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23 março 2010

ACESSO À ORDEM JURÍDICA JUSTA-2

Parte 2/4



Cristiano de Melo Bastos
Professor; Mestre em Direito Processual Constitucional pela Universidade de Ribeirão Preto; Especialista em Direito Processual, pela PUC Minas; Advogado.


3. BARREIRAS AO ACESSO À ORDEM JURÍDICA JUSTA

3.1 INTRODUÇÃO

São notórios e públicos os problemas enfrentados pelo Poder Judiciário. Aqueles que lidam com o Direito não se furtam de mostrar e criticar os desvelos que afetam o acesso à ordem jurídica justa.

A necessidade de mudanças urgentes aflora em todo o sistema processual, principalmente, no que tange à efetividade do processo. No exercício da atividade jurisdicional, o Estado busca a pacificação, aliás, este é o escopo máximo da jurisdição, a pacificação com justiça. E, para se obter essa justiça, é necessário o emprego da efetividade do processo.

Contudo inúmeros fatores fazem com que não haja a efetividade da acessibilidade. Conforme informam Capeletti e Garth (2002): O ‘acesso’ não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica. 7

O acesso à Justiça constitui reconhecer que as técnicas processuais servem às funções sociais. Com efeito, o pressuposto da acessibilidade é a existência de pessoas capazes de exercerem seus direitos, em juízo ou fora dele, sem quaisquer óbices, de forma que na prática terão a possibilidade de efetivação de seus direitos.

Por sua vez, no campo processual, a doutrina moderna aponta três finalidades visadas pelo Estado para o exercício pleno da jurisdição: os sociais, políticos e jurídicos. É na obra de Cintra, Grinover e Dinamarco (1998) que encontraremos os apontamentos: É um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e felicidade pessoal de cada um. A doutrina moderna aponta outros escopos do processo, a saber: a) educação para o exercício dos próprios direitos e respeito aos direitos alheios (escopo social); b) a preservação do valor liberdade, a oferta de meios de participação nos destinos da nação e do Estado e a preservação do ordenamento jurídico e da própria autoridade deste (escopos políticos); c) a atuação da vontade concreta do direito (escopo jurídico). 8

Contudo existem barreiras ao acesso à ordem jurídica justa a serem transpostas. Cappelletti e Garth (2002) identificam três obstáculos: custas judiciais; possibilidades das partes; e problemas especiais dos interesses difusos.

3.2 CUSTAS JUDICIAIS

As custas judiciais e os honorários advocatícios formam uma grande barreira ao acesso à ordem jurídica justa, pois o acesso à justiça é muito dispendioso para as partes envolvidas no litígio. No Brasil, a pobreza constitui fator de maior gravame ao acesso à justiça. O litigante terá que pagar as custas judiciais com o ajuizamento da ação, e a maioria dos atos praticados para o desenvolvimento da prestação jurisdicional terá necessariamente custos. Exemplificando, podemos citar realização de perícias, gastos com oitiva de testemunhas, com diligências do Oficial de Justiça, com interposição de eventuais recursos, etc.

Ademais, o litigante no Brasil possui o ônus da sucumbência, ou seja, o vencido é obrigado a reembolsar ao vencedor os gastos que este teve com a tramitação processual.

Outra grande dificuldade para o ingresso em juízo são os honorários advocatícios. A maior parte da população não tem condições de arcar com o pagamento de honorários aos advogados, a começar pela tabela de honorários que estabelece valores mínimos a serem cobrados por tipo de ação a ser ajuizada, com o bordão de evitar o aviltamento da profissão. Cabe ressaltar que o profissional que cobrar abaixo do valor está violando o Estatuto da Ordem dos Advogados e sujeito a penalidades administrativas.

O custo financeiro de um processo no Brasil inibe e dificulta grande parte da população a ter um acesso eficaz à justiça. O desestímulo é grande e muitos direitos subjetivos ficam sem serem apreciados por motivos exclusivamente econômicos.

José Cichocki Neto (2000), informa que: "A existência de focos de desassistidos no seio social, jurídica e jurisdicionalmente, em virtude de carência econômica, erige-se em fator que obsta o acesso à justiça" 9.

Cabe ressaltar que há litígios que envolvem disputas de pequeno valor. Aqueles são os mais prejudicados com a barreira ora analisada. Dependendo da lide, o valor das custas e honorários serão maiores do que o bem da vida pleiteado.

A morosidade é outro fator que aumentará os custos de uma lide. São vários acordos realizados em audiência onde o mais forte sempre sairá ganhando. Infelizmente, para o pobre, um acordo com valores muito inferiores ao pedido será vantajoso, haja vista que a morosidade da Justiça irá corroer as esperanças e o direito daquele.

