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15 março 2010

O CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO-1

Parte 1/5


Ada Pellegrini Grinover

Professora Titular de Direito Processual da Universidade de São Paulo.


RESUMO: Para que o Estado atinja seus objetivos, os Poderes Públicos, mesmo que independentes, devem estar harmonizados. Ao Judiciário cabe investigar o fundamento dos atos estatais a partir dos objetivos fundamentais inseridos na Constituição. É certo que não é uma de suas funções formular e implementar políticas públicas. Tal incumbência só surge quando os órgãos estatais competentes vierem a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos. Segundo o STF, para que o Judiciário intervenha no controle de políticas públicas, são necessários alguns requisitos: (1) o limite fixado pelo mínimo existencial a ser garantido ao cidadão; (2) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e (3) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. E não será defesa suficiente a alegação de falta de recursos. A "reserva do possível" pode levar o Judiciário à condenação da Administração a uma obrigação de fazer em duas etapas: primeiro, a inclusão no orçamento da verba necessária e a obrigação de aplicá-la. No caso do descumprimento da decisão, abrem-se diversas vias para a aplicação de sanções, contudo, as mais adequadas são a responsabilização por improbidade administrativa e a intervenção federal ou estadual no Estado ou Município; e, em âmbito mais limitado, a imputação ao prefeito do crime de responsabilidade. Por fim, cabe ressaltar que qualquer tipo de ação - coletiva, individual com efeitos coletivos ou meramente individual - pode ser utilizada para provocar o Poder Judiciário a intervir no controle de políticas públicas.


PALAVRAS-CHAVE: Intervenção. Poder Judiciário. Princípio da Proporcionalidade em Sentido Estrito. Princípio da Exigibilidade. Direitos e Garantias Individuais.

1 Fundamento Constitucional do Controle

Montesquieu condicionara a liberdade à separação entre as funções judicial, legislativa e executiva, criando a teoria da separação dos poderes (1) e afirmando que a reunião de poderes permite o surgimento de leis tirânicas, igualmente exequíveis de forma tirânica (2).

Vale lembrar, com Dalmo Dallari (3), que a teoria foi consagrada em um momento histórico - o do liberalismo - em que se objetivava o enfraquecimento do Estado e a restrição de sua atuação na esfera da liberdade individual. Era o período da primeira geração de direitos fundamentais, ou seja, das liberdades ditas negativas, em que o Estado só tinha o dever de abster-se, para que o cidadão fosse livre de fruir de sua liberdade. O modelo do constitucionalismo liberal preocupou-se, com exclusividade, em proteger o indivíduo da ingerência do Estado.

Esse estado de coisas alterou-se com o fenômeno histórico da Revolução Industrial, em que as massas operárias assumem relevância social, aparecendo no cenário institucional o primeiro corpo intermediário, porta-voz de suas reivindicações: o sindicato.

A transição entre o Estado liberal e o Estado social promove alteração substancial na concepção do Estado e de suas finalidades. Nesse quadro, o Estado existe para atender ao bem comum e, consequentemente, satisfazer direitos fundamentais e, em última análise, garantir a igualdade material entre os componentes do corpo social. Surge a segunda geração de direitos fundamentais - a dos direitos econômico-sociais -, complementar à dos direitos de liberdade. Agora, ao dever de abstenção do Estado substitui-se seu dever a um dare, facere, praestare, por intermédio de uma atuação positiva, que realmente permita a fruição dos direitos de liberdade da primeira geração, assim como dos novos direitos.

No Brasil, durante muito tempo os tribunais autolimitaram-se, entendendo não poder adentrar o mérito do ato administrativo. Diversas manifestações do Poder Judiciário, anteriores à Constituição de 1988, assumiram essa posição(4).

No entanto, a Lei da Ação Popular abriu ao Judiciário a apreciação do mérito do ato administrativo, ao menos nos casos dos arts. 4º, II, b e V, b, da Lei nº 4.717/65, elevando a lesão à condição de causa de nulidade do ato, sem necessidade do requisito da ilegalidade. E José Afonso da Silva preconizava que sempre se possibilitasse a anulabilidade do ato por simples lesividade (5).

Mas foi a CF/88 que trouxe a verdadeira guinada: em termos de ação popular, o art. 5º, LXXIII, introduziu a seguinte redação:

Art. 5º, LXXIII: "Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência." (grifei)

Ora, o controle, por via da ação popular, da moralidade administrativa não pode ser feito sem o exame do mérito do ato guerreado. Trata-se, aqui, de mera lesividade, sem o requisito da ilegalidade.

Cândido Dinamarco (6) também entende que foi a ação popular que abriu o caminho do Judiciário em relação ao controle do mérito do ato discricionário, devendo-se a ela a desmistificação do dogma da substancial incensurabilidade do ato administrativo, provocando sugestiva abertura para alguma aproximação ao exame do mérito do ato administrativo.

Mas a Constituição de 1988 fez mais: no art. 3º fixou os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, da seguinte maneira:

"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

E, para atingir esses objetivos fundamentais (aos quais se acresce o princípio da prevalência dos direitos humanos: art. 4º, II, da CF), o Estado tem que se organizar no facere e praestare, incidindo sobre a realidade social. É aí que o Estado social de direito transforma-se em Estado democrático de direito.

Mas, como operacionalizar o atingimento dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro? Responde Oswaldo Canela Junior (7): "Para o Estado social atingir esses objetivos, faz-se necessária a realização de metas, ou programas, que implicam o estabelecimento de funções específicas aos Poderes Públicos, para a consecução dos objetivos predeterminados pelas Constituições e pelas leis (8). Desse modo, formulado o comando constitucional ou legal, impõe-se ao Estado promover as ações necessárias para a implementação dos objetivos fundamentais. E o poder do Estado, embora uno, é exercido segundo especialização de atividades: a estrutura normativa da Constituição dispõe sobre suas três formas de expressão: a atividade legislativa, executiva e judiciária".

Afirma o autor, com toda razão, que as formas de expressão do poder estatal são, por isso mesmo, meros instrumentos para a consecução dos fins do Estado, não podendo ser consideradas por si só. O primeiro dogma do Estado liberal a ser quebrado foi o da atividade legislativa, como sendo a preponderante sobre os demais poderes. E, acrescente-se: o segundo dogma foi o da atividade jurisdicional prestada por um juiz que represente apenas la bouche de la loi.

Continua Oswaldo Canela Junior: "E assim a teoria da separação dos poderes (art. 2º da CF brasileira) muda de feição, passando a ser interpretada da seguinte maneira: o Estado é uno e uno é seu poder. Exerce ele seu poder por meio de formas de expressão (ou Poderes). Para racionalização da atividade estatal, cada forma de expressão do poder estatal exerce atividade específica, destacada pela Constituição. No exercício de tais funções é vedado às formas de expressão do poder estatal interferência recíproca: é este o sentido da independência dos poderes".

Mas os poderes, além de independentes, devem também ser harmônicos entre si. Logo, os três poderes devem harmonizar-se para que os objetivos fundamentais do Estado sejam alcançados. Por isso, ainda segundo Oswaldo Canela Junior, "cabe ao Poder Judiciário investigar o fundamento de todos os atos estatais a partir dos objetivos fundamentais inseridos na Constituição (art. 3º da CF brasileira)".

Tércio Sampaio Ferraz Junior lembra que o objetivo do Estado liberal era o de neutralizar o Poder Judiciário frente aos demais poderes (9). Mas, no Estado democrático de direito, o Judiciário, como forma de expressão do poder estatal, deve estar alinhado com os escopos do próprio Estado, não se podendo mais falar numa neutralização de sua atividade. Ao contrário, o Poder Judiciário encontra-se constitucionalmente vinculado à política estatal.

Ainda no conceito irrepreensível de Oswaldo Canela Junior: "Por política estatal - ou políticas públicas - entende-se o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins primordiais do Estado. (...). Como toda atividade política (políticas públicas) exercida pelo Legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a Constituição, cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado, o que se convencionou chamar de 'atos de governo' ou 'questões políticas', sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (art. 3º da CF)", ou seja, em última análise à sua constitucionalidade. O controle da constitucionalidade das políticas públicas pelo Poder Judiciário, assim, não se faz apenas sob o prisma da infringência frontal à Constituição pelos atos do Poder Público, mas também por intermédio do cotejo desses atos com os fins do Estado.

E continua o autor: "Diante dessa nova ordem, denominada de judicialização da política [muito diferente, acrescente-se, da politização do Judiciário], contando com o juiz como coautor das políticas públicas, fica claro que sempre que os demais poderes comprometerem a integridade e a eficácia dos fins do Estado - incluindo as dos direitos fundamentais, individuais ou coletivos - o Poder Judiciário deve atuar na sua função de controle".

Notas da Autora:

1 Montesquieu, Do espírito das leis, Livro V, Cap. II.
2 Ibidem, Cap. V.
3 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
4 Vejam-se, exemplificativamente, STJ, RMS 15.959/MT, 6ª T., j. 07.03.06, DJ 10.04.06, p. 299 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11304253, Editora Magister, Porto Alegre, RS); RMS 18.151/RJ, 5ª T., j. 02.12.04, DJ 09.02.05, DJ 09.02.05, p. 206 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11229459, Editora Magister, Porto Alegre, RS); MS 12.629/DF, 3ª Seção, j. 22.08.07, DJ 24.09.07, p. 244. O STF, na década de 60, aprovou em Sessão Plenária a Súmula nº 339, com o seguinte enunciado: "Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores sob o fundamento da isonomia".
5 Apud GONÇALVES FILHO, Manoel Ferreira; Grinover, Ada Pellegrini; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Liberdades públicas - parte geral. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 478.
6 DINAMARCO, Cândido Rangel. Discricionariedade, devido processo legal e controle jurisdicional dos atos administrativos. In: Fundamentos do processo civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. v. I. p. 434.
7 Esta ideia, assim como as que se seguem, são extraídas do brilhante trabalho apresentado à USP para qualificação de doutorado por Oswaldo Canela Jr., A efetivação dos direitos fundamentais através do processo coletivo: um novo modelo de jurisdição (Orientador Kazuo Watanabe), inédito, p. 17-19.
8 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
9 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência, Revista USP, n. 21, mar./abr./maio 1994, p. 14.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 30 - Maio/Jun de 2009 e reproduzido no CD Magister 30 – dez/jan 2010, de onde foi extraído.

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