Translate

16 março 2010

O CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO-2

Parte 2/5


Ada Pellegrini Grinover
Professora Titular de Direito Processual da Universidade de São Paulo.

2 A Posição dos Tribunais Brasileiros

Nossos tribunais assim têm feito: o STF reconheceu o dever do Estado de fornecer gratuitamente medicação a portadores do vírus HIV, sob o fundamento de que os poderes públicos devem praticar políticas sociais e econômicas que visem aos objetivos proclamados no art. 196 da CF, invocando precedentes consolidados da Corte (10).

O mesmo entendimento foi adotado pelo STJ em diversas oportunidades, salientando-se o direito à integralidade da assistência à saúde a ser prestado pelo Estado, de forma individual ou coletiva (11). O Tribunal, em outra decisão, afirmou que a Administração Pública se submete ao império da lei, até mesmo no que toca à conveniência e oportunidade do ato administrativo: uma vez demonstrada a necessidade de obras objetivando a recuperação do solo, cumpre ao Poder Judiciário proceder à outorga da tutela específica para que a Administração destine verba própria do orçamento para esse fim (12).

Também o TJSP mostrou-se preparado na discussão a respeito da suposta interferência do Poder Judiciário nos demais poderes. Em ação civil pública ajuizada pelo MP em face da municipalidade paulistana, objetivando a restauração do conjunto arquitetônico do Parque da Independência, a Corte manifestou-se no sentido de que pode e deve o Judiciário atuar na omissão administrativa. O Tribunal paulista decidiu que a omissão da administração pode ser enfrentada pelo Judiciário, em decorrência do controle que este exerce sobre os atos administrativos, não se tratando de interferência na atividade do Poder Executivo (13).

Mas o posicionamento mais representativo a favor da intervenção do Poder Judiciário no controle de políticas públicas vem do STF, na ADPF 45-9, sendo representado pela decisão monocrática do Ministro Celso de Mello, que assim se pronunciou:

"É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política 'não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei do Estado'." (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. Celso de Mello)

"Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à 'reserva do possível' (Stephen Holmes/Cass R. Sunstein, The Cost of Rights, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas."



"A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível." (grifei)

"Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da 'reserva do possível' ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas."(grifei)

"É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar a todos o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado." (grifei)

Resumindo, percebe-se que a posição do STF, manifestada por um de seus mais sensíveis Ministros, é a de que são necessários alguns requisitos, para que o Judiciário intervenha no controle de políticas públicas, até como imperativo ético-jurídico: (1) o limite fixado pelo mínimo existencial a ser garantido ao cidadão; (2) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e (3) a existência de disponibilidade-financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Examinem-se esses requisitos, que traçam os limites para a intervenção do Judiciário nas políticas públicas.

3 Limites à Intervenção do Judiciário nas Políticas Públicas - a Garantia do Mínimo Existencial

Os direitos cuja observância constitui objetivo fundamental do Estado (art. 3º da CF) e cuja implementação exige a formulação de políticas públicas, apresentam um núcleo central, que assegure o mínimo existencial necessário a garantir a dignidade humana.

O mínimo existencial é considerado um direito às condições mínimas de existência humana digna que exige prestações positivas por parte do Estado: "A dignidade humana e as condições materiais de existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados" (14).

Para Ana Paula de Barcellos, o mínimo existencial é formado pelas condições básicas para a existência e corresponde à parte do princípio da dignidade da pessoa humana à qual se deve reconhecer eficácia jurídica e simétrica, podendo ser exigida judicialmente em caso de inobservância (15).

Costuma-se incluir no mínimo existencial, entre outros, o direito à educação fundamental, o direito à saúde básica, o saneamento básico, a concessão de assistência social, a tutela do ambiente, o acesso à justiça (16).

É esse núcleo central, esse mínimo existencial que, uma vez descumprido, justifica a intervenção do Judiciário nas políticas públicas, para corrigir seus rumos ou implementá-las.

Mas, de acordo com que critérios o Judiciário poderá e deverá intervir nas políticas públicas? Imagine-se que a Prefeitura decide construir um hospital num bairro pobre, que não tem saneamento básico, sendo que em bairro próximo existe outro hospital. Qual o mínimo existencial que deverá prevalecer? É aí que entra em ação o princípio da razoabilidade, que pode ser utilizado para corrigir uma política pública equivocada.

É o que se passa a verificar.

Notas da Autora:
10 RE 271.286 e AgRg 271.286.
11 REsp 212.346 no Ag. 842866; REsp 814.076 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11316722, Editora Magister, Porto Alegre, RS); REsp 807.683; AgRg no REsp 757.012 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11275571, Editora Magister, Porto Alegre, RS); REsp 684.646 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11259153, Editora Magister, Porto Alegre, RS); REsp 658.323 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11249272, Editora Magister, Porto Alegre, RS); REsp 625.329, MS 8895; REsp 509.753, MS 8740; REsp 430.526; REsp 338373.
12 RSTJ 187/219, 2ª T.
13 Apl 152.329.5/4.00-SP.
14 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais, Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, n. 42, jul./set. 1990, p. 69-70.
15 BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 248 e 252-253.
16 ROCHA Jr., Paulo Sérgio Duarte da. Controle jurisdicional de políticas públicas. Dissertação de mestrado defendida na USP, orientador Rodolfo de Camargo Mancuso. p. 21-24.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 30 - Maio/Jun de 2009 e reproduzido no CD Magister 30 – dez/jan 2010, de onde foi extraído.

Nenhum comentário: