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28 outubro 2009

A PROVA DINÂMICA NO DIREITO DE FAMÍLIA – PARTE 3-Final


Parte 3- Final


José Carlos Teixeira Giorgis

Desembargador Aposentado, RS; Professor; Especialista em Direito Processual Civil; Especialista em Ética e Bioética; Mestrando.




6 A Pessoa Vulnerável




Um forte surto de meningite na Nigéria proporcionou experimento de droga fabricada por conhecida multinacional farmacêutica, ainda não aprovado em seu país de origem, o que levou à morte de onze crianças, enquanto outras duzentas ficaram surdas, cegas ou aleijadas; assim também acontecera com indivíduos saudáveis, recrutados na Estônia ou entre refugiados daquele país, levados para clínica suíça em troca de dólares e empregados como cobaias em variadas análises; ou negros americanos tuberculosos tratados com placebos apenas para testar sua resistência à doença, e que sucumbiram.



O uso de seres humanos em pesquisas de produtos fabricados por poderosas empresas é fato recorrente, explorado pelo cinema e pela literatura; mas sofre forte assédio contemporâneo dos órgãos sanitários e de entidades internacionais, em proteção aos indivíduos desprotegidos, não só pela conduta aética que comanda tais ensaios, mas em proteção da dignidade dos sujeitos envolvidos.



Assim, recentes diretrizes de organizações médicas exigem uma justificativa especial para convidar pessoas vulneráveis a servir como sujeitos das pesquisas, e, caso escolhidos, devem ser aplicados recursos de proteção de seus direitos e bem-estar.



Vulnerabilidade é uma palavra de origem latina, derivando de vulnus(eris), que significa "ferida", sendo irredutivelmente definida como suscetibilidade de ser ferido, significação etimológico-conceitual, originária e radical que se mantém em todas as evocações do termo, na linguagem corrente ou especializada, tendo surgido por vez primeira no Relatório Belmont; nele, a classificação se estendia tanto às pessoas singulares como populações, querendo dirigir-se aos que se encontram numa situação de exposição agravada e que possam vir a ser feridas, isto é, serem prejudicadas nos seus interesses pelos interesses de outrem no âmbito das pesquisas biomédicas; e, mais especificamente, nas experimentações humanas 35.



De acordo com a filosofia de Lévinas, toda subjetividade é uma relação com o outro, na dependência ao outro que o faz ser; a subjetividade é, pois, originária e irredutivelmente dependência, exposição ao outro, e, assim, vulnerabilidade; isso não acontece apenas no plano ontológico, como sua identidade substancial, mas no plano ético, como apelo a uma relação não violenta entre o eu e o outro, na face a face, onde o eu, na sua vulnerabilidade, apresenta-se como resposta não violenta à eleição do outro que o faz ser 36.



Lévinas aponta para o transcender-se para o outro, numa relação imperiosa que denomina alteridade e o faz sem privilegiar o universo utópico kantiano, mas o aqui e agora da vida comunitária, unindo transcendência com cotidianidade, razão e prática; destarte, a relação com o outro seria efetuada no face a face e o sentimento de alteridade não mais gerado pela forma ou natureza dos seres, mas revelado pela epifania do rosto do outro, assim, a missão de cada ser humano não seria ser, mas ser para, onde o modelo um-para-outro quebra a hegemonia do ser egóico e propõe a construção de uma sociedade humanizada pela fraternidade 37.



No mesmo sentido, Hans Jonas chama atenção para a relevância filosófica da vulnerabilidade que entende como caráter perecível de todo o existente: sendo o existente, todo o ser perecível, isto é, finito, mortal, e assim vulnerável, situando-se seu reflexo apenas no plano ético, pois a vulnerabilidade apela para um dever, ou uma resposta ética, à responsabilidade do outro perante a ameaça de perecimento do existente; essa meditação, para o filósofo, não se reduz apenas às relações interpessoais, mas a todos os viventes, num irrecusável alargamento ao plano animal, vegetal e ambiental; mas a dimensão é mais específica aos homens que mais podem e mais devem, pelo que, apesar de toda a natureza ser vulnerável, é apenas a pessoa humana que tem poder de destruir todo o existente, e a quem compete a responsabilidade de zelar pela vulnerabilidade, de responder de modo proporcional ao seu poder, de cumprir o seu dever de solicitude face à ameaça; constitutiva do ser humano, a vulnerabilidade é irredutível e inalienável; a vulnerabilidade exprime, assim, o modo de ser do homem, a sua humanidade, e exige um modo específico de agir na resposta não violenta de cada um ao outro, uma ação responsável e solidária, instaurando uma ética de fundamentação antropológica, eis que o modo de agir decorre do modo como somos e como queremos ser; e a nossa comum vulnerabilidade instaura um sentido universal do dever na ação humana 38.



Denominam-se pessoas vulneráveis, então, os seres de relativa ou absoluta incapacidade de proteger seus proveitos ou que não tenham poder, inteligência, educação, recursos, forças ou outros atributos necessários a garantir suas conveniências.



Desta forma, a principal característica da vulnerabilidade é a liberdade limitada para consentir ou recusar-se a participar da experiência, aí se incluindo os que observam alguma subordinação, como os militares e os estudantes; pessoas idosas, com reconhecida senilidade, residentes em asilos ou abrigos; os beneficiários da previdência ou da assistência social; as pessoas pobres e desempregadas; os pacientes de salas de emergência; alguns grupos étnicos e raciais minoritários; os sem-tetos, nômades, refugiados ou pessoas deslocadas de seu meio; os prisioneiros e as comunidades ignorantes dos conceitos médicos modernos.



Ou seja, todos os que podem ser cooptados pela sedução financeira ou instigação da sobrevivência fácil.



Outros protocolos acrescentam, também, a capacidade inadequada para discernir a proposta em termos éticos ou científicos; a infraestrutura local deficiente; o pessoal não treinado; a reduzida capacidade técnica para realizar a pesquisa; a limitada disponibilidade dos cuidados de saúde e tratamento fora do ambiente onde se realiza a atividade; ou a ausência de uma efetiva supervisão do exame.



A maior ou menor vulnerabilidade das pessoas ou países se deduzirá da presença numérica destes elementos no caso concreto; motivo por que os bioeticistas se batem pela proteção à saúde e a oferta de cuidados adequados e coletivos, por uma melhor qualidade de vida e a concentração de recursos em políticas que permitam expectativa de vida e respeito.



Hoje, perspectivada em função de uma relação social, cultural, política e econômica desigual e, como consequência de uma relação de desigualdade, a vulnerabilidade pode manifestar-se de modo individual ou coletivo, entre indivíduos, entre diferentes grupos, culturas ou etnias, ou mesmo entre países; e proteger a vulnerabilidade nas relações assimétricas é uma evidência do Direito, eis que basicamente institucionalizado na forma de proteger os seres humanos vulneráveis, como no Direito Civil na proteção de menores e incapazes; ou no Direito Penal com respeito à proteção das pessoas que por condição ou circunstâncias são ou estão vulneráveis ou à penalização das intervenções arbitrárias não consentidas 39.



Portanto, a vulnerabilidade manifesta uma relação assimétrica entre o fraco e o forte, o que demanda um compromisso eticamente adequado de que o mais poderoso proteja o mais fraco 40.



A ideia de pessoa vulnerável transcendeu ao âmbito médico, invadiu outros campos do saber e hoje ilumina alguns ordenamentos jurídicos, como ocorre nas relações de consumo ou familiares, os movimentos de proteção dos direitos fundamentais, as diferenças de gênero e sexo, setores onde a hipossuficiência é fator frequente.



Ora, consabido que nas refregas judiciais envolvendo questões familiares é notória a hipossuficiência de uma das partes em relação à outra, o que a faz vulnerável ao confronto com o outro litigante, mais forte e melhor apetrechado.



A vulnerabilidade de menores, mulheres e idosos na pugna forense é evidente em muitos casos, o que faz prever uma decisão pouco equânime e até injusta, exigindo uma recomposição das forças pela intervenção judicial, e uso da teoria dinâmica da prova, como expresso antes.



Também é imperioso naqueles casos, em genuflexão à transdisciplinaridade dos saberes contemporâneos, a aplicação simétrica do conceito da vulnerabilidade tão apreciada na esfera biomédica.



7 Conclusão



Há um consenso entre os civilistas de que o direito de família é uma das disciplinas jurídicas que mais sofreu mutações nestes últimos tempos; e isso porque os fatos que regulamenta ficaram insubmissos, logo buscam a alforria legal e acomodação no ordenamento; e em seguida, mal ingressados na aceitação e bonomia, de novo se aceleram, enfeitando-se de novidades que obrigam outras tutelas, e assim para diante.



Ou seja, embora a prudência que sempre atrasa a vigência de uma regra jurídica, o atropelo voraz dos acontecimentos e a mudança quase cotidiana dos costumes familiares põem em discussão outros paradigmas que tornam dinâmico esse ramo da erudição privada.



Também porque a família é o oceano onde navegam as caravelas dos afetos, mas porto onde desembarcam os golpes da decepção e da crueldade; pois o amor também se desarranja, desafeiçoa-se, fica impiedoso; e suas feridas exalam desilusão e ressentimentos, afetando a melodia da congruência do tecido humano.



Ao desvelar frequências sonoras que sintonizavam no final do século passado com as portas de novos horizontes instigantes, respeitável doutrina alertava que a técnica engessada das fórmulas acabadas não transforma o tema em algo perdido no ar quando ensinar é percorrer a geografia do construir; não se devendo conviver com atitude de indiferença ou renúncia a uma posição avançada na inovação e mesmo na revisão e superação dos conceitos, mas contribuir abertamente para fomentar questionamentos e fazer brotar uma inquietude que estimule o estudo e a pesquisa comprometidos com seu tempo e seus dilemas 41.



Há bem pouco, a família era objeto das piores imputações; uma juventude sôfrega de liberdade a tinha como instância alienante, os rebeldes denunciavam sua estrutura de dependência concebida nos moldes feudais, associando-a habitualmente aos grilhões da propriedade e da dominação repressiva; houve uma rotação completa nisso tudo, pois na escala de valores a família deixou de ser o circuito de onde se procurava escapar mais cedo, eis que os jovens, agora, ficam anos morando com os pais; e em geral os adolescentes manifestam perfeito entendimento com os pais; é a única instituição pela qual a maioria dos europeus afirma estar pronta para sacrificar, se possível, a própria vida 42.



O jurista não se deve acanhar em enfrentar os desafios que a modernidade que lhe propõe, nem claudicar nos processos obstativos criados para escurecer sua visão periférica, identificando encruzilhadas e nós; e como historiador ponderar a seriedade de suas fontes primárias, mergulhando com seu descortino nas interrogações do problema, como o minerador que busca com compulsão a pedra preciosa.



Não há óbice legal ao uso da teoria da prova dinâmica no âmbito das questões de família, estando a intervenção judicial para equacionar o debate suportada por diversos princípios e normas contidos na legislação processual.



É auspiciosa a notícia de que já tramita no Congresso Nacional projeto de lei que acrescenta um parágrafo ao art. 333 do CPC, conferindo atividade ao julgador a distribuição equânime da prova, em respeito à teoria das cargas probatórias dinâmicas 43.

Notas do Autor:

35 - NEVES, M. Patrão. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. In: Revista Brasileira de Bioética. Brasília: Sociedade Brasileira de Bioética, 2006. v. 2. n. 2, p. 158.
36 - Idem, p. 163.
37 - SIQUEIRA, José Eduardo. Ensaio sobre a vulnerabilidade humana. In: Revista Brasileira de Bioética. Brasília: Sociedade Brasileira de Bioética, 2006. v. 2, n. 2, p. 233.
38 - NEVES, p. 164-167.
39 - NUNES, Lucilia. Usuários dos serviços de saúde e os seus direitos. In: Revista Brasileira de Bioética. Brasília: Sociedade Brasileira de Bioética, 2006. v. 2, n. 2, p. 215.
40 - Idem, p. 215.
41 - FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 2.
42 - LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista. Barueri: Manole, 2005. p. 136-137.
43 - Art. 333. O ônus da prova incumbe: (...). § 2º É facultado ao juiz, diante da complexidade do caso, estabelecer a incumbência do ônus da prova de acordo com o caso concreto.

Extraído de Newsletter Magister 991

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