular as teses de Marx referentes à ditadura do proletariado, prevendo o perigo do totalitarismo da massa proletária.

2 Grécia Antiga: a génese da esfera privada e da esfera pública


2.1 A esfera privada

É a esfera da casa (oikos), da família e daquilo que é próprio (idion) ao homem. Baseia-se em relações de parentesco como a phratria (irmandade) e a phyle (amizade). Trata-se de um reino de violência em que só o chefe da família exercia o poder despótico sobre os seus subordinados (a sua mulher, filhos e escravos). Não existia qualquer discussão livre e racional. Os homens viviam juntos subordinados por necessidades e carências biológicas (por exemplo: alimentação, alojamento, segurança face aos inimigos). A necessidade motivava toda a actividade no lar: o chefe da família proporcionava os alimentos e a segurança face a ameaças internas (por exemplo: revoltas de escravos) e externas (outros senhores que quisessem destruir uma dada casa e família), a mulher era propriedade do chefe da família e competia-lhe procriar e cuidar dos filhos, os escravos ajudavam o chefe da família nas actividades domésticas. Na esfera privada, existia a mais pura desigualdade: o chefe da família comandava e os outros membros da família eram comandados. O chefe da família não era limitado por qualquer lei ou justiça. Assegurando a manutenção da ordem doméstica, exercia um poder totalitário sobre a vida e a morte. Na esfera privada, o homem encontrava-se privado da mais importante das capacidades - a acção política. O homem só era inteiramente humano se ultrapassasse o domínio instintivo e natural da vida privada.


2.2 A esfera pública


É a esfera do comum (koinon) na vida política da polis. Baseia-se no uso da palavra e da persuasão através da arte da Política e da Retórica. Para Aristóteles, a esfera pública era o domínio da vida política, que se exercia através da acção (praxis) e do discurso (lexis). Os cidadãos exerciam a sua vida política participando nos assuntos da polis. Vencer as necessidades da vida privada constituía a condição para aceder à vida pública. Só o homem que tivesse resolvido todos os assuntos da casa e da família teria disponibilidade para participar num reino de liberdade e igualdade sem qualquer coacção. Todos são iguais (não há desigualdade de comandar e de ser comandado) e todos são livres em expressar as suas opiniões. O poder da palavra através da persuasão (a prática da retórica) substitui a força e a violência da esfera privada. Os cidadãos livres e iguais da esfera pública da polis opõem-se, assim, às relações de dominação e de propriedade sobre os subordinados do oikos (2).


Deixar o lar e a família manifestava a mais importante virtude política - a coragem. No oikos, o homem defendia a sua sobrevivência biológica. Na polis, o homem tinha de ter oragem para arriscar a própria vida libertando-se do servilismo do amor à vida. A vida boa, que Aristóteles identificava com a acção política, significava a libertação do homem face às esferas do animal laborans e do homo faber efectivando-se através da virtude da coragem e da eudaimonia (vida boa). Ter coragem era a condição para aceder à vida política afirmando uma individualidade discursiva e contrariando a mera socialização imposta pelas limitações da vida biológica privada. Ser cidadão da polis, pertencer aos poucos que tinham liberdade e igualdade entre si, pressupunha um espírito de luta: cada cidadão procurava demonstrar perante os outros que era o melhor exibindo, através da palavra e da persuasão, os seus feitos singulares, isto é, a polis era o espaço de afirmação e reconhecimento de uma individualidade discursiva.


Notas do Autor:

1 - A contemplação é o último elemento conceptual da antropologia filosófica de Hannah Arendt. Consiste na relação do homem com o mundo físico na tentativa de apreender leis eternas semelhantes às leis da Matemática e da Física. Este conceito é tematizado em The life of the spirit. Compreende reflexão filosófica e religiosa.
2 - Apesar da essência pública da política, Arendt afirma que a linha divisória entre a esfera privada e a esfera pública desaparece ocasionalmente em Platão e Aristóteles. Para Platão, as experiências da vida privada podem ser transferidas para a vida na polis. E Aristóteles, seguindo Platão, defendeu que a origem histórica da polis estava ligada à superação das necessidades do oikos e somente a finalidade última da vida boa na polis (a felicidade) transcende a insuficiência biológica da casa e da família.


Extraído do site BuscaLegis

Um comentário:

Ludmyla disse...

O nome do livro da Hannah Arendt eh "The life of the mind" em portugues "A vida do espirito".