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04 março 2010

CULPA, RESSENTIMENTO E A INVERSÃO DOS VALORES EM NIETZSCHE-1

Parte 1/2


Para ser feliz, o homem precisa afirmar sua potência de vida. Quando essa é reprimida, ele leva uma existência submissa, apenas reativa. Sentimentos como culpa e ressentimento decorrem de valores estabelecidos pelo homem reativo.

Amauri Ferreira
Filósofo e escritor. Ministra cursos, coordena grupos de estudos e desenvolve pesquisas pela Escola Nômade de Filosofia (www.escolanomade.org). Blog: amauriferreira.blogspot.com

Qual é a origem do pecado, da culpa, e do ressentimento? São sentimentos que se tornaram tão comuns que podem nos levar a acreditar que eles são inerentes ao homem. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), em sua genealogia, nos diz que esses sentimentos são inseparáveis da moral judaico- cristã. É por essa moral que o homem experimenta continuamente uma repressão de seus impulsos ativos. Mas como esses impulsos não somem, é inevitável que haja um conflito entre uma moral que reprime e a nossa vontade de potência, que quer expandir-se. Assim, segundo o filósofo, o homem torna-se reativo quando vive limitado apenas à conservação da sua existência, o que faz multiplicar o seu sofrimento e a necessidade de viver cada vez mais submetido às promessas de recompensa oferecidas pelo poder sacerdotal. Dessa forma, o homem passa a ignorar um aspecto primordial da existência que é a criação, ou seja, é somente por meio da efetuação da sua natureza que o homem torna-se capaz de criar novos valores, de afastar para longe de si a culpa e o ressentimento.

Nesse sentido, Nietzsche nos diz que a felicidade corresponde ao crescimento da nossa potência, a uma constante diferenciação de si mesmo, o que torna desnecessária toda crença em um ideal ascético, isto é, em um modelo de perfeição que esmaga as diferenças.

Para Nietzsche, há duas morais: a do senhor e a do escravo. Na moral do escravo, há uma hierarquia, em que a autoridade do senhor é assegurada apenas por meio de uma lei. Ao contrário, na moral do senhor, o mais fortalecido - em potência - torna-se senhor do mais fraco

Vontade de potência

Para Nietzsche, a natureza é constituída por uma multiplicidade de forças (ou impulsos) que estão permanentemente em conflito: forças que, ao assimilarem outras forças, crescem e expandem a sua potência; forças que, ao serem exploradas, reagem e tentam resistir à dominação. Nesse sentido, toda força é vontade de potência (ou vontade de poder), isto é, um impulso constante ao crescimento intensivo: "A vontade de poder só pode externar-se em resistências; ela procura, portanto, por aquilo que lhe resiste. [...] A apropriação e a incorporação são, antes de tudo, um querer-dominar, um formar, configurar e transfigurar, até que finalmente o dominado tenha passado inteiramente para o poder do agressor e o tenha aumentado" (A vontade de poder, 656). Portanto, as relações entre as forças envolvem necessariamente um desequilíbrio ou uma desigualdade entre elas, por isso sempre vão existir forças que são dominantes e outras que são dominadas. É evidente que se trata de uma hierarquia estabelecida pela potência das forças conflitantes e não uma hierarquia determinada pela representação da potência, que seria assegurada por intermédio de uma lei: "Acautelo-me de falar em 'leis'químicas: isso tem um sabor moral. Trata-se antes de uma verificação absoluta de proporções de poder: o mais fortalecido torna-se senhor do mais fraco, à medida que este não pode impor justamente o seu grau de autonomia, - aqui não há nenhum compadecer-se, nenhuma preservação, ainda menos um respeito a 'leis'!" (A vontade de poder, 630).

"Cada conquista do conhecimento decorre do ânimo, da dureza contra si, do anseio para consigo" Nietzsche

A força dominante é ativa, pois seu domínio ocorre em circunstâncias em que ela é capaz de agir e modificar a realidade estabelecida, expandindo, dessa forma, a sua potência. Já a força dominada é passiva ou reativa, pois, limitada pela mais forte, apenas reage ou adapta-se à dominação: "O que é 'passivo'? Ser tolhido no movimento que avança açambarcando: portanto, um agir da resistência e da reação. O que é 'ativo'? É o que açambarca poder, dirigindo-se para fora" (A vontade de poder, 657). Por isso Nietzsche faz a importante distinção entre nobres e plebeus, senhores e escravos: os nobres ou senhores são os que podem dominar os mais fracos, e os plebeus ou escravos são os explorados pelos mais fortes e, enquanto estiverem submetidos às forças mais potentes, estão impedidos de exercer um domínio sobre outras forças.

Bom e ruim

Essa distinção é fundamental para uma problematização da geração de valores. Ao mesmo tempo em que domina, o homem nobre interpreta, avalia, isto é, cria e impõe valores que derivam de uma afirmação da vida, de uma afirmação dos sentidos do corpo. Dessa maneira, ele considera "bom" todo aquele que é capaz de expandir a sua potência, metamorfoseando- se, e, ao contrário, considera "ruim" os que vivem entravados no impulso ao crescimento da potência, impedidos de se diferenciarem. Portanto, a origem do conceito "bom" está relacionada à própria ação efetuada pelo homem nobre - ele afirma a sua diferença. Isso quer dizer que "o juízo 'bom' não provém daqueles aos quais se fez o 'bem'! Foram os 'bons' mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu. Desse phatos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!" (Genealogia da moral, primeira dissertação, 2).

Má consciência

Os conflitos entre as forças geram as impressões (ou imagens) que são recolhidas pela nossa consciência. Para Nietzsche, a consciência é de natureza reflexiva e reativa, porque ela apenas conhece os efeitos de uma atividade inconsciente (os conflitos entre as forças) e, a partir disso, podemos organizar as funções práticas da nossa existência. Ora, a doença do homem escravo e reativo está relacionada a uma "indigestão" das impressões recebidas. Ele torna-se cada vez mais incapaz de esquecer as impressões, o que lhe causa dor (já que são constantemente re-sentidas), impedindo-o de abrir-se ao ineditismo de todo acontecer: "[...] a lembrança é uma ferida supurante. Estar doente é em si uma forma de ressentimento. [...] E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. [...] O ressentimento é o proibido em si para o doente - seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação" (Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6). Mas a doença do homem reativo torna-se ainda mais grave porque ele também experimenta uma crescente interiorização dos seus impulsos inconscientes, isto é, os impulsos ativos que o levariam à dominação são constantemente refreados, o que dá origem à má consciência: "Todos os instintos que não se descarregam para fora se voltam para dentro. [...] A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição - tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência" (Genealogia da moral, segunda dissertação, 16).

"Fome" ou "falta" passam a constituir a vida do homem reativo que, limitado à conservação da sua existência, é incapaz de dar vazão à sua potência

Prisioneiro do ressentimento e da má consciência, o homem reativo passa a ter uma estranha noção da sua vontade de potência: faltaria a potência para preencher a sua vontade. Trata-se de uma vontade que quer a potência. A "fome" ou a "falta" passam a constituir a vida do homem reativo que, limitado apenas à dimensão da conservação da sua existência, é incapaz de dar vazão à sua potência, de assenhorar outras forças: "Não é possível tomar a fome como primum mobile: tampouco como autoconservação: a fome concebida como consequência da subalimentação, quer dizer: a fome como consequência de uma vontade de poder que não está mais se assenhorando" (A vontade de poder, 652).

Mas a noção reativa de uma felicidade que está relacionada à posse de algo que, supostamente, preencheria a nossa vontade, somente pode deixar de existir quando a felicidade passa a relacionar-se à efetuação de potência - o que nos faz experimentar um crescimento intensivo, que provém da assimilação de outras forças: "O que é felicidade? - O sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência é superada" (O anticristo, 2). Isso quer dizer que, ao contrário de quem está fraco, o homem ativo pode refrear a noção de uma "carência na vontade" porque simplesmente a sua alma se alimenta de tudo que os sentidos do corpo recebem, para, em seguida, devolver ao mundo um ato que expressa a sua diferença: "Tornar-vos vós mesmos oferendas e dádivas, é essa a vossa sede; e, por isso, tendes sede de acumular, na vossa alma, todas as riquezas" (Assim falou Zaratustra, Da virtude dadivosa, 1). Diferenciar-se de si mesmo é, sem dúvida, tornar-se o que se é.

Extraído de Filosofia, ciência e vida do UOL.

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