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05 março 2010

CULPA, RESSENTIMENTO E A INVERSÃO DOS VALORES EM NIETZCHE-2

Parte 2- Final


Amauri Ferreira
Filósofo e escritor. Ministra cursos, coordena grupos de estudos e desenvolve pesquisas pela Escola Nômade de Filosofia (www.escolanomade.org) Blog: amauriferreira.blogspot.com

O sacerdote ascético

Mas como os valores gerados pelos homens nobres e ativos foram invertidos pelos valores plebeus e reativos? O homem reativo sofre por estar vivo, e seu sofrimento parece interminável: enquanto permanece incapaz de experimentar a felicidade ativa, imagina que a sua dor terá um fim se finalmente encontrar a explicação para o seu tormento, juntamente com a esperança de alcançar, finalmente, a felicidade. Pois bem, o sacerdote ascético lhe oferece uma explicação e uma promessa de felicidade! A inversão da interpretação e avaliação nobre, pela reinterpretação e reavaliação plebeia, somente teve êxito por meio de um agente organizador de rebanhos: o sacerdote judaico. Pela interpretação sacerdotal, os homens fortes passam a ser os culpados pela desgraça dos fracos, e considerados como uma ameaça permanente à conservação dos impotentes, ou seja, os homens fortes tornam-se os "maus" porque são egoístas, e os fracos tornam-se os "bons" porque não são egoístas.

Nietzsche nos diz que essa inversão de valores implicou uma falsificação do Deus judaico. Dessa forma, o Javé que era reverenciado por grandes festas, como forma de agradecimento pela boa fortuna na colheita, na pecuária, etc., foi transformado em um Javé que castiga e recompensa. Os "agitadores sacerdotais" criaram um Deus com a função de proteger o seu rebanho enfermo contra os homens sãos: "Originalmente, sobretudo na época dos reis, também Israel achava-se na relação correta, ou seja, natural, com todas as coisas. Seu Javé era expressão da consciência de poder, da alegria consigo, da esperança por si: nele esperava-se vitória e salvação, com ele confiava-se na natureza, que trouxesse o que o povo necessitava - chuva, principalmente. [...] Que aconteceu? Mudaram seu conceito. [...] Seu conceito torna-se instrumento nas mãos de agitadores sacerdotais, que passam a interpretar toda felicidade como recompensa, toda infelicidade como castigo por desobediência a Deus. [...] Observemo-los em ação: nas mãos dos sacerdotes judeus, a grande época de Israel tornou-se uma época de declínio; o exílio, a longa desventura transformou-se em eterna punição pela grande época - um tempo em que o sacerdote ainda não era nada..." (O anticristo, 25 e 26).

Ao contrário de uma comunidade sã que inventa um Deus para agradecer a sua boa fortuna, os homens impotentes inventam um Deus como meio de realizar a vingança contra os fortes e, também, pela necessidade da crença em uma realidade melhor do que a que vivem: o ideal, o mundo transcendente, a salvação, tornam-se artigos de fé que servem para alimentar a esperança do fim do sofrimento dos doentes, que apenas conhecem uma vontade: a de negar a vida. Atolados na lama do ressentimento e da má consciência, eles não veem outra saída a não ser encontrar os culpados por seus tormentos. Por intermédio do sacerdote judaico, os fracos interpretam os fortes como monstros... É estabelecida a inversão dos valores nobres pelos valores reativos: "Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um 'fora', um 'outro', um 'não-eu' - e este Não é o seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores - este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si - é algo próprio do ressentimento; a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto - sua ação é no fundo reação" (Genealogia da moral, primeira dissertação, 10).


Com a interpretação sacerdotal, os homens fortes passam a ser culpados pela desgraça dos fracos

Os valores reativos triunfam por meio da multiplicação cada vez maior dos doentes. Quando Nietzsche diz que é necessário proteger os fortes contra os fracos, é precisamente pelo fato dos fracos, por se organizarem em rebanho, serem a maioria, envenenando toda vida saudável pela acusação ressentida. Então, os fortes abaixam a cabeça e pedem clemência - os seus instintos tornam-se reprimidos, assim como os do rebanho, e poderão participar, enfim, dos "benefícios" da sociedade reativa.

Mas a rebelião dos escravos tem um complemento, que é a interpretação da má consciência como a consciência da dívida, operada pelo sacerdote cristão: "Apenas nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista em sentimentos de culpa, ele veio a tomar forma - e que forma! O 'pecado' - pois assim se chama a interpretação sacerdotal da 'má consciência' animal (da crueldade voltada para trás) - foi até agora o maior acontecimento na história da alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa" (Genealogia da moral, terceira dissertação, 20).

O "golpe de gênio do cristianismo", realizado pelo judeu Paulo de Tarso, consiste na interpretação da morte de Jesus Cristo como uma redenção pelos pecados de toda a humanidade. Dessa forma, o sentimento da dívida torna-se infinito: "[...] o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível - o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!..." (Genealogia da moral, segunda dissertação, 21). Apesar do cristianismo inventado por Paulo ter dividido a humanidade em duas (antes e depois de Cristo), o Deus cristão não se opõe ao Deus judaico - é, sobretudo, a continuação dos valores nascidos do ressentimento e da negação da vida. Afinal, o "reino de Deus" é a promessa da felicidade eterna para quem? Para os sofredores, oprimidos, doentes, isto é, todos os que estão com a sua vontade de potência entravada.


"Se a fé não tornasse feliz, não haveria fé: então quão pouco valor ela deve ter!" NIETZSCHE

Como o poder da igreja depende que seus seguidores sintam-se pecadores, ela inventa proibições para que, somente assim, haja transgressão e, consequentemente, sentimento de culpa. Proibir o adultério, o uso de preservativos, o aborto, a eutanásia, etc., são dispositivos que servem para nascer, naquele que sofre, a consciência da dívida. Então, basta que o indivíduo tenha apenas o desejo de transgressão para que isso seja a "prova" suficiente do seu pecado e, como isso representa uma ameaça à salvação da sua alma, é inevitável que ele recorra, mais uma vez, ao poder sacerdotal: "A desobediência a Deus, isto é, ao sacerdote, à 'Lei', recebe então o nome de 'pecado'. [...] Psicologicamente, em toda sociedade organizada em torno ao sacerdote os 'pecados' são imprescindíveis: são autênticas alavancas do poder, o sacerdote vive dos pecados, ele necessita que se peque... Princípio supremo: 'Deus perdoa quem faz penitência' - em linguagem franca: quem se submete ao sacerdote" (O Anticristo, 26).


Nietzsche diz que é necessário proteger os fortes contra os fracos, porque os fracos são maioria e envenenam toda vida saudável com acusação ressentida.

O bom e o mau segundo Nietzsche


Em Genealogia da Moral, Nietzsche tenta mostrar que a moral - que define, entre outras coisas, o que é bom e o que é mau - é um conceito que surge num lugar e num tempo determinado, ou seja, é relativo e foi inventado pelo homem. A moral não é Metafísica (explicada por algo além do mundo material) e nem atemporal. Ao investigar como surgiu entre os povos o juízo de bom e mau, Nietzsche afirma que há duas morais: a do senhor e a do escravo. A do senhor afirma a vida e baseia o bom no que há de positivo em si (ser belo, forte), enquanto o ruim é quem está limitado ao aspecto reativo da existência (ser humilde, fraco). A do escravo surge do ressentimento, vê o forte como mau e, por oposição, ele próprio, como sendo o bom. Nietzsche dis que o judaísmo e, em seguida o cristianismo, consolidou a moral do escravo como a única vigente. Com isso, houve uma inversão daquilo que os próprios nobres consideravam bom. Segundo a avaliação do sacerdote judeu ou cristão, o bom (na moral do senhor) passa a ser considerado mau e o ruim (que é o fraco na moral do senhor) passa a ser considerado bom.

Transvaloração

Por intermédio do método genealógico, Nietzsche nos mostrou que os valores superiores à vida, fundados pelo ressentimento e pela má consciência, atendem os interesses do homem reativo, que, por não afirmar a sua potência, precisa negar o mundo imanente e transformar o ideal, a imortalidade da alma, a identidade, o ser, o Criador, o bem, o justo e o verdadeiro, em valores inquestionáveis. Pela moral judaico-cristã, o rebanho impotente continua a crescer cada vez mais rápido na era dos mass media, já que estes servem para reforçar a consciência da identidade do rebanho: o pensamento de que "todos nós somos muito parecidos" oferece segurança aos fracos... Na época da democracia tudo é reproduzido em série, tudo se iguala, tudo se rebaixa, nada mais difere. E tudo o que é classificado de "diferente" passa a unir-se a um rebanho que está submetido a um modelo humano de perfeição - assim o homem reativo anseia por um fim dos conflitos entre as forças para alcançar a "felicidade da paz". Nietzsche não vê outra saída para o futuro do homem a não ser a transvaloração dos valores, o que implica uma transmutação da maneira que o homem vive - uma nova maneira de viver que se alimenta de todo acontecer para diferenciar-se, não pela representação da diferença, mas por uma potência da vida que, a cada retorno, não nos permite que sejamos o mesmo. Somente assim os valores modernos que estão impregnados pela moral judaico-cristã, como o "eu", a obediência, o progresso, a paz e tantos outros, são destruídos por valores muito mais nobres: a terra, o corpo, as sensações, o devir, o acaso, passam a ser desejados por quem aprendeu a amar a vida.

É feita uma associação, considerada indevida e ingênua pelos estudiosos da obra de Nietzsche, entre as ideias do filósofo e o nazismo. Ela decorre das críticas nietzschianas aos valores da moral cristã, de sua teoria da vontade de potência e do seu elogio ao super-homem. Muitos destes conceitos foram apropriados pelo nazismo, mas o filósofo deixou vários textos em que condena nacionalismos e totalitarismos

Culpa é o que o sujeito sente quando avalia seus atos de forma negativa. O pecado, no sentido religioso, está ligado à culpa. Ele ocorre quando a pessoa comete algo que supostamente não é bem-visto pela divindade, quando transgride um tabu ou uma norma religiosa.


REFERÊNCIAS

Nietzsche. O Anticristo. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

_________.Genealogia da moral. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998

_________.Ecce Homo. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

_________.A vontade de poder. Tradução: Marcos S. P. Fernandes e Francisco J. D. de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008

_________.Assim falou Zaratustra. Tradução: Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

Extraído de Filosofia, ciência e vida do UOL.

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