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17 março 2010

O CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO-3

Parte 3/5


Ada Pellegrini Grinover

Professora Titular de Direito Processual da Universidade de São Paulo.

4 A Razoabilidade

A razoabilidade mede-se pela aplicação do princípio constitucional da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade significa, em última análise, a busca do justo equilíbrio entre os meios empregados e os fins a serem alcançados.

Sobre o tema, José Joaquim Gomes Canotilho sustentou que o princípio da proporcionalidade em sentido amplo comporta subprincípios constitutivos: a) princípio da conformidade ou adequação de meios (Geeignetheit), que impõe que a medida seja adequada ao fim; b) princípio da exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit) ou princípio da necessidade ou da menor ingerência possível, que impõem a ideia de menor desvantagem possível ao cidadão; c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito (Verhältnismässigkeit), importando na justa medida entre os meios e o fim. Confiram-se suas palavras:

"O princípio da conformidade ou adequação impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Consequentemente, a exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adopção (Zielkonformität, Zwecktauglichkeit). Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim.

(...)

O princípio da exigibilidade, também conhecido como 'princípio da necessidade' ou da 'menor ingerência possível', coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão.

(...)

c) Princípio da proporcionalidade em sentido restrito (Verhältnismässigkeit)

Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coactiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à 'carga coactiva' da mesma. Está aqui em causa o princípio da proporcionalidade em sentido restrito, entendido como princípio da 'justa medida'. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de 'medida' ou 'desmedida' para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim." (17) (grifei)

Aliás, sob esse aspecto, vale lembrar o pensamento de Karl Larenz, para quem, "no caso do princípio da proporcionalidade, na sua formulação mais geral, em que requer ou exige apenas uma 'relação adequada' entre meio e fim e que o dano que sobrevenha não 'esteja sem relação com o risco' que devia ser afastado (§ 228 do BGB), trata-se de um princípio 'aberto', porque nestes casos não é indispensável uma valoração adicional. Não se trata aqui de outra coisa senão da ideia de justa medida, do 'equilíbrio', que está indissociavelmente ligada à ideia de justiça" (18) (grifei).

No mesmo sentido, escreveu Paulo Bonavides, com apoio em autorizada doutrina: "Em sentido amplo, entende Muller que o princípio da proporcionalidade é regra fundamental a que devem obedecer tanto os que exercem quanto os que padecem o poder. Numa dimensão menos larga, o princípio se caracteriza pelo fato de presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são levados a cabo. Nesta última acepção, entende Muller que há violação do princípio da proporcionalidade, com ocorrência de arbítrio, toda vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados e/ou quando a desproporção entre meios e fim é particularmente evidente, ou seja, manifesta" (19) (grifei).

Quanto à sua natureza, Caio Tácito lembra que, no direito alemão, se confere ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso "a natureza de norma constitucional não escrita, que permite ao intérprete aferir a compatibilidade entre meios e fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos fundamentais" (20).

E, nessa linha de raciocínio, Raquel Denize Stumm ressalta a atribuição, ao princípio da proporcionalidade, de princípio jurídico geral fundamental, também no direito pátrio: "Em sendo um princípio jurídico geral fundamental, o princípio da proporcionalidade pode ser expresso ou implícito à Constituição. No caso brasileiro, apesar de não expresso, ele tem condições de ser exigido em decorrência da sua natureza. Possui uma função negativa, quando limita a atuação dos órgãos estatais, e uma função positiva de obediência aos seus respectivos conteúdos" (21) (grifei).

No mesmo sentido, Paulo Bonavides escreveu: "A importância do princípio tem, de último, crescido de maneira extraordinária no Direito Constitucional. A lesão ao princípio assume maior gravidade nos sistemas hermenêuticos oriundos da teoria material da Constituição. Aí prevalece o entendimento incontrastável de que um sistema de valores via de regra faz a unidade normativa da lei maior. De tal sorte que todo princípio fundamental é norma de normas, e a Constituição é a soma de todos os princípios fundamentais. (...). Uma das aplicações mais proveitosas contidas potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos fundamentais e se busca desde aí solução conciliatória, para a qual o princípio é indubitavelmente apropriado" (22) (grifei).

O princípio da proporcionalidade obriga a todos os Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. A propósito lecionou José Joaquim Gomes Canotilho: "O campo de aplicação mais importante do princípio da proporcionalidade é o da restrição dos direitos, liberdades e garantias por actos dos poderes públicos. No entanto, o domínio lógico de aplicação do princípio da proporcionalidade estende-se aos conflitos de bens jurídicos de qualquer espécie. Assim, por exemplo, pode fazer-se apelo ao princípio no campo da relação entre a pena e culpa no direito criminal. Também é admissível o recurso ao princípio no âmbito dos direitos a prestações. É, por exemplo, o que se passa quando se trata de saber se uma subvenção é apropriada e se os fins visados através de sua atribuição não poderiam ser alcançados através de subvenções mais reduzidas. O princípio da proibição do excesso aplica-se a todas as espécies de actos dos poderes públicos. Vincula o legislador, a administração e a jurisdição" (23) (grifei).

Especificamente com relação ao Poder Judiciário, ouça-se a límpida lição de João Batista Lopes: "Pelo princípio da proporcionalidade o juiz, ante o conflito levado aos autos pelas partes, deve proceder à avaliação dos interesses em jogo e dar prevalência àquele que, segundo a ordem jurídica, ostentar maior relevo e expressão. (...). Não se cuida, advirta-se, de sacrificar um dos direitos em benefício do outro, mas de aferir a razoabilidade dos interesses em jogo à luz dos valores consagrados no sistema jurídico" (24).

Por último, cabe lembrar que o princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade, tem sido amplamente reconhecido e aplicado pelo STF.

Ainda sob a égide da CF/67, com EC de 1969, o Supremo aplicou o princípio da proporcionalidade, embora sem esse nome, como critério para a limitação de restrições de direitos, deixando assentado que as medidas restritivas de direito não podem conter limitações inadequadas, desnecessárias e desproporcionais (25). Referência expressa ao princípio, com a denominação de critério de razoabilidade, ocorreu no voto proferido pelo Ministro Rodrigues Alkmin, considerado o leading case em matéria de aplicação do princípio: ao manifestar-se sobre a Lei nº 4.116/62, que estabelecia exigências para o exercício da profissão de corretor de imóveis, ficou assentado que o legislador somente poderia estabelecer condições de capacidade respeitando o critério de razoabilidade, devendo o Poder Judiciário aferir se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse público (26). E em 1984, dois outros julgados do Supremo pautaram-se pelo princípio da proporcionalidade: as Representações ns. 1.077 e 1.054, sendo relator o Ministro Moreira Alves. Na primeira, tratava-se da elevação da Taxa Judiciária no Estado do Rio de Janeiro, sob o prisma da razoabilidade, entendendo-se que o poder de tributar não pode ser exercido de forma excessiva (27). Na segunda, cuidava-se da constitucionalidade do art. 86 da Lei nº 5.681/71, que vedava o exercício da advocacia aos juízes, membros do MP e servidores públicos civis e militares, durante o período de dois anos a contar da inatividade ou disponibilidade. Aqui também, a questão foi decidida com suporte no princípio da proporcionalidade, sustentando-se que a restrição estabelecida era desarrazoada( 28).

Conclui-se daí, com relação à intervenção do Judiciário nas políticas públicas, que por meio da utilização de regras de proporcionalidade e razoabilidade, o juiz analisará a situação em concreto e dirá se o administrador público ou o responsável pelo ato guerreado pautou sua conduta de acordo com os interesses maiores do indivíduo ou da coletividade, estabelecidos pela Constituição e nas leis. E assim estará apreciando, pelo lado do Autor, a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público. E, por parte do Poder Público, a escolha do agente público deve ter sido desarrazoada.

Conforme afirma Eurico Ferraresi (29), "Vale dizer que, quando se discute atividade discricionária, discutem-se opções que devem ser tomadas pelo agente público, de forma equilibrada e harmoniosa. (...). Evidentemente, o juiz não apenas pode, como deve, verificar se a escolha feita pelo Administrador Público respeitou os ditames legais. O que não pode ocorrer é a alteração da escolha feita pelo agente público quando ela não se afigure inapropriada. No momento em que o ordenamento jurídico permite ao agente público atuar com determinado campo de independência, permite-se, discricionariamente, a revisão judicial apenas nos casos em que a escolha feita seja desarrazoada (...)"(grifei).

Nesse caso, conforme afirma Celso Antônio Bandeira de Mello, "a censura judicial não implicaria invasão do mérito do ato" (30).

Em conclusão, a intervenção judicial nas políticas públicas só poderá ocorrer em situações em que ficar demonstrada a irrazoabilidade do ato discricionário praticado pelo Poder Público, devendo o juiz pautar sua análise em atenção ao princípio da proporcionalidade.

Notas da Autora:

17 Cf. Direito constitucional e teoria da Constituição, 3. ed., reimpressão, Coimbra/Portugal: Livraria Almedina, p. 264-265. Confira-se, também, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 5. ed., revista e ampliada, São Paulo: Malheiros, 1994, p. 360.
18 Cf. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. por José Lamego. Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa/Portugal, 1997, p. 684.
19 Cf. op. cit., p. 357.
20 Cf. A razoabilidade das leis, Revista de Direito Administrativo, n. 204, p. 1-7, abr./jun. 1996, p. 2.
21 Cf. Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Livraria do Advogado, 1995. p. 121.
22 Curso de Direito Constitucional. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 362-365-386-387.
23 Cf. op. cit., p. 266.
24 Tutela antecipada no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 72-73.
25 HC 45.232, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, 1968 (RTJ 44/322).
26 Rep 930/DF, Rel. Min. Rodrigues Alkmin, DJU 02.09.77.
27 Rep 1.077, Rel. Min. Moreira Alves (RTJ 112/34).
28 Rep 1.054, Rel. Min. Moreira Alves (RTJ 110/967).
29 Eurico Ferraresi. Modelos processuais coletivos: comparação entre ação popular, ação civil pública e mandado de segurança coletivo. Tese de doutoramento defendida na Faculdade de Direito da USP (Orientadora Ada Pellegrini Grinover), no prelo, p. 19-20.
30 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 777.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 30 - Maio/Jun de 2009 e reproduzido no CD Magister 30 – dez/jan 2010, de onde foi extraído.

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