Cappelletti e Garth (2002) assim se manifestam: Em muitos países, as partes que buscam uma solução judicial precisam esperar dois ou três anos, ou mais por uma decisão exeqüível. Os efeitos dessa delonga, especialmente se considerados os índices de inflação, podem ser devastadores. Ela aumenta os custos para as partes e pressiona os economicamente fracos a abandonar suas causas, ou aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam direito. 10

Desse modo, fica fácil concluir que, em geral, os custos da lide são muito elevados, e a relação entre o valor da causa e o custo da demanda aumenta à medida que baixa o valor da causa.

A experiência na advocacia demonstra que, geralmente, um péssimo acordo é realizado, tendo em vista a questão da morosidade. A parte prefere pôr fim ao processo e sair prejudicada parcialmente a delongar a demanda, causando mais gastos e stress psicológico.

3.2 POSSIBILIDADES DAS PARTES

As possibilidades das partes são as diferenças evidenciadas entre autor e réu no litígio. Cappelletti e Garth (2002) apontam como diferenças primordiais a falta de recursos financeiros, a falta de reconhecimento de direitos e diferenças entre litigantes habituais e litigantes eventuais.

A falta de recursos financeiros é uma das barreiras enunciadas ao acesso à ordem jurídica justa. São gritantes as vantagens que um rico possui ao litigar em face de um pobre. A primeira delas foi devidamente analisada no tópico anterior, as custas. A barreira de custas judiciais para aqueles que possuem recursos financeiros não existe.

Como demonstrado alhures, o dinheiro, infelizmente, é fator preponderante para se obter um acesso à ordem jurídica justa. Um litigante sem os entraves demonstrados de custas judiciais e a possibilidade de pagar advogado e outro com todos os impedimentos já demonstram as desigualdades tanto materiais como formais.

Lado outro, a aptidão para o reconhecimento de Direitos no Brasil é tido como uma grande barreira ao acesso à ordem jurídica justa. Com efeito, falta à população brasileira o básico, ou seja, educação. E, aqui, não é apenas aos carentes que a falta de conhecimento é um entrave. Os limitados conhecimentos da população em geral para o reconhecimento de direitos e o ajuizamento de uma demanda demonstra como o acesso à justiça é de certa forma impossibilitado para a população. Com efeito, o Poder Judiciário afasta-se do povo. Não há uma identificação deste com aquele poder, geralmente, visto como extremamente formal, o que é verdade.

Cappelletti e Garth (2002) se manifestam a respeito do tema: Além dessa declarada desconfiança nos advogados, especialmente comum nas classes menos favorecidas, existem outras razões óbvias por que os litígios formais são considerados tão pouco atraentes. Procedimentos complicados, formalismo, ambientes que intimidam, como o dos tribunais, juízes e advogados, figuras tidas como opressoras, fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho. 11

O problema educacional do pobre não conhecer seus próprios Direitos é crucial. Estes são violados a todo o tempo, seja por entes públicos ou privados. O carente no Brasil sequer tem uma formação primária digna, quanto mais ter condições de exercer algumas noções mínimas de Direito. O Estado não cumpre com seus Princípios Fundamentais consagrados na Carta Maior. Com efeito, o pobre em nosso País não possui cidadania.

A título de ilustração, vale a pena citar artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, intitulado: "’Pobres’ são barrados por juiz em fórum", em que um Juiz determina que os pobres deveriam ingressar pela garagem do novo prédio da Defensoria Pública em Campo Grande: O problema, segundo a defensoria pública, é saber por onde os "pobres" vão entrar no novo prédio, que custou R$ 2 milhões ao Estado. Almir Paixão, procurador-geral adjunto da Defensoria, diz que as pessoas em busca de assistência devem entrar por um corredor de acesso localizado dentro do Fórum. O Diretor do Fórum, Julizar Barbosa Trindade, determinou que os pobres entrem pelo estacionamento. 12

É clarividente que, para se ter acessibilidade a alguma coisa, inclusive à justiça, é de crucial importância o conhecimento de Direitos e como utilizá-los. Os serviços de assistência jurídica são um dos instrumentos de quebra dessa barreira, pois devem prestar os esclarecimentos necessários dos direitos à população carente, por meio de palestras voltadas para o público, sejam em associações de bairros carentes, escolas, igrejas etc. Somente desse modo cumprem com seu dever ético e pedagógico.

Com efeito, atualmente, há os denominados movimentos sociais que criam os chamados novos direitos sociais. A consciência desses novos direitos é de extrema importância, principalmente, tendo em vista o âmbito coletivo, no qual estão inseridos.

Ademais, é notório que os clientes dos serviços de assistência jurídica somente procuram a assistência depois de terem seus direitos violados por várias vezes. Na maioria dos casos, foram réus em algum processo e descobrem, por meio do Oficial de Justiça ou no Fórum, que o Estado ou um ente privado presta o serviço gratuitamente.

O caso é ilustrado por Augusto Tavares Rosa Marcacini (1996), em sua obra Assistência jurídica, assistência judiciária, justiça gratuita: Em primeiro lugar, tratando da dificuldade de identificar a existência de algum direito, a experiência no atendimento à população carente junto ao Departamento jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto nos demonstrou que, normalmente, para ser autor, o carente tem de, primeiramente, ser réu. Citado para uma ação, o assistido se dirige ao órgão prestador da assistência, o que jamais faria, não fosse ele réu. 13

O atendimento realizado aos carentes, pelos serviços de assistência jurídica, mostra que os estudos estão corretos. A maioria dos clientes comparece à assistência, porque o Sr. Oficial de Justiça escreve no mandado o endereço da instituição e pede àqueles para procurar a assistência. É totalmente o inverso de um escritório de advocacia particular, onde o cliente procura o advogado tendo em vista a fidúcia no trabalho do profissional.

Para Paulo César Pinheiro Carneiro (2003): Esse dado, o direito à informação, como elemento essencial para garantir o acesso à justiça em países em desenvolvimento como o nosso, é tão importante como o de ter um advogado, um defensor, que esteja à disposição daqueles necessitados que, conhecedores de seus direitos, querem exercê-los. Trata-se de pessoas que não têm condições sequer de ser partes - os ‘não partes’ são pessoas absolutamente marginalizadas da sociedade, porque não sabem nem mesmo os direitos de que dispõem ou de como exercê-los; constituem o grande contingente de nosso país. 14

Infelizmente, este é o contexto em que nós vivemos. Daí a crucial importância dos serviços de assistência jurídica promoverem o amplo acesso à justiça e a plena efetividade da cidadania.

Outra barreira, dentro das possibilidades das partes, diz respeito à litigância eventual e a litigância habitual. O ponto do problema está justamente naqueles litigantes que habitualmente estão em juízo, as facilidades conseguidas por estes, tanto no plano formal como material, são inúmeras. O estudo aprofundado do professor Galanter, citado na obra de Cappelletti e Garth (2002), demonstra as reais vantagens que os litigantes habituais possuem em confronto com os litigantes não habituais, tais como: maior experiência com o Direito, dando-lhe um melhor planejamento do litígio, possibilidade de manter relações informais com os membros da instância decisora, diluição dos riscos da demanda por maior número de casos, pode testar estratégias com determinados casos, de modo a garantir expectativa mais favorável em relação a casos futuros. 15

O litigante não habitual terá grandes dificuldades em entender a forma de operar com o Poder Judiciário, considerando todos os seus níveis, desde o relacionamento com os sujeitos do processo até o de tramitação da demanda. O stress causado pela demanda é o principal fator de desvantagem. O litigante habitual, psicologicamente analisando, estará de certa forma mais "calejado" com o curso da demanda; por outro lado, o não habitual sofrerá com todos os desvelos perpetrados pelo Poder Judiciário.

3.3 PROBLEMAS ESPECIAIS DOS INTERESSES DIFUSOS

Os problemas especiais dos interesses difusos e coletivos ao acesso à ordem jurídica justa são outras barreiras ao acesso à justiça. Por tradição, o Direito somente oferecia proteção aos interesses individuais. No final do século XX, surgem os denominados interesses difusos e coletivos de grande importância para a humanidade.

Cappelletti e Garth (2002) ensinam que: Interesses ‘difusos’ são interesses fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao ambiente saudável, ou a proteção do consumidor. O problema básico que eles apresentam - a razão de sua natureza difusa - é que, ou ninguém tem direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação. 16

O problema maior do ajuizamento dessas ações é a questão da legitimidade ativa e, mesmo ultrapassado tal obstáculo, é difícil conseguir pessoas aptas a encarar uma demanda judicial que, pelo complexo, é demasiadamente complicada, além de envolver várias pessoas da sociedade.

O acesso à ordem jurídica justa implica tanto que o sistema judiciário seja igualmente acessível a todos quanto produza, individual ou coletivamente, resultados justos. Infelizmente, essas barreiras são eclodidas ao máximo quando o cidadão, que tenta buscar o acesso à ordem jurídica justa, é pobre. Pode-se empregar, para o Poder Judiciário no Brasil, o seguinte bordão: "Aos amigos tudo, aos inimigos a Lei e aos pobres o arbítrio". Com efeito, nem sempre o exercício do direito subjetivo público, ação, se oferece acessível ao alcance do corpo social.

A mudança na legislação pode ser um caminho para ampliar a legitimidade ativa para o ingresso de ações que possuem caráter difuso e/ou coletivo. As possíveis soluções serão apontadas no próximo tópico.

Notas do Autor:

7 - CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000. p. 13.
8 - CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 24-25.
9 - CICHOCKI NETO, José. Limitações ao acesso à justiça. Curitiba: Juruá, 2000. p. 112.
10 - CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002. p. 20.
11 - CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002. p. 24.
12 - "Pobres são barrados por juiz em fórum", São Paulo: Folha de São Paulo, Caderno Panorâmica, 18.11.2004.
13 - MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita. Rio de Janeiro: Forense1996. p. 23.
14 - CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública: uma nova sistematização da teoria geral do processo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 58.
15 - CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça, p. 25.
16 - CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça, .p. 26.

Extraído de Editora Magister/doutrina

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