Translate

26 outubro 2009

A PROVA DINÂMICA NO DIREITO DE FAMÍLIA – PARTE 1


Parte 1

José Carlos Teixeira Giorgis

Desembargador Aposentado, RS; Professor; Especialista em Direito Processual Civil; Especialista em Ética e Bioética; Mestrando.


1 Primeiras Notas

Alguns juristas costumam considerar o estudo da prova como centro nevrálgico da ciência do processo. A seu redor dançam os demais institutos como satélites aplaudindo seu brilho; dependentes do fulgor que o astro projeta, seus destinos quedam acorrentados às cadências que promova, pois ficam sem sentido quando divorciados do eixo de giro.

O embate é um conflito de versões que precisa acomodar-se a leito de igualdades e ordem, para não restar anárquico ou injusto; desenrola-se em arena onde as armas terçam em harmonia e respeito, sob o controle imparcial de árbitro obrigatório.

E que precisa ser persuadido pelos argumentos que sustentam as pretensões postas pelos gladiadores em litígio.

A lesão aos direitos subjetivos é levada ao conhecimento da autoridade jurisdicional, única legitimada para dirimir os conflitos resultantes de sua ofensa, em busca da respectiva tutela e proteção.

O juiz deve dirimir a controvérsia, mas como não foi espectador ou coadjuvante do acontecido, é preciso que lhe sejam oportunizados todos os elementos do evento.

Para tanto a lei estabelece uma repartição de encargos entre as partes, tocando ao autor a demonstração dos pressupostos que enfeitam sua pretensão e ao demandado aqueles que constituem a coroa de sua defesa, no equilíbrio e igualdade próprios do contraditório constitucional e do princípio dispositivo.

Em outras palavras, o código de cânones instrumentais firma que a parte deve demonstrar apoio ao direito invocado, restando ao magistrado, aqui e ali, intervir para ordenar alguma diligência que melhore seu convencimento.

A prova é a soma dos elementos produtores da convicção judicial; segundo uma imagem muito apropriada é a ponte que liga uma alegação presente aos acontecimentos pretéritos.

As provas servem exatamente para voltar atrás, afirma Carnelutti, elas se prestam para edificar o passado; o juiz é um historiador que reproduz a pequena narrativa, pois a prova é uma reconstrução histórica 1.

Contudo, enquanto o historiador dispõe de ampla liberdade para investigar os fatos, o juiz se atrela a freios que limitam visão abrangente, pois focaliza somente os cenários postos pelas partes.

Daí prevalecer na doutrina nacional, uma concepção oriunda das fontes lusitanas, que considera a prova um ato jurídico processual, meio prudente de convicção e que objetiva, como fim, o convencimento; ou seja, ato, meio e fim.

Assim, prova é tudo capaz de convencer o juiz sobre as afirmações feitas pelas partes no processo.

E na sua ponderação, descabe ao magistrado mostrar-se apático quando o litigante melhor aquinhoado nas condições processuais quase massacra o menos abonado, ferindo a isonomia e a equidade; mas até intervir para nivelar as atividades na busca da verdade real, única capaz de favorecer a paz que o processo almeja.

2 Distribuição da Prova

O exame do ônus da prova contém um encargo e poder processuais concedidos à parte para aferir a possibilidade de escolha de algum comportamento que atinja a meta buscada por sua ação.

É uma conduta oriunda da liberdade da parte; no entanto, é certo que o processo não pode se limitar aos interesses das partes, especialmente quanto à instrução.

As regras de distribuição do ônus da prova, aqui como em outros países, têm abrigo no estatuto instrumental.

No direito romano verificou-se progressivo aumento do poder do Estado frente às controvérsias privadas, manifestado por uma maior fiscalização sobre a discussão, embora através de excessivo formalismo.

As primeiras regras de distribuição surgiram no período formulário, quando o pretor redigia um documento com a reprodução dos fatos e das alegações, os direitos de uma e de outra parte; ou seja, uma notória indicação de como obter a vitória.

Mais adiante, já sob a condução do magistrado, foram reduzidas as fórmulas, aumentou a intervenção estatal, criando-se um procedimento com outra visão, adotando-se um sistema tarifário, cumprindo-se a prova estatuída em lei e impondo consequências a quem produzisse prova insuficiente.

