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16 outubro 2009

O PÚBLICO E O PRIVADO EM HANNAH ARENDT - 4 - Final


Parte 4 - Final

Marco António Antunes





6 A esfera privada: a propriedade

No âmbito da esfera privada, Arendt realiza uma explicação dos conceitos de propriedade e riqueza inerentes à esfera da família e da casa. Arendt afirma que só com a garantia da propriedade privada e da riqueza necessária à subsistência biológica o homem poderia escapar à escravidão e à pobreza tornando-se, assim, capaz de ultrapassar as necessidades da vida natural e aspirar à cidadania na polis. Arendt destaca que a mentalidade cristã e o socialismo contribuíram para a desagregação da propriedade e da riqueza, elementos clássicos da esfera privada. O cristianismo encara a propriedade e a riqueza de forma não-individualista, mas como bens partilháveis em comunidade. O socialismo no seu conjunto defende um modelo cooperativista de administração da propriedade e da riqueza.

Segundo Arendt, viver na esfera privada significava estar privado de ser ouvido e visto por todos numa comunidade política em que os indivíduos partilham objectivamente uma acção política num espaço comum - a polis. A esfera privada limitava-se a um interesse pessoal circunscrito aos condicionalismos da sobrevivência biológica na família e na casa. Na Antiguidade, os romanos compreenderam que a esfera privada e a esfera pública deveriam coexistir simultaneamente. A esfera privada oferecia actividades "espirituais" como o estudo das ciências e das artes, embora nunca pudesse substituir a acção política na condução dos assuntos públicos. Todavia, enquanto os romanos nunca sacrificaram a esfera privada face à maior importância do espaço político (salientando que os escravos encontram no lar um refúgio e uma educação), os gregos ao invés denotaram sempre na esfera privada da casa e da família a ausência da essência da condição humana - a acção política.

O aparecimento do cristianismo contribuiu para a quase extinção da ideia que o lar era um espaço íntimo de privação. Para os cristãos, quer na esfera privada da casa e da família, quer na esfera pública da política o homem procurava o amor ao próximo para obter a salvação e evitar a condenação. Os afazeres da casa e da família deveriam servir para obter o bem-estar material da comunidade desprovido das honras e do poder, pois a humildade de acção e do sentimento constituía a principal premissa da caridade evangélica. Na perspectiva cristã, a principal função da política era proporcionar o bem-estar e evitar a privação na casa e na família. Esta responsabilidade cristã da política visava enquadrar o espaço público à luz de uma soteriologia que evitasse o pecado. Para Arendt, o ideal cristão e as teses de Marx partiam de um aspecto comum: a crença que a política não era omnipotente. Para os cristãos, a política era um mal necessário, mas sempre subordinado à teologia. Para Marx, o Estado e a política devem ser extintos sendo substituídos por um modelo [ficção] comunista. A decadência da esfera pública da polis não foi a consequência directa do cristianismo e do marxismo, foi antes o facto da economia doméstica se transformar em economia política do Estado nação. A decadência da esfera pública foi acompanhada da ameaça da destruição da esfera privada nomeadamente da propriedade. Arendt critica o equívoco da relação entre, por um lado, a riqueza e, por outro lado, a pobreza enquanto inexistência de propriedade. De facto, o surgimento de sociedades ricas, mas em que não existe propriedade privada demonstra o equívoco da associação entre propriedade e riqueza (6). Desde a Antiguidade, ser proprietário significava que o indivíduo possuía uma parte do mundo e chefiava uma família. Ou seja, o indivíduo tinha o controlo sobre uma parte da população e do território, elementos estes que constituíam no seu conjunto juntamente com os outros elementos do Estado (o Poder, os órgãos do Estado e a lei) o fundamento do corpo político. Ser privado da propriedade significava ficar impedido de garantir a subsistência do lar e da família (perdendo igualmente a cidadania e a protecção da lei), enquanto ser pobre não implicava necessariamente a perda da propriedade e da cidadania. Na polis grega, a lei pública regulava a liberdade dos cidadãos na sua acção poli tica separando-se da lei natural do mais forte confinada à família e à casa. Arendt refere que a lei da polis pressupunha a aplicação da acção política a uma espécie de muro separador entre o terreno comum da política e o processo biológico do oikos e não ao acto de legislar nem a um conjunto de proibições. Ou seja, a lei era a lei dos cidadãos da polis e nunca a lei da casa e da família. Neste contexto, a propriedade assegurava um lugar próprio de subjectividade individual e de domínio da necessidade natural, um lado oculto sem o qual o homem deixaria de ser verdadeiramente humano.

A existência da riqueza privada constituía um meio pelo qual o homem não estava dependente de um senhor, mas podia ele próprio empenhar-se na sua subsistência. A riqueza não significava apenas a acumulação de bens materiais, mas um processo capaz de evitar a pobreza e a escravidão libertando o homem do labor e oferecendo-lhe a possibilidade de superar a necessidade natural, pois só assim seria possível alcançar a plena liberdade na acção política. Contudo, quando o homem procurava ampliar a propriedade, para além da subsistência, sacrificava a disponibilidade necessária para a cidadania na polis.

Até à era moderna, a propriedade era um lugar sagrado. A riqueza da propriedade agrícola estava associada à protecção dos deuses. Porém, na modernidade a propriedade sagrada perdeu o carácter sagrado sendo expropriada em favor de uma burguesia e aristocracia em contínua ascensão. Esta situação explica-se, segundo Arendt, porque a propriedade privada era contrária à acumulação de riqueza desejada pela classe capitalista. Arendt termina a temática em torno de esfera privada com a tese de Proudhon, segundo a qual a propriedade é um roubo. Para Proudhon, a propriedade privada, na medida em que impede a entreajuda e a produtividade social existente na acumulação de riqueza por parte da classe trabalhadora, deve ser abolida e substituída por um sistema de propriedade cooperativista.

7 O social e o privado

A Modernidade acentuou a promoção do social. A esfera pública verdadeiro instrumento de sociabilidade passa a proteger a esfera privada da riqueza e da propriedade da casa. Arendt salienta que, para Bodin, o Rei deveria garantir a propriedade dos seus súbditos. Arendt questiona as concepções modernas da propriedade referindo que a riqueza inerente à propriedade destina-se unicamente ao uso e ao consumo. Deste modo, quando a riqueza se transforma na acumulação de capital o privado passa a ter supremacia e invade o domínio político. O governo moderno, que protegia a esfera privada da luta de todos contra todos, era a única instância considerada comum. Mas no fundo, o Estado protegia sempre os interesses privados dos mais fortes tal como diagnosticou Marx [no célebre Manifesto do Partido Comunista]. Arendt vai mais longe e afirma que mais grave do que isso foram os seguintes factores: a extinção da diferença entre a esfera privada e a esfera pública tal como existia no mundo grego; a transferência das preocupações privadas para a política; a valorização da esfera privada como fenómeno matricialmente social.

Na mutação da esfera privada, a propriedade adquire um significado móvel podendo ser trocada e consumida por outros, isto é, o social justifica a perda do poder privado sobre os objectos (7 ). Arendt salienta a concepção revolucionária de Marx sobre a propriedade. Para Marx, a propriedade pertence verdadeiramente àqueles que realizam a força de trabalho - os proletários. Desde que a riqueza se tornou coisa pública a propriedade privada, lugar tangível terreno de uma pessoa, passou a estar ameaçada. Locke constatou o perigo do desaparecimento da propriedade privada e defendeu que sem a propriedade privada de nada serve o comum. O desaparecimento da esfera privada e a sua substituição pela omnipresença do social corresponde à eliminação dos aspectos comuns (não-privativos) da esfera privada. Por um lado, as posses privadas da subsistência natural inerentes à família e à casa que usamos e consumimos deixam de ser necessárias ao mundo comum. E, por outro lado, a propriedade privada deixa de ser um refúgio seguro contra a publicidade do espaço público. Ora, para Arendt respeitar a propriedade privada é o único meio de assegurar um lugar próprio e seguro. Os corpos políticos pré-modernos estavam conscientes destas características não-privativas da esfera privada. Mas, limitaram-se a proteger a separação entre a posse privada e a política comum tornando-se incapazes de proteger a esfera privada da expansão crescente do social. Por outro lado, as modernas teorias políticas e económicas defendem que o governo deve proteger a propriedade privada favorecendo a acumulação de riqueza. Arendt critica a ingerência do espaço público político na esfera privada denotando que as medidas do socialismo e do comunismo acentuam ainda mais a decadência propriedade privada e da própria esfera privada.

Finalmente, Arendt salienta que desde os primórdios da história até à actualidade o homem tenha procurado esconder as necessidades corporais da subsistência na esfera privada. Escravos, mulheres crianças e trabalhadores sempre foram marginalizados e mantidos fora do espaço público. Porém, os movimentos da emancipação dos trabalhadores (por exemplo: o sindicalismo) e das mulheres (por exemplo: os movimentos feministas) pertencem a um momento revolucionário em que as funções corporais e osinteresses naturais pelo mundo material passama ser divulgados publicamente. Neste sentido, Arendt realça o facto dos vestígiosrestritos da intimidade privada (por exemplo:alimentação, procriação, trabalho do animallaborans), modernamente transformados eminteresse público, continuem a estar dependentesdas necessidades da vida corporal.


8 A localização das actividades humanas

As actividades humanas localizam-se, segundoArendt, em dois planos: o plano da vida activa que compreende o labor (trabalho para a subsistência biológica), work (trabalho enquanto produção técnica) e acção (confronto opinativo mediante a palavra e apersuasão na esfera pública da política; o plano da vida contemplativa (reflexão religiosa e filosófica do espírito). Neste último ponto da temática de esfera privada e da esfera pública, Arendt escolhe o exemplo da bondade cristã para demonstrar que a esfera privada não se ocupa somente do necessário à subsistência biológica, mas pode adoptar uma perspectiva teológica que defende o amor ao próximo como garantia escatológica. Mas tal como afirma a referida autora, se por um lado, a bondade cristã é praticada individualmente por um cristão em relação a outro, também é certo que ela não encontra refúgio na esfera privada íntima, pois sempre que é divulgada publicamente desaparece o mobile de uma bondade desinteressada por amor ao próximo. Deste modo, a teologia cristã defende que os indivíduos ao agirem por bondade devem fazê-lo sem testemunhas num espírito de humildade evangélica sobre-humana (8). Mas, por ocultar as suas actividades o homem foge do espaço público da participação política. Maquiavel, contrariamente à teologia cristã, defendeu que a bondade pode destruir a esfera política. A glória está na base do poder político. A política versa sobre as relações de poder e nunca sobre a maldade ou bondade das acções humanas, pois os homens agem sempre na. busca da glória e são violentos por natureza. Arendt conclui sublinhando que Maquiavel critica também a corrupção da Igreja proveniente desta se ocupar de assuntos profanos. E mesmo a Reforma é perigosa, porque os novos movimentos religiosos protestantes ao defenderem uma resistência passiva ao mal legitimam a liberdade absoluta dos governantes.

9 Bibliografia

AAVV (1988). Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica.
ARENDT, Hanna (1997). A Condição Humana, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 8a edição revista.

Notas do Autor
6 - Arendt está a pensar, seguramente, nos regimes socialistas e comunistas. No entanto, embora nesses regimes os cidadãos participem na "renda anual da sociedade" não existindo propriedade privada é incerto que possam ser qualificados como sociedades ricas comparativamente aos regimes capitalistas. Só uma análise económica, sociológica e estatística estrutural do tecido produtivo desses regimes poderia avaliar a existência de sociedades ricas.
7 - Este fenómeno coincide com o desenvolvimento do comércio, da burguesia, bem como com o advento da Revolução Industrial.
8 - "Guardai-vos de fazer as vossas boas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles. De contrário, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está nos Céus. Quando, pois, deres esmola, não toquem trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim de serem louvados pelos homens. (Mt 6, 1-2).

Publicado em www.bocc.ubi.pt
Extraído do site BuscaLegis

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