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24 julho 2009

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DIRETA - Parte 3



Carlos Eduardo Cabral Beloti
Especialista em Direito Processual; Pós-graduando em Gestão Jurídica da Empresa; Advogado

5. O MINISTÉRIO PÚBLICO E A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DIRETA

A discussão começa ao se indagar se é possível o Ministério Público conduzir investigação criminal, tendo em vista a agilização do processo penal.

Torna imperioso mostrar neste trabalho as posições existentes sobre a problemática, bem como os argumentos a favor e contra tal possibilidade.

Passaremos a estudá-las neste momento.

5.1. ARGUMENTOS A FAVOR
5.1.1. Ineficácia/ineficiência das instituições policiais

Um dos argumentos mais utilizados para a justificação da investigação criminal realizada pelo membro do Ministério Público reside na ineficácia das instituições policiais.

O Promotor Gabriel Lino de Paula Pires (2005) apresenta a questão da seguinte forma:

É de conhecimento geral a situação precária em que se encontram os órgãos policiais brasileiros. Pela carência de recursos financeiros, científicos e humanos, pela atuação ilícita e imoral de alguns policiais e por tantas outras razões, as quais não objetivamos esgotar. (sic)

Diante do descrédito da população na polícia, o Ministério Público, no afã de evitar a impunidade, quer invocar para si o direito de conduzir e realizar investigações criminais diretamente.

5.1.2. O membro do Ministério Público possui independência funcional, inamovibilidade e vitaliciedade

A Constituição Federal do Brasil no artigo 128, § 5º, inciso I e suas alíneas, garantiram ao membro do Ministério Público a independência funcional, a inamovibilidade e a vitaliciedade.

Com essas garantias, o membro do Ministério Público fica livre para atuar com a convicção necessária que a função exige, não se preocupando se ao desempenhar suas funções terá o cargo e o salário garantido no dia seguinte. Estas garantias não geram incertezas no membro do Ministério Público, o que garante ao seu trabalho maior confiabilidade.

5.1.3. O Ministério Público possui autonomia funcional

No exercício de suas funções, o Ministério Público somente deve obediência à Constituição Federal e às leis, não sofrendo qualquer ingerência ou interferência externa, ao contrário do que acontece com as polícias, que estão subordinadas diretamente ao chefe do Poder Executivo e nas quais vigora o princípio da hierarquia, ocasionando dificuldades para atuar de forma independente.

5.1.4. Quem pode o mais, pode o menos

Outro argumento utilizado por aqueles que defendem a possibilidade de o Ministério Público realizar investigação criminal diretamente encontra respaldo no inciso VIII, do artigo 129, da Constituição Federal.

No referido dispositivo encontramos a previsão de o Ministério Público requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial.

O promotor de justiça na Bahia, Rômulo de Andrade Moreira (2004) indaga: se se pode o mais (requisitar diligências investigatórias), como não se pode o menos?

No mesmo sentido:

Ora, se o Promotor de Justiça pode (deve) ajuizar a ação penal, ‘a fartiori’, lhe é permitido praticar atos administrativos que lhe possibilitem sua atuação. Em outras palavras, e utilizando-nos de conhecida e reiteradamente aplicada expressão, quem pode o mais, pode o menos (Pires, 2005).

Não é concebível aos olhos dos defensores da investigação criminal pelo Ministério Público que o promotor de justiça ou o procurador da república não possam praticar quaisquer atos, desde que legais, a fim de formar sua convicção e coletar elementos que embasem o futuro processo penal.

5.1.5. Autorização constitucional e infraconstitucional para investigar

Como veremos mais adiante, um dos argumentos contrários à investigação criminal preliminar providenciada pelo Ministério Público converge para a tese da ausência de autorização expressa na Constituição para tanto (CLÈVE, 2004). Porém, este tema será tratado depois.

Cumpre explorar neste momento o tema a que nos propomos. O autor acima citado relata:

Um olhar atento sobre as atribuições da instituição ministerial na Constituição exige enfrentar, no entanto, a cláusula de abertura que dispõe explicitamente que o Ministério Público poderá ‘exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo lhe vedada à representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas’.

E continua:

Em decorrência da disposição constitucional foi promulgada a Lei Complementar nº. 75 de 1993 que dispõe sobre as atribuições do Ministério Público da União, contemplando expressa autorização para a realização de inspeções e diligências investigatórias.

Os defensores desta tese afirmam que a legitimação do poder investigatório do Ministério Público tem, portanto, sede constitucional e, no plano infraconstitucional, autoridade própria de lei complementar, confirmando a Lei Complementar de 1993 no plano infraconstitucional, o que se podia ser deduzido a partir de uma acurada leitura da Constituição.

O atendimento do requisito de compatibilidade com a finalidade institucional transparece na primeira das funções do Ministério Público prevista pela Constituição, qual seja a promoção da ação penal de iniciativa pública, com a qual estabelece clara vinculação.

A compatibilidade pode ser certificada, ademais, com a previsão de atribuição expressa da função investigatória ao Ministério Público em diferentes diplomas normativos. Dentre as passagens encontráveis no ordenamento jurídico vigente, citem-se, entre outras, o preceituado no artigo 201, inciso VII, da Lei nº. 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e artigo 74, inciso VI, da Lei nº. 10.741 de 2003 (Estatuto do Idoso) para instauração de sindicâncias, de natureza nitidamente criminal.

Rogério Lauria Tucci, aduz que a investigação criminal realizada pelo Ministério Público seria compatível com a finalidade constitucional que lhe é própria (2004, p. 14 apud STRECK; FELDENS, 2003, p.51 e ss.).

Analisados os argumentos a favor da investigação criminal direta conduzida pelo Ministério Público, passemos a estudar os argumentos contrários.

5.2. ARGUMENTOS CONTRA

5.2.1. Ausência de previsão constitucional e infraconstitucional expressa

Aqueles que defendem a inviabilidade da realização de investigação criminal conduzida direta pelo Ministério Público, argumentam que não existe previsão constitucional para tanto.

Um dos que militam nesse sentido é o jurista Luiz Flávio Gomes (2004), que em artigo apontou a ausência de permissivo constitucional para que o Ministério Público realize investigação criminal por conta própria, além de apontar que não existem regras claras sobre como o Ministério Público faria a investigação. Em outras palavras, não existe a regulamentação de como seria realizada a investigação criminal conduzida diretamente pelo Ministério Público.

Os advogados e a população têm o direito de conhecer previamente as regras da investigação levada a cabo pelo Ministério Público.

Sergio Marcos Moraes Pitombo (2003) ensina:

Não se pode inventar atribuições nem competência, contrariando a Lei Magna. A atuação administrativa interna do Ministério Público, federal ou estadual, não há de fazer às vezes das polícias. Cada qual desempenhe sua específica função, no processo penal, em conjunção com o Poder Judiciário.

Para o primeiro autor acima referido, o artigo 144 da Constituição Federal não atribui ao Ministério Público poderes de investigação criminal realizadas diretamente.

5.2.2. Monopólio da investigação criminal pela polícia

Aqueles que defendem que somente a autoridade policial pode conduzir a investigação criminal argumentam que a Constituição Federal, ao incumbir às polícias civis, dirigidas por delegado de polícia de carreira, ressalvada competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares, acabou criando o monopólio da investigação criminal.

Nestor Sampaio Penteado Filho (2002), citando Luiz Alberto Machado acrescenta:

A obediência a esse princípio, do monopólio da investigação criminal pela polícia civil, dirigida por delegado de polícia de carreia, é imposição do princípio da legalidade, sintetizado por C. A. Bandeira de Mello como a obrigação de a Administração Pública só agir quando um texto de lei específico a autorize a agir.

Neste ínterim, os que impugnam a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público asseveram que a atividade investigatória criminal, formalizada no inquérito policial, só pode, por força de expressa diretriz constitucional, ser exercida e presidida por delegado de polícia.

5.2.3. Desvio de função

Segundo esta tese, a Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público à função de exercer o controle externo da atividade policial e não substituí-la, conforme preconizado no artigo 129, VII, da Carta Magna.

Ao invocar para si a investigação criminal, o Ministério Público, que tem como função fazer o controle externo da atividade policial, deixaria de ser fiscalizador, e daí se pergunta: Quem fiscalizará o Ministério Público em sua atividade investigatória?

Ademais, a realização da investigação criminal realizada diretamente pelo Ministério Público, nos dizeres de Rogério Lauria Tucci, afronta as garantias constitucionais asseguradas ao imputado, que se consubstancia numa atuação afrontosa do due processo of law e aos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal (2004, p.79 e ss).

Não foi por menos que o constituinte estabeleceu ao Ministério Público a atividade de fiscalizar a atividade policial. Pretendeu impedir que os direitos dos acusados fossem transgredidos e que as apurações cumprissem seu fim.

Dentro ainda da problemática, cumpre trazer à baila a posição adotada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

5.3. POSIÇÃO DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil decidiu que não existe base jurídica e constitucional para que o Ministério Público tenha poder de investigação em matéria criminal.

A matéria foi votada pelos oitenta e um conselheiros federais da Ordem dos Advogados do Brasil, reunidos em Brasília em 17/08/2004.

Segundo Bitencourt, para que membros do Ministério Público possam atuar como investigadores criminais, é necessário que a função seja regulamentada pelos legisladores, estabelecendo as condições, os meios e os limites para que as investigações possam ser conduzidas por seus integrantes.

Em seu voto e relatório, Bitencourt (2004) relata que:

Indiscutivelmente a realização de investigação criminal diretamente pelo Ministério Público compromete a apuração dos fatos, dado que nessa esfera, o Parquet é parte, pensa como parte e age como parte. Haverá nítida tendência a selecionar aqueles elementos probatórios que o favoreçam na acusação, especialmente considerando-se que é atribuição do Ministério Público promover, com exclusividade, a ação penal pública. Não é por outra razão, que, invariavelmente, em todas as investigações procedidas pelo Ministério Público invoca-se o famigerado "sigilo", com notória violação aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.

E continua:

Na verdade, além do arbitrário e ilegal desequilíbrio entre as partes, violando o devido processo legal, há outro fundamento para não permitir ao Ministério Público proceder investigações criminais: quem investiga adota, de plano, um determinado ponto de vista, uma hipótese provisória, uma premissa maior, sem a qual nenhuma conclusão advirá. Tal hipótese seduz o investigador, de tal forma, que torne indiferente a qualquer outra possibilidade, o que é extremamente danoso quando ocorre com um Ministério Público inquisidor.

A posição adotada pelo plenário da Ordem dos Advogados do Brasil sobre a possibilidade ou não de o Ministério Público poder conduzir investigações criminais resultou na seguinte ementa que transcrevemos:

Diante do atual texto constitucional, não há suporte jurídico para o Ministério Público, autonomamente, realizar investigações criminais, que são atribuições da polícia judiciária.

Conhecida a posição da Ordem dos Advogados do Brasil, resta saber qual a orientação adotada pelo Supremo Tribunal Federal. É o que veremos a seguir.

5.4. A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A questão já esteve em debate perante o Supremo Tribunal Federal em mais de uma ocasião. Ao contrário do que acontece no Superior Tribunal de Justiça, onde o amplo poder investigatório do Ministério Público em matéria criminal é reconhecido de forma pacífica, na mais alta Corte do país a questão ainda não assumiu contornos definitivos.

Em 30 de setembro de 1997, no julgamento do Habeas Corpus 75.769/MG, relatado pelo Ministro Octávio Gallotti, a Primeira turma do Supremo Tribunal Federal indeferiu o pedido, acolhendo a tese do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, no sentido de que a prática de atos investigatórios pelo Promotor de Justiça não o impede de oferecer denúncia.

Em 1º de setembro de 1998, no julgamento pela Segunda Turma daquele sodalício do Habeas Corpus 77.371/SP, relatado pelo Ministro Nelson Jobim e que tratava justