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19 março 2010

O CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO-5

Parte 5- Final



Ada Pellegrini Grinover
Professora Titular de Direito Processual da Universidade de São Paulo.


8 A Via Processual Adequada para Provocar o Controle e a Eventual Intervenção do Judiciário em Políticas Públicas

O Código Civil revogado asseverava, no art. 75: "A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura". Como bem aponta Kazuo Watanabe: "Não fosse a intransigência doutrinária, surgida na fase em que o Direito Processual aspirava à autonomia como um ramo da ciência jurídica, o art. 75 do CC/16 poderia ter sido lido com explicitação, em nível infraconstitucional, do princípio da efetividade e da adequação da tutela jurídica processual" (40) (grifei). "Para que dele se retirasse toda a conotação imanentista, bastava que se lesse o texto como se nele estivesse escrito que a toda afirmação de direito (e não um direito efetivamente existente) 'corresponde uma ação, que o assegura'. O direito 'afirmado', como é cediço, não é a mesma coisa que direito existente. (...). Aliás, mesmo o texto constitucional (art. 5º, XXXV) deve ser lido com o mesmo cuidado, pois seu texto afirma que 'a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça do direito', e sua leitura apressada poderá conduzir a uma conclusão imanentista, quando na verdade o que nele se afirma é que nenhuma afirmativa de lesão ou ameaça a direito poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário".

Mas o princípio expresso no Código Civil revogado permanece em nosso ordenamento, como decorrência direta do art. 5º, XXXV, da CF, e como manifestação do valor maior da efetividade do processo. E o Código de Defesa do Consumidor abrigou-o expressamente, ao proclamar:

Art. 83: "Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela." (grifei)

O legislador cuidou, assim, de tornar mais explícito ainda o princípio da efetiva e adequada tutela jurídica processual de todos os direitos consagrados pelo sistema.

Nas sempre ponderadas palavras de Kazuo Watanabe (41): "Não se trata de mera enunciação de um princípio vazio e inócuo, de um programa a ser posto em prática por meio de outras normas legais. Cuida-se, ao revés, de norma autoaplicável, no sentido de que dela se podem extrair desde logo várias consequências. A primeira delas, certamente, é a realização processual dos direitos na exata conformidade do clássico princípio chiovendiano, segundo o qual 'o processo deve dar quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e somente aquilo que ele tenha direito de conseguir' (42). A segunda, que é consectária de qualquer tipo de ação - coletiva, individual com efeitos coletivos ou meramente individual - pode ser utilizada para provocar o Poder Judiciário a exercer o controle das políticas públicas. E não importa a espécie de demanda: meramente declaratória, constitutiva ou condenatória, mandamental ou executiva lato sensu. Consequência importante é o encorajamento da linha doutrinária, que vem se empenhando no sentido da mudança da visão do mundo, fundamentalmente economicística, impregnada no sistema processual pátrio, que se procura privilegiar o 'ter' mais que o 'ser' (43), fazendo com que todos os direitos, inclusive os não patrimoniais, principalmente os pertinentes à vida, à saúde, à integridade física e mental e à personalidade (imagem, intimidade, honra etc.) tenham uma tutela processual mais efetiva e adequada" (grifei).

O princípio é certamente aplicável a todos os direitos e interesses, violados ou ameaçados, mesmo fora das relações de consumo. Aliás, não custa lembrar que as disposições processuais do CDC se aplicam à tutela de qualquer direito ou interesse coletivo (lato sensu), por força da correlação estabelecida pelo art. 90 do CDC ("Aplicam-se às ações previstas neste Título as normas do CPC e da Lei nº 7.347/85, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições" - grifei) e pelo art. 21 da Lei nº 7.347/85 - Lei da Ação Civil Pública ("Aplicam-se à defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o CDC").

Isto quer dizer, em última análise, que o art. 83 do CDC, supra transcrito, aplica-se a todos os direitos difusos e coletivos, nos termos do art. 1º, IV, da Lei da Ação Civil Pública. E tem mais: é certo que os direitos coletivos (lato sensu) gozam de instrumentos processuais específicos de proteção: Lei da Ação Civil Pública, Mandado de Segurança coletivo, Ação popular, Ação de Improbidade Administrativa. Mas é certo também que, por intermédio de uma demanda individual, podem ser protegidos direitos e interesses coletivos "lato sensu".

Veja-se o seguinte exemplo: numa demanda individual, o Autor pede à autoridade pública a interdição de um local noturno, vizinho à sua residência, que infringe o direito ao silêncio, tutelado pela lei. Trata-se de uma demanda individual, mas de efeitos coletivos, porquanto a interdição - ou não - do local vai ter efeitos sobre todos os membros da comunidade que vive na vizinhança. A ação individual serviu para a tutela de um direito difuso.

Outro exemplo: inconformado com a fixação das mensalidades de uma escola, um pai de aluno pede a correção da tabela de custos, para adaptá-la aos critérios legais. Dependendo do pedido, portanto - não apenas a redução de sua mensalidade, mas a revisão da tabela que fixou as mensalidades - a demanda individual terá efeitos coletivos, beneficiando, ou não, todos os estudantes da escola. A ação individual serviu para a tutela de um direito coletivo ("stricto sensu").

Mais exemplos são trazidos por Kazuo Watanabe: "Por exemplo, uma ação de anulação de deliberação assemblear de uma sociedade anônima, que veicula matéria de ordem geral, e não uma questão de interesse específico de algum acionista, será uma ação de alcance coletivo, mesmo que proposta por apenas um ou alguns acionistas, e a respectiva sentença, sendo acolhedora da demanda, beneficiará necessariamente a totalidade dos acionistas. Nessa espécie de conflitos de interesses, não há lugar para a concomitância de demandas individuais que objetivem o mesmo resultado prático. É suficiente a propositura de uma única ação de anulação, por um ou mais acionistas, sem a necessidade de participação da totalidade deles, pois estamos diante de uma demanda individual com alcance coletivo, pois o escopo dela diz respeito à totalidade dos acionistas. Não se nega a possibilidade de cada acionista ter uma pretensão individual específica e diferenciada, pertinente somente a ele, em relação à qual será inquestionavelmente admissível a demanda individual. Mas não é fragmentável em demandas individuais a pretensão anulatória, pois o provimento jurisdicional a ela correspondente tem pertinência necessária à totalidade dos acionistas. Para que semelhante distinção fique bem remarcada, cabe ser mencionado um outro exemplo. A ação coletiva ajuizada com o escopo de se exigir a cessação da poluição ambiental praticada por uma indústria é apta a tutelar os interesses de toda a coletividade (interesses difusos, portanto). A ação individual que viesse a ser proposta por uma vítima, por exemplo, um morador da vizinhança, reclamando a indenização pelos danos individualmente sofridos em virtude da mesma poluição combatida na ação coletiva, veicularia uma pretensão individual própria e inconfundível com a pretensão coletiva. Seria inegável, nessa hipótese, a presença do requisito da compatibilidade entre a pretensão coletiva e a individual. Mas, se na ação individual fosse veiculada a pretensão à cessação da poluição, teria ela escopo coincidente com o da ação coletiva. Suponhamos, para salientar bem essa distinção, que outros moradores ajuizassem também ações individuais com a mesma finalidade, qual seja, a de cessação da poluição. Todas elas estariam reproduzindo a mesma pretensão veiculada na demanda coletiva. São 'individuais' apenas no sentido de que são propostas por indivíduos, mas a pretensão é de alcance coletivo, pois beneficia a totalidade das pessoas que se encontram na mesma situação, e não somente o autor da ação. Em semelhante situação, seria suficiente uma só demanda, seja individual ou coletiva" (44) (grifei).

Existem, portanto, demandas individuais com efeitos coletivos, que servem à tutela dos interesses ou direitos difusos e coletivos, conceituados no art. 81, I e II, do CDC, às quais se aplica induvidosamente o art. 83 do CDC, c/c art. 21 da Lei da Ação Civil Pública.

Aliás, tenho sustentado, em minhas aulas de pós-graduação (45), que a conceituação de interesses difusos e coletivos, do art. 81, I, II e III, do CDC é uma conceituação de direito material, pois antes mesmo que surja o processo, e independentemente dele, pode nascer o conflito sociológico. E a norma de direito material define quais são os direitos tutelados.

É também o que afirma Kazuo Watanabe, com outras palavras (46): "No plano sociológico, o conflito de interesses pode dizer respeito, a um tempo, a interesses ou direitos 'difusos' e 'individuais homogêneos'. Suponha-se, para raciocinar, uma publicidade enganosa. Enquanto publicidade, a ofensa atinge um número indeterminável de pessoas, tratando-se em consequência de lesão a interesses ou direitos 'difusos'. Porém, os consumidores que, em razão da publicidade, tiverem adquirido o produto ou o serviço ofertado, apresentarão certamente prejuízos individualizados e diferenciados, de sorte que estamos aí diante de lesão a interesses ou direitos 'individuais homogêneos'. Limitando-se o autor da ação coletiva a postular, v.g., a retirada da publicidade enganosa, a tutela pretendida é dos interesses ou direitos 'difusos'. É esse o conflito de interesses trazido ao processo. É essa a 'lide' processualizada. O objeto litigioso do processo, delimitado pelo pedido, tem essa 'lide' como seu conteúdo" (grifei).

Mas há mais: mesmo na tutela jurisdicional exclusivamente individual é aplicável o princípio de que são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva proteção de qualquer direito ou interesse.

Vigora, nesse contexto, o postulado de atipicidade da tutela jurisdicional, que foi bem salientado por Flávio Yarshell. Conforme observou o processualista, a garantia da ação "funciona como 'cobertura geral' do sistema, apta a conduzir ao controle de alegações de lesão (ou ameaça) de direito". Examinando a evolução do conceito de ação, da perspectiva romana até a moderna, Yarshell bem observou que, "rompendo com o sincretismo contido na ótica do direito romano, cindiu-se o conceito da actio, para se distinguir a existência do direito, de um lado, e o poder de invocar a respectiva declaração ou atuação, de outro lado. Daí porque se dizer que o direito contemporâneo não está mais assentado em um sistema 'de ações', mas 'de direitos', em que não mais vigora aquela ideia de tipicidade" (47) (grifei).

Ao tratar especificamente da atipicidade da ação no confronto com o interesse de agir (no indicador adequação da via processual), observou o processualista: "São frequentes as referências ao 'descabimento' desta ou daquela 'ação', diante de certa situação de direito material afirmada pelo demandante, reputando-se este carecedor de ação por falta de interesse de agir (inadequação). O problema pode ser situado da seguinte forma: no momento em que o interessado - valendo-se da garantia constitucional ('ampla') da ação - ingressa em juízo, precisa eleger a 'ação adequada' para a situação material que afirma, isto é, não deve se equivocar na escolha da 'via processual'. Advertiu Yarshell ser preciso ter cuidado para entender, sob a ótica do interesse processual, o que se quer dizer com escolha da 'ação cabível' cuidando-se para que na 'passagem' da 'ação constitucional' (incondicionada) para a 'ação processual' (condicionada, eis que exercida de forma conexa a uma dada relação material afirmada pelo demandante) não se perca o sentido e o alcance dessa primeira garantia". E mais: "Quando se busca o 'tipo de ação' cabível para uma dada situação de direito material (afirmada), deve-se levar em conta - relativamente ao elemento 'adequação' - tão-somente os seguintes dados: a) compatibilidade entre pedido (provimento invocado) e situação lamentada pelo demandante, de tal sorte que, em tese, a providência alvitrada pelo autor seja idônea a solucionar o mal de que se lamenta; b) compatibilidade entre o procedimento adotado pelo autor e a situação afirmada pelo demandante, de modo que os atos processuais, por seu encadeamento, sejam aptos a conduzir o demandante ao ato final que, como visto, é (deve ser) idôneo à superação do estado de coisas exposto pelo autor. Sob um ângulo negativo, por assim dizer, a busca do 'tipo de ação cabível' deve considerar: a) a irrelevância do nome ou rótulo que se tenha consignado no veículo da demanda, que é a petição inicial; b) que o equívoco quanto ao procedimento eleito não impede necessariamente que atinja o provimento (resultado) desejado, quer porque seja possível adequá-lo ao procedimento correto, quer porque não existam diferenças expressivas entre o procedimento eleito e o procedimento corretamente ditado pela lei; c) que a invocação do fundamento legal não afeta o interesse de agir e não vincula o órgão julgador, que deve considerar os fatos e fundamentos jurídicos expostos pelo demandante" (48) (grifei).

Verifica-se, assim, que mesmo uma ação individual pode servir para a implementação ou a correção de uma política pública: mas com a advertência de se evitarem os excessos, conforme foi exposto no nº 6 supra.

Disso tudo surge uma inarredável conclusão: qualquer tipo de ação - coletiva, individual com efeitos coletivos ou meramente individual - pode ser utilizada para provocar o Poder Judiciário a exercer o controle e a possível intervenção em políticas públicas.

9 Conclusões

Diante de todo o exposto, podem ser assentadas as seguintes conclusões:

a) o Poder Judiciário pode exercer o controle das políticas públicas para aferir sua compatibilização com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, CF);

b) esse controle não fere o princípio da separação dos Poderes, entendido como vedação de interferência recíproca no exercício das funções do Estado;

c) consequentemente, o Judiciário pode intervir nas políticas públicas - entendidas como programas e ações do Poder Público objetivando atingir os objetivos fundamentais do Estado - quer para implementá-las, quer para corrigi-las quando equivocadas;

d) há limites postos à intervenção do Judiciário em políticas públicas. Tais limites são: i) a restrição à garantia do mínimo existencial; ii) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e a irrazoabilidade da escolha do agente público; iii) a reserva do possível;

e) a estrita observância desses limites, assim como o correto entendimento do que sejam políticas públicas, são necessários e suficientes para coibir os excessos do Poder Judiciário;

f) para fazer face ao descumprimento da ordem ou decisão judicial pelo Poder Público, sem embargo da aplicação de astreintes - pouco adequadas quando se trata da Fazenda Pública -, as sanções mais eficazes são a responsabilização por improbidade administrativa e a intervenção federal ou estadual no Estado ou Município; e, em âmbito mais limitado, a imputação ao Prefeito Municipal de crime de responsabilidade;

g) todas as espécies de ações - coletivas, individuais com efeitos coletivos, ou meramente individuais - são idôneas a provocar o controle e a eventual intervenção do Judiciário nas políticas públicas.

Notas da Autora:

40 WATANABE, Kazuo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 856.
41 Ibidem, p. 854-855.
42 CHIOVENDA, Giuseppe. Dell'azione nascente dal contratto preliminare. In: Saggi di Diritto Processuale Civile, 1930. v. 1. p. 110, e Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1942. v. I. p. 84. Na busca da instrumentalidade substancial do processo, são igualmente válidas tanto a perspectiva de Direito Material utilizada por alguns processualistas como a de Direito Processual de que se valem outros processualistas. A correta e equilibrada combinação dessas duas perspectivas, sem a intolerância doutrinária que a nada conduz, é a solução que realmente se impõe.
43 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tendências na execução de sentenças e ordens judiciais. In: Temas de Direito Processual. 4. série, p. 215-241.
44 WATANABE, Kazuo. Op. cit., p. 799-800.
45 Disciplina de mestrado/doutorado "Processos Coletivos", na Faculdade de Direito da USP; disciplina de mestrado, com o mesmo nome, na Faculdade de Direito de Vitória.
46 WATANABE, Kazuo. Op. cit., p. 830.
47 Cf. Tutela jurisdicional. São Paulo: DPJ, 2006. p. 56-63.
48 Cf. Tutela jurisdicional. São Paulo: DPJ, 2006. p. 117-120.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 30 - Maio/Jun de 2009 e reproduzido no CD Magister 30 – dez/jan 2010, de onde foi extraído.

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