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18 março 2010

O CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO-4

Parte 4/5


Ada Pellegrini Grinover
Professora Titular de Direito Processual da Universidade de São Paulo.

5 A Reserva do Possível

A implementação de uma política pública depende de disponibilidade financeira - a chamada reserva do possível. E a justificativa mais usual da administração para a omissão reside exatamente no argumento de que inexistem verbas para implementá-la.

Observe-se, em primeiro lugar, que não será suficiente a alegação, pelo Poder Público, de falta de recursos. Esta deverá ser provada, pela própria Administração, vigorando nesse campo quer a regra da inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII, do CDC), aplicável por analogia, quer a regra da distribuição dinâmica do ônus da prova, que flexibiliza o art. 333, CPC, para atribuir a carga da prova à parte que estiver mais próxima dos fatos e tiver mais facilidade de prová-los (31).

Mas não é só: o Judiciário, em face da insuficiência de recursos e de falta de previsão orçamentária, devidamente comprovadas, determinará ao Poder Público que faça constar da próxima proposta orçamentária a verba necessária à implementação da política pública. E, como a lei orçamentária não é vinculante, permitindo transposição de verbas, o Judiciário ainda deverá determinar, em caso de descumprimento do orçamento, a obrigação de fazer consistente na implementação de determinada política pública (a construção de uma escola ou de um hospital, por exemplo). Para tanto, o § 5º do art. 461 CPP servirá perfeitamente para atingir o objetivo final almejado.

Desse modo, frequentemente a "reserva do possível" pode levar o Judiciário à condenação da Administração a uma obrigação de fazer em duas etapas: primeiro, a inclusão no orçamento da verba necessária ao adimplemento da obrigação; e, em seguida à inclusão, a obrigação de aplicar a verba para o adimplemento da obrigação.

6 A Observância dos Limites como Salvaguarda contra os Excessos

Os limites acima indicados são necessários e suficientes para coibir os excessos na intervenção judicial em políticas públicas.

Tome-se o exemplo da saúde: uma política pública razoável (e portanto adequada) deve propiciar o atendimento do maior número de pessoas com o mesmo volume de recursos. Merecem críticas, portanto - por não atender ao requisito da razoabilidade - alguns julgados, em demandas individuais, que concedem ao autor tratamentos caríssimos no exterior, ou a aquisição de remédios experimentais que sequer foram liberados no Brasil. Não se trata, nesses casos, de corrigir uma política pública de saúde, que esteja equivocada. E não se pode onerar o erário público, sem observância da reserva do possível.

A estrita observância dos limites à intervenção judicial, assim como o exato conceito de políticas públicas (como programas e ações tendentes ao atingimento dos objetivos do Estado brasileiro), serão suficientes para conter os abusos.

7 Sanções para o Descumprimento da Ordem ou Decisão Judiciária

Se, assim mesmo, o administrador descumprir a ordem ou decisão judiciária, abrem-se diversas vias para a aplicação de sanções: a) a aplicação de multa diária (astreintes) ou a título de ato atentatório ao exercício da jurisdição; b) a responsabilização por ato de improbidade administrativa; c) a intervenção no Estado ou no Município; d) a responsabilização criminal. Passamos a examinar essas técnicas de coerção.

a) Multa diária. Medidas de coerção patrimonial contra a Fazenda Pública são legítimas, conforme já decidiu o STJ em sede de antecipação de tutela(32). Todavia, conforme observa Eurico Ferraresi (33), "não se pode esquecer o fato de que a multa diária recairá, diretamente, no patrimônio público, bem de todos. E que, por isso, os efeitos de uma multa aplicada ao setor particular e ao setor público podem ser completamente diversos. (...). A imposição de multa diária só tem efeito quando recai no patrimônio particular do administrador público, pois, de contrário, onerar-se-ia ainda mais o erário". E continua anotando que, embora o montante da multa imposta a título de astreinte possa ser cobrada posteriormente do responsável, seria necessária uma nova demanda judicial para a recuperação.

Por outro lado, o montante fixado a título de multa, em ambos os casos, ficará inscrito como precatório: o art. 100, CF, permite a requisição do pagamento da multa por esse instrumento.

Assim, por diversas razões conclui-se que a imposição de multa diária não constitui a melhor medida para compelir o agente público a uma obrigação de fazer.

Cumpre notar, por último, que a multa prevista no parágrafo único do art. 13, CPC, a título de contempt of court, é absolutamente inadequada quando se trata da Fazenda Pública: a multa será inscrita como dívida ativa, o que significa simplesmente tirar de um bolso para passar para outro.

b) Responsabilização por ato de improbidade administrativa. A conduta do agente que descumpre decisão judicial subsume-se ao inciso II do art. 11 da Lei nº 8.429/92 - Lei de Improbidade Administrativa - que afirma constituir ato de improbidade que atenta contra os princípios da Administração Pública "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício". É ainda Ferraresi que observa que o descumprimento de ordem judicial ofende a harmonia entre os Poderes, de modo que, havendo descumprimento, se deixa indevidamente de praticar ato de ofício (34).

c) Intervenção no Estado ou Município. O descumprimento da ordem judicial sujeita o Estado ou o Município a sofrer intervenção político-administrativa, a fim de corrigir a irregularidade. O art. 35, IV, CF estabelece que o Estado não intervirá nos Municípios, exceto quando o Tribunal de Justiça der provimento a representação para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial. Da mesma forma, a União não intervirá nos Estados ou no Distrito Federal, exceto para prover a execução de ordem ou decisão judicial (art. 34, VI, CF).

O Supremo Tribunal Federal deixou assentado:

"O dever de cumprir as ordens emanadas pelo Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio poder público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair o aparelho do Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República. A desobediência a ordem ou a decisão judicial pode gerar, em nosso sistema jurídico, gravíssimas consequências, quer no plano penal, quer no âmbito político-administrativo (possibilidade de impeachment), quer, ainda, na esfera institucional (decretabilidade de intervenção federal nos Estados-membros ou em Municípios situados em Território Federal, ou de intervenção estadual nos Municípios)." (35) (grifei)

d) Crimes de responsabilidade e de desobediência. A teor do art. 1º, inciso XIV, do Decreto-Lei nº 201/67, constitui crime de responsabilidade do prefeito municipal "deixar de cumprir ordem judiciária, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à autoridade competente".

O STJ já decidiu que caracteriza o tipo descrito no art. 1º, XIV, do DL 201/67, o não cumprimento de ordem judicial, sem que o agente responsável tenha justificado o motivo da recusa ou a impossibilidade de seu cumprimento, por escrito, à autoridade competente (36).

Mas deve ser notado que, para a configuração do crime de responsabilidade por descumprimento de ordem ou decisão judiciária, é necessária a conduta dolosa do agente político. Nesse sentido, o STJ, na concessão de habeas corpus, visando ao trancamento da ação penal (37).

Mas, com relação ao crime de desobediência, o STJ afastou a ilicitude penal por existir sanção de natureza civil, processual ou administrativa aplicada em razão da omissão. Segundo a Corte, fixada multa diária pelo descumprimento da decisão judicial, não caberia o oferecimento de denúncia pelo crime de desobediência, sendo o caso de trancamento da ação penal por atipicidade de conduta (38).

Mais longe ainda foi outro julgado do STJ:

"CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. PREFEITO MUNICIPAL. NÃO CONFIGURAÇÃO.
1. Em princípio, diante da expressiva maioria da jurisprudência, o crime de desobediência definido no art. 330 do CP só ocorre quando praticado por particular contra a Administração Pública, nele não incidindo a conduta do Prefeito Municipal, no exercício de suas funções. É que o Prefeito Municipal, nestas circunstâncias, está revestido da condição de funcionário público.
2. Constrangimento indevido, representado pela cláusula 'sob pena de incidir em crime de desobediência à ordem judicial'."( 39)

Concluindo esse tópico, percebe-se que as sanções mais adequadas, para fazer face ao descumprimento da ordem ou decisão judicial pelo Poder Público, são a responsabilização por improbidade administrativa e a intervenção federal ou estadual no Estado ou Município; e, em âmbito mais limitado, a imputação ao Prefeito Municipal de crime de responsabilidade.

Notas da Autora:

31 Sobre a carga dinâmica da prova e sua importância no campo do controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário, ver ROCHA Jr., Paulo Sérgio Duarte da. Controle jurisdicional de políticas públicas. Dissertação de mestrado defendida na USP, Orientador Rodolfo de Camargo Mancuso, p. 55-101.
32 REsp. 790.175/SP, Relator José Delgado, Rel. p/ Acórdão Luiz Fux, 1ª T., j. 05.12.06, DJ 12.02.07, p. 249 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11360402, Editora Magister, Porto Alegre, RS).
33 FERRARESI, Eurico. Modelos de processos coletivos: ação popular, ação civil pública e mandado de segurança coletivo. Tese de doutorado defendida na USP, Orientadora Ada Pellegrini Grinover. p. 27.
34 Ibidem.
35 IF 590-QO, Rel. Min. Celso de Mello, j. 17.09.98, DJ 09.10.98.
36 REsp 546.249/PB, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª T., j. 04.03.04, DJ 31.05.04, p. 350.
37 HC 64.478/MT, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª T., j. 27.03.08, DJ 12.05.08, p. 1 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11449312, Editora Magister, Porto Alegre, RS).
38 HC 92.655/ES, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª T., j. 18.12.07, DJ 25.02.08, p. 352 (Fonte: DVD Magister, versão 23, ementa 11430339, Editora Magister, Porto Alegre, RS).
39 RHC 7.990/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 6ª T., j. 29.10.98, DJ 30.11.98, p. 209.

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 30 - Maio/Jun de 2009 e reproduzido no CD Magister 30 – dez/jan 2010, de onde foi extraído.

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