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14 outubro 2009

O PÚBLICO E O PRIVADO EM HANNAH ARENDT-2


Parte 2

Marco António Antunes





3 O social e o político

Hannah Arendt salienta que existe uma relação mútua entre a acção humana e vida em comum na comunidade ou sociedade. Este facto, é um dos motivos da incorrecta tradução da expressão animal político, formulada por Aristóteles, como animal social. Para Aristóteles, o homem é um animal político. Todavia, os tradutores e comentadores de Aristóteles, desde Séneca até S. Tomás de Aquino, traduziram incorrectamente animal político por animal social. Esta substituição do político pelo social é a conseqüência da concepção latina da sociedade como uma sociedade da espécie humana, na qual os homens se associam para viver juntos em função de fins específicos (por exemplo: para dominar os outros ou para cometer um crime). Deste modo, existe uma diferença substancial entre a polis dos gregos como espaço de afirmação da política, através da liberdade e igualdade dos cidadãos, e a sociedade dos romanos como um espaço de dominação do poder imperial sobre os cidadãos e restantes súbditos do Império Romano.

Arendt salienta as posições de Platão e Aristóteles, para os quais o termo social significava apenas a vida em comum das espécies animais, enquanto limitação da vida biológica. A sociedade era uma característica biológica do animal humano e de outras espécies animais. A política tanto para Platão, como para Aristóteles era a única característica essencialmente humana. Para Arendt, o animal político de Aristóteles significava somente a existência de uma característica matricial e única da condição humana, que consistia na acção política dos cidadãos da polis num espaço de liberdade e igualdade. Mediante a política, o homem tinha a possibilidade de escapar à organização instintiva e biológica da casa e da família.

Paralelamente à incorrecta tradução de animal político como animal social, os latinos traduziram erradamente a noção de homem como um ser vivo dotado de fala, formulada também por Aristóteles, como animal racional. Para Arendt, Aristóteles queria apenas indicar não a faculdade racional de fala, mas a capacidade dos cidadãos da polis confrontarem opiniões através do discurso. Contrariamente, todos os que viviam fora da polis (mulheres, crianças, escravos e bárbaros) estavam impedidos não da faculdade de falar, mas do poder de discursarem publicamente uns sobre os outros confrontando opiniões.

Para Arendt, a confusão entre o social e o político decorre da moderna concepção da sociedade, a qual encara a política como um espaço de regulação da esfera privada. O Estado nacional tende a regular a vida doméstica mediante uma "economia nacional", "economia social" ou "administração doméstica colectiva". Actualmente, a economia política do Estado nação efectiva-se no controlo do poder estatal sobre a família e a administração doméstica do lar. Trata-se de um processo contraditório, pois originariamente a economia pertencia ao domínio do chefe da família e a política à cidadania na polis.

A esfera privada da família, fenômeno pré-político na Grécia Antiga, transformou-se num "interesse colectivo" controlado pelo monopólio de um Estado soberano, consequentemente a esfera privada e a esfera pública correlacionam-se reciprocamente. Na época contemporânea, Marx recebeu dos modernos economistas políticos a ideia que a política é uma função da vida social e o pensamento, o discurso e acção são superestruturas dependentes da infra-estrutura económica. Para Arendt, esta situação anula a dualidade clássica entre esfera privada e esfera pública.

Porém, durante a Idade Média, ainda exis tia uma oposição, embora enfraquecida e com uma localização diferente, entre a esfera privada do social e a esfera pública do político. Após a queda do Império Romano, o poder religioso da Igreja Católica fornecia um substituto para a cidadania anteriormente outorgada pelo governo municipal. Mas por mais "profana"que se tornasse a Igreja Católica existia uma comunidade de crentes unidos pela fé em Cristo. O sagrado monopolizava a vida social e a vida política. Com o feudalismo, verifica-se a absorção da esfera privada dos vilãos e dos servos da gleba pelo senhor feudal que centraliza o poder na esfera pública do feudo (3) (que incluía o castelo, a vila e as propriedades dos vilãos). O senhor feudal administrava a justiça aplicando as leis na esfera privada e na esfera pública. Comparativamente, o chefe de família da Grécia Antiga só conhecia a lei e a justiça na polis. Na esfera privada da casa e da família, isto é, nas primeiras formas de efectivação do social, o chefe da família grega podia dominar os escravos, a mulher e as crianças sem qualquer limite judicial ou legal.

A transferência dos moldes familiares (e primeiramente sociais) da esfera privada para a esfera pública institucional manifesta-se nas corporações profissionais da Idade Média - os guilds, confréries e compagnons - e mesmo nas primeiras companhias comerciais onde estava presente, desde a origem etimológica, a ideia de uma partilha de bens materiais privados (tais como o pão e o vinho) no domínio público. Na Idade Média, o significado da expressão "bem comum" não estava ligado à política. Mas apenas à reciprocidade de interesses materiais e espirituais entre os vários indivíduos. Estes só podiam conservar a sua individualidade privada quando um deles se encarregava de garantir os interesses partilhados pela comunidade. A existência desta situação explica-se devido a uma mentalidade cristã, que reconhecia o bem comum extensível à vida privada e à vida pública (4). Deste modo, segundo Arendt o pensamento medieval, que concebia a política e a família subordinados ao fim divino, foi incapaz de compreender o abismo originário entre a esfera privada e a esfera pública.

Arendt assegura que Maquiavel foi o único autor pós-clássico que reconheceu a separação entre a esfera privada e a esfera pública. Em O Príncipe, Maquiavel defende, tal como os gregos, a coragem como uma qualidade política essencial. E procura restaurar a identidade clássica da política através da figura do Condottieri (mercenário), o qual passa da privacidade das circunstâncias naturais existentes em todos os indivíduos para o domínio público do Principado.

Notas do Autor:

3 - Habermas (1984: 13-41) salienta que publicar significava requisitar para o senhor.
4 - Nas primeiras comunidades cristãs "Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um. (...)"(Act. 2, 44-45

Publicado em www.bocc.ubi.pt
Extraído do site BuscaLegis

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