Segue-se a etapa do direito germânico, dos "juízos de Deus", em que a distribuição era proporcional à capacidade probatória da parte.

O direito canônico registra regras negativas quanto à distribuição; e o jusnaturalismo cunha afirmação de que "todo aquele que alega em juízo deve provar a alegação", daí assentando-se, na fase pós-medieval, conhecido brocardo de que toca ao outro a prova de sua alegação, para depois recair no demandado.

Enfim, sinalizou-se o apego ao princípio da liberdade das partes, o que chegou a diversas legislações através do estatuto napoleônico; as vertentes italiana e portuguesa aqui plantaram o art. 344 da Consolidação das Leis do Processo Civil, seguindo-se o Código de 1939 e ao diploma de 1973, onde o princípio repousa no art. 333, CPC.

A carga da prova constitui motivo de interessantes elaborações, mas também de críticas expressivas, bem alinhadas em trabalho de Rodrigo Xavier Leonardo.

Assim, para Emílio Betti, em todo o processo há riscos ligados aos ônus processuais; a ação ou exceção expõe o risco à sucumbência; a falta de comparecimento em juízo ou de contraditar gera a contumácia; ou seja, quem tem o ônus da ação, tem o ônus da afirmação e de provar os fatos que fundamentam o que se busca na ação ou na exceção, entendimento peninsular que encontrou abrigo na jurisprudência pátria 2.

Para Carnelutti, o ônus é apenas um mecanismo de estímulo à atividade da parte no processo, mas também se vincula à necessidade de fornecer subsídios para a cognição de um fato, como existente ou inexistente; daí emergindo o problema de decidir quem deva sucumbir, em caso de ausência ou insuficiência de provas; destarte, o ônus é um instrumento para alcançar o escopo do processo, que não é simples composição, mas a justa composição da lide.

Chiovenda acha que a repartição da prova, além de satisfazer a função de regra de julgamento, também serve para promover a igualdade das partes na demanda, além de incentivá-las a produzir provas com maior cuidado e perfeccionismo; ao autor cabe a prova dos fatos constitutivos ou que produzem determinados efeitos jurídicos; ao réu, os fatos impeditivos ou falta dos fatos que concorrem com os constitutivos, falta que impede a estes de gerar seu efeito natural.

Já Micheli, que é autor de uma das mais relevantes obras sobre o tema, introduz importante afirmação: as regras de distribuição não constituem questão de lógica processual, mas de ética social, pois somente um olhar para a sociedade em concreto a que se aplicam as normas torna possível a análise da matéria. Para ele, o processo é um campo onde se conferem numerosos poderes de vários conteúdos, destinados a alcançar certos resultados jurídicos; o antecedente lógico de cada poder é a capacidade de ser parte e de agir em concreto na demanda, daí derivando os poderes processuais. E onde prevaleça o princípio dispositivo, ergue-se a noção de autorresponsabilidade das partes, diversamente da estrutura de maior poder judicial, onde predomina a gestão publicizada da prova.

Liebman entende o ônus da prova ligado indissociavelmente ao ônus da afirmação, representando na relação processual um limite aos poderes do juiz. Há uma face objetiva, apontando para o que deve ser provado independente de qual parte detém o encargo de provar, e uma face subjetiva, consistente na divisão do ônus entre as partes, o que limita os poderes do juiz. Alude ao princípio da aquisição da prova, o que gera uma comunhão dela pelas partes e ao princípio dispositivo que domina o processo; e a existência de poderes instrutórios do juiz, sendo o ônus da prova uma regra de julgamento: ao autor, os fatos constitutivos, ao réu os demais.

Rosenberg, também autor de livro clássico, considera o ônus a mera aplicação do direito material, servindo as regras apenas para resolver questões de fato; a distribuição somente ocorre quando o juiz tenha dúvidas sobre a existência dos pressupostos fáticos para aplicação da norma ao caso 3.

Adequada, para o objetivo dessa reflexão, é a feliz observação de Bentham:

"La carga de la prueba debe ser impuesta en cada caso concreto, a aquella de las partes que la pueda aportar con menos inconvenientes, es decir, con menos dilaciones, vejámenes y gastos." 4

Disso se deflui que a repartição probatória deve basear-se num regime de franca justiça e procedimento natural, acontecendo a distribuição do ônus segundo as possibilidades de produção de cada parte.

Nessa linha de entendimento a carga da prova deve ser imposta às partes a que a prova ocasionar menos inconvenientes, isto é, com menos dilações, incômodos ou atos.

A doutrina reconhece que o critério esbarra na dificuldade em delimitar, mediante mecanismos técnicos, qual seria a parte em situação mais favorável para produzir a prova, tanto que o próprio jurista acha que o aforismo criou mais dificuldades que soluções 5.

3 Teoria da Carga Probatória Dinâmica

A afirmação de Bentham levou ao jurista argentino Jorge W. Peyrano a disseminar o que chamou "teoria da carga dinâmica da prova", lastreada no seguinte axioma: a prova incumbe a quem, pelas circunstâncias do caso concreto, detém as melhores condições de produzi-la 6, intenção que rompe a visão estática da mera distribuição.

Não se leva em conta nem a parte nem a espécie de fato, se constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, mas o fato em si, cabendo a prova a quem tiver as condições mais privilegiadas em satisfazê-la.

Desimporta o prévio e abstrato encargo, a posição da parte, ou a qualidade do fato, mas ressalta-se a concretude do caso, a natureza do fato a demonstrar, remetendo-se o encargo à parte mais acreditada para introduzir a prova no processo.

A denominação se deve à mobilidade da prova em se adaptar ao fato concreto, achando, alguns, que se cuida de uma simples releitura do princípio da solidariedade entre as partes, o que também desemboca na boa-fé que norteia a conduta processual, quando se atribui faculdade probatória a quem tenha menos transtornos.

Como se vê, a teoria entroniza em bom altar o princípio do ativismo judicial já bem domiciliado em cânone da bíblia processual brasileira, dinamismo que contribui para que a demanda atinja sua máxima finalidade.

Advirta-se que a medida não se trata de inversão da prova, mas de justa política judicial de intervir na distribuição da prova.

A decisão que inverte o ônus da prova provoca a liberação ou a diminuição do encargo probatório da parte autora em detrimento da parte ré e o thema probandum que normalmente seria imputado à parte autora passa a ser incumbência da parte ré; ao réu, nesses casos, é imputado, simultaneamente, o ônus extraordinário de comprovar a não ocorrência dos fatos e, cumulativamente, o ônus ordinário de demonstrar a ocorrência de algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor; as hipóteses legais de inversão costumam ser construídas pelo legislador a partir do reconhecimento de que, em alguns casos, imputar a integralidade da prova dos fatos constitutivos ao autor é o mesmo que negar, na prática, a tutela de seu direito 7.

A inversão acontece quando não recai sobre a parte tradicionalmente onerada com a prova do fato o ônus de demonstrar, mas sobre a contraparte a quem incumbe demonstrar o fato contrário; por implicação da inversão do ônus da prova, se ela recair sobre um fato constitutivo do direito alegado pelo autor, significa que incumbe ao demandado (réu) provar o contrário desse fato constitutivo, por exemplo, uma causa de exclusão da culpa, sendo o fato constitutivo a culpa do réu no incumprimento 8.

O rompimento do paradigma das regras de distribuição se deu com o Código de Defesa do Consumidor, que permitiu a inversão do ônus probatório, desde que a alegação fosse verossímil ou hipossuficiente o autor, segundo as regras de experiência (CDC, art. 6º, VIII).

E com isso se perseguiu uma promoção da igualdade material entre as partes, pois não basta assegurar direitos, sem a indispensável facilitação da defesa do jurisdicionado 9.

A distribuição relaciona-se com o princípio dispositivo e o ditado da lei que atribui às partes a indicação da prova sobre os fatos a serem apreciados pelo juiz na sentença; daí a conhecida expressão de que o ônus da prova incumbe a quem alega; e de que ao autor cabe a prova do fato constitutivo do seu direito e ao réu a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, segundo a lição do art. 333, I e II, do CPC; esse dispositivo ainda veda o acordo entre os atores processuais distribuindo, de modo diverso, a prova sobre direitos indisponíveis ou que crie obstáculo ao exercício do direito (CPC, art. 333, parágrafo único, I e II), pois as partes não podem obstar ao juiz a livre apreciação probatória. Aqui, pois, não se permite qualquer inversão no reparto.

A doutrina das cargas dinâmicas importa em afastamento excepcional das normas legais sobre a distribuição da prova a que se recorre apenas quando a aplicação delas arrisca consequências manifestamente desvaliosas; e que se traduz em novas regras de repartição da imposição probatória conforme as circunstâncias do caso e aspectos apriorísticos, como o fato a demonstrar, a condição de autor ou réu, destacando-se as que fazem incidir o encargo sobre a parte que está em melhores condições profissionais, técnicas ou fáticas para produzir a prova respectiva 10.

A teoria sustenta que, além da situação de autor ou réu, em determinadas hipóteses, a carga da prova recai sobre ambas as partes, em especial sobre aquela que se ache em melhores condições para produzi-la.

Essa nova corrente não ignora as regras clássicas do ônus da prova, mas cuida de completá-las ou aperfeiçoá-las, flexibilizando sua aplicação nos episódios onde a parte que devia provar segundo a regra tradicional se vê impossibilitada de fazê-lo por motivos absolutamente alheios a sua vontade 11.

A aplicação estrita das regras sobre o ônus da prova pode levar a resultados injustos, especialmente nos casos de prova diabólica, em que a comprovação é de difícil concretude pela parte.

Não é demais sublinhar-se que essa doutrina contém uma carga probatória compartilhada, como manifestação de uma nova cultura do processo judicial caracterizada pela vigência do princípio da solidariedade e o dever de cooperação de todos em busca de um rendimento mais eficiente do serviço judiciário atual, tornando comum a tarefa probatória das partes; então, o processo não se desenvolve como uma luta, mas, ao contrário, em vista da colaboração das partes com o juízo, e em determinados casos, o encargo toca igualmente a ambos os litigantes, especialmente o que dispõe de melhores condições 12.

Reitere-se, como fecho, que não se trata de uma inversão da prova, mas da atribuição do peso probatório ao melhor afiançado para fazê-lo, em vista de razões diversas e na busca de uma igualdade material.

A alteração do ônus da prova, aqui, se opera ope iudicis e não ope legis, cumprindo ao juiz determinar o encargo probatório, variar a carga da prova consoante se mostre a atividade probatória, mais fácil, mais acessível, mormente por se encontrar, aquele a quem se onera, no controle dos meios probatórios 13.

Notas do Autor:

1 - CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Conan, 1995. p. 44 e ss.
 2 - STJ, REsp 30.287-7, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ 08.03.93; também JTARS, 88/321.
3 - LEONARDO, Rodrigo Xavier. Imposição e inversão do ônus da prova. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 98/114.
4 - BENTHAM, J. Tratado de las pruebas judiciales. v. II. Buenos Aires: Ejea, 1971. p. 149.
5 - LEONARDO, Rodrigo Xavier, p. 98-99.
6 - PEYRANO, Jorge W. Aspectos procesales de la responsabilidad profesional. In: Las responsabilidades profesionales. Coord. Augusto M. Morello e outros. La Plata: LEP, 1992. p. 263.
7 - LEONARDO, Rodrigo Xavier, p. 217-218.
8 - RANGEL, Rui Manuel de Freitas. O ônus da prova no processo civil. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 182.
9 - STJ, REsp 506.443, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 08.09.03; também, RE 347.632, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., DJ 01.09.03.
10 - PEYRANO, Jorge W. Nuevos lineamentos de las cargas probatorias dinámicas. In: Cargas probatorias dinámicas. Peyrano, W. Jorge e White, Inés Lépori (Coords.). Buenos Aires: Rubinzal, 2004. p. 21.
11 - WHITE, Inés Lépori. Cargas probatorias dinámicas. In: Cargas probatorias dinámicas. Peyrano, Jorge W. e White, Inés Lépori (Coords.). Buenos Aires: Rubinzal, 2004. p. 60.
12 - LEGUISAMÓN, Héctor E. La necesaria madurez de las cargas probatorias dinámicas. In: Cargas probatorias dinámicas. Peyrano W. e White, Inés Lépori (Coords.). Buenos Aires: Rubinzal, 2004. p. 116.
13 - TJRS, 2ª Câmara de Férias, AI 70000004028, Rel. Des. Jorge Luís Dall’Agnoll, j. 13.10.99.

Extraído de Newsletter Magister 991

Nenhum comentário: