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15 outubro 2009

O PÚBLICO E O PRIVADO EM HANNAH ARENDT - 3


Parte 3

Marco António Antunes





4 A promoção do social


Para os gregos, não existia um conceito unívoco de social. O social situava-se tanto na esfera privada das relações da casa e da família, como na esfera da participação política. Arendt assinala um factor fundamental que contribuiu para a promoção do social: a subordinação da esfera pública aos interesses privados dos indivíduos. Consequentemente, os meios deste processo foram: o desenvolvimento das actividades artísticas privadas (romance, a música e a poesia); a estereotipização do comportamento no conformismo da sociedade (vontade geral, convenções sociais dos salões, burocracia, economia, estatística, behaviorismo, cientismo, "mão invisível", multidão numerosa, doutrinas socialistas e comunistas enquanto coacção da comunidade totalitária, sociedade de massas, promoção do labor a interesse público). Arendt critica a estereotipização conformista dos comportamentos sociais, que negam a espontaneidade da opinião. Esta tendência verifica-se desde o século XVIII até à actualidade. O conformismo da sociedade adopta um duplo posicionamento: o político constitui o receptáculo dos interesses domésticos e nas relações sociais desaparece a pluralidade da discussão política em virtude de uma vontade geral normalizada. Ora, para Arendt a política e a história são o campo da multiplicidade de acções possíveis devendo o homem abolir o conformismo e exercitar uma vida activa pluralista.


A passagem das preocupações da esfera privada da família e da casa para o domínio da política anulou a oposição clássica entre a polis e o oikos. A esfera privada actual teve a sua origem nos últimos períodos do Império Romano. Numa época em que devido à desagregação do Império os cidadãos procuravam afirmar os seus direitos privados (nomeadamente o direito de propriedade) no espaço público como resposta aos ataques dos bárbaros. Na modernidade, o privado opunha-se à esfera da sociabilidade e da esfera política situando-se no domínio do individualismo. No século XVIII, Rousseau defendeu que os sentimentos privados deveriam ser preservados da esfera comum do social. O desenvolvimento das actividades artísticas privadas nomeadamente a música, a poesia e o romance aprofundaram a relação entre a sociabilidade e a individualidade. Os românticos, Rousseau e Tocqueville reagiram contra a tentativa da sociedade nivelar o individualismo negando a discussão crítica, pois no fundo o intimo privado e a sociedade constituíam formas de valorização da subjectividade individual. Na perspectiva de Rousseau, os homens agem sempre numa vontade geral que unifica a opinião pública, mesmo que inicialmente tenham opiniões divergentes. Antes da desintegração da família nuclear, que ocorreu principalmente a partir do século XVIII, o chefe da família exercia um poder despótico controlando os membros da família e do lar evitando a desunião e afirmando uma opinião única detentora do interesse comum. O modelo de governo do chefe da família foi adoptado na esfera política pelo poder despótico do Rei. Mas posteriormente com o liberalismo [e os ideais da Revolução Francesa] o poder político transforma-se numa "espécie de governo de ninguém", isto é, numa vontade geral consubstanciada no espaço público burguês dos salões, cafés e clubes, bem como na democracia parlamentar. Neste contexto, a burocracia assume um controlo despótico nas relações sociais uniformizando o comportamento humano perante a administração pública. Arendt salienta implicitamente que este "governo de ninguém "significa apenas uma vontade geral podendo conduzir a um poder tirânico na repressão das minorias. Deste modo, não existe ausência de governo, mas um poder desligado da pessoa do Rei e concentrado numa vontade geral unitária. Esta última aparece efectivada inicialmente na tentativa de democracia directa (no período da Revolução Francesa) e posteriormente na democracia representativa. Nesta "normalização"da conduta social, Rousseau defende a existência de convenções predefinidas nos salões da alta sociedade do século XVIII.


Do mesmo modo, também na sociedade de classes do século XIX e mais recentemente no século XX com a sociedade de massas a acção individual de afirmação de uma racionalidade discursiva foi absorvida por uma sociedade unitária, que uniformizou o privado e o público através da supremacia do social. Contrariamente ao modelo grego de oposição entre o oikos e a polis defendido por Arendt, a política passou a preocupar-se com a esfera privada, ou seja, o social privado adquiriu um estatuto de acção política. A economia, anteriormente ligada ao lar transformou-se em economia política doméstica ao serviço do conformismo privado. A estatística, instrumento da nova economia tende, a reduzir o homem a um produto quantitativo remetendo a história para um conjunto de leis automáticas objectivas que não podem ser contrariadas pela pluralidade de opiniões subjectivas. O behaviorismo reduz a actividade humana a estímulos e respostas condicionados previamente definidos. O cientismo da sociedade, que está na base da economia matemática, do behaviorismo, da estatística e mesmo da burocracia, pressupõe uma uniformização da rotina do quotidiano e a transformação das ciências sociais em "ciências do comportamento" [ matemático].


Arendt critica o despotismo das multidões numerosas defendendo o modelo político da polis grega em que a acção política era individual e estava restrita aos cidadãos. Neste ponto, podemos colocar uma questão: Como só os cidadãos tinham acesso à vida política não haveria o perigo de uma elite de eruditos restringir a liberdade de discussão dos outros indivíduos? Arendt afirma que maior população significa maior probabilidade do social monopolizar a totalidade da esfera pública. Mas se aceitarmos a legitimidade de uma classe política restrita não existirá a possibilidade de um totalitarismo sofisticado da minoria da classe dirigente, uma espécie de meta-poder desligado dos problemas reais dos indivíduos?


Os economistas liberais defenderam que a base da economia seria uma harmonia de interesses na comunidade, uma "mão invisível" que colectivamente regularia os interesses individuais. Contrariamente, Marx afirmou que a sociedade é a história da luta de classes e que só na esfera comunista o homem seria igual ao seu semelhante completamente livre e sem Estado. Para Arendt, embora Marx na revolução do proletariado recuse o conformismo, a sociedade comunista recai num novo conformismo em que a liberdade individual é absorvida pela vontade da comunidade. Na perspectiva de Arendt, Marx errou ao prever que somente uma revolução poderia provocar a decadência do Estado e que a sociedade comunista significaria um reino de liberdade. Ora para Arendt, o Estado enquanto espaço político deve resistir à uniformização do social pelos interesses privados e o "reino de liberdade" somente pode existir no confronto das opiniões públicas.


Arendt lamenta que actualmente a conduta social da sociedade de massas, no seu esforço de promover o político e o privado a uma uniformização do comportamento consumista, tenha conduzido ao conformismo do social negando a pluralidade da discussão. De facto, na sociedade de massas o homem garante a sua sobrevivência no despotismo de uma única opinião desprovida da discussão racional pela acção política da palavra e da persuasão. Para Arendt, esta situação pode conduzir ao totalitarismo, à destruição da política e da própria humanidade. A sociedade de massas é guiada pela actividade do labor. Na sociedade massas, o animal laborans adquiriu o estatuto de assalariado (ou em termos marxistas proletário), procura apenas a subsistência da sua vida e da sua família pelo mero consumo, interessa-se pelo trabalho material naturalmente admitido longe de qualquer produção técnica, acção política ou vida contemplativa. Deste modo, a promoção social pelo labor conduziu o espaço público da política a um processo de afirmação da sobrevivência biológica. Os condicionalismos da vida orgânica transformaram-se em interesse social e político. A divisão do trabalho, enquanto multiplicidade da manipulação, foi o modo de efectivação da vida orgânica do animal laborans, isto é, o trabalho adquiriu excelência (uma virtude classicamente ligada à esfera política) tal como se verifica nas teorias marxistas e leninistas que valorizam a condição laboral do proletariado, e consequentemente a sua produção material, como matriz do interesse colectivo. Ora, para Arendt a excelência apenas pode existir na acção política através do confronto de opiniões. A promoção do social incorporou a excelência na esfera privada do labor. A promoção do labor a coisa pública libertou o trabalho da sobrevivência biológica e incorporou-o na práxis política. Os factores que favoreceram a promoção do labor a interesse da sociedade e da esfera pública foram, sobretudo, os seguintes:


– a desagregação entre as capacidades técnicas do trabalho e o desenvolvimento humanístico (o animal laborans é incapaz de reconhecer o valor humanístico da política como meio de excelência e autopromove o valor do trabalho como meio de sobrevivência biológica capaz de atingir a esfera pública);


– a subordinação do labor às explicações das ciências físicas e consequentemente a separação entre ciências físicas e ciências sociais.


5 A esfera pública: o comum


O termo "público" remete para dois fenômenos distintos embora correlacionados. Em primeiro lugar "público" centra-se na ideia de acessibilidade: tudo o que vem a público está acessível a todos: pode ser visto e ouvido por todos. Quando divulgamos um pensamento ou um sentimento através de uma estória, bem como quando divulgamos experiências artísticas individuais o privado torna-se de acesso público. A garantia deste fenômeno depende de uma condição essencial: os outros têm de partilhar a realidade do mundo e de nós mesmos. No entanto, para Arendt há sentimentos que não podem ser inteiramente divulgados aos outros no espaço público: a dor física e o amor. O encantamento por "pequenas coisas"pode parecer insignificante, mas constitui o sentimento de um povo em que o bom senso pelos pequenos objectos contraria o processo de industrialização. Em segundo lugar, o termo "público"centra-se na ideia de comum. A realidade do mundo tem um bem comum ou interesse comum do artefacto e dos negócios humanos, na medida em que é partilhado por indivíduos que se relacionam entre si. Com a sociedade de massas, o homem perdeu a capacidade de viver em comum limitando-se ao mero consumo.


Arendt assinala que a filosofia cristã do vínculo da caridade tematizado por S. Agostinho a partir da mensagem de Cristo, é o único princípio capaz de unir as pessoas criando um mundo extraterreno que aceita o amor ao próximo como forma de evitar a condenação do mundo. Para Arendt, as comunidades cristãs foram incapazes de criar uma esfera política própria. Contudo, nas ordens monásticas a esfera pública manifestava-se na adopção comum de regulamentos [por exemplo: a regra de S.Bento] que proibiam a excelência e o orgulho defendendo a humildade da acção evangélica. A negação da política como fenómeno terreno que não durará eternamente está subjacente à concepção cristã do mundo. Para os cristãos, a queda do Império Romano foi a constatação de que toda a política desligada da submissão à omnipotência cristã é efémera. A recusa cristã do mundo terreno produziu na actualidade um efeito inverso: verifica-se a intensificação do materialismo e a conseqüente formação de uma sociedade das massas consumistas desligadas do espírito da comunhão.


Arendt defende, contra o consumo da sociedade de massas, uma comunhão dos interesses individuais pela política, que transcenda o espaço intergeracional e se afirme de forma estrutural como fenómeno metamortal. Neste sentido, Arendt ultrapassa a salvação da alma como bem comum dos cristãos salientando a função fundamental da acção humana (política) que sobrevive à história quando se manifesta como presença no espaço público. Na Antiguidade, os homens ingressavam na vida pública através da acção política para alcançarem notoriedade e, assim, escaparem ao anonimato da vida natural da esfera privada. Esta garantia de notoriedade da esfera política conduzia à intenção de ser lembrado para além da morte. A laicização da esfera pública (e consequente perda da preocupação metafísica) é um indício significativo do desaparecimento da esfera pública clássica (5). De facto, apesar da separação entre a tradição no domínio da religião e a política no domínio do interesse público, tanto a polis grega, como a res publica dos romanos eram herdeiras de uma concepção metafísica, que consagrava a imortalidade da acção como a maior prova de valor político.


Arendt salienta a opinião de Adam Smith segundo a qual a admiração pública que se efectiva na vaidade consumista e a posterior recompensa monetária são intermutáveis possuindo a mesma natureza: ambos são processos subjectivos que tendem a tornar objectiva a esfera pública através de formação de status. Esta objectividade do status manifesta-se no poder do dinheiro como satisfação das necessidades individuais prontamente transformadas em assunto público. Mas, para Arendt nunca a sociedade de massas empenhada no mero consumo e na subjectividade dos interesses privados, bem como a esfera privada da família e da casa poderá substituir a pluralidade de opiniões na esfera pública da política. A esfera pública do comum não resulta da igualdade da natureza humana, mas fundamentalmente de um objecto comum - a política - que interessa a todos os indivíduos ainda que sob perspectivas diferentes. Assim se compreende a pluralidade de opiniões no espaço político. Quando o interesse comum da política se transforma no interesse único privado do regime tirânico e da sociedade de massas surge a destruição da comunhão na esfera pública criando-se as condições para o aparecimento do totalitarismo. Especificamente, a sociedade massas destrói a esfera privada e a esfera pública: impede a pluralidade de opiniões num espaço público comum; exclui os homens da casa e da família enquanto refúgios perante o mundo.


Notas do Autor:


5 - Para Arendt, alguns filósofos e os defensores da vida contemplativa são os únicos que ainda procuram
reabilitar a perspectiva metafísica da imortalidade no espaço público.


Publicado em www.bocc.ubi.pt
Extraído do site BuscaLegis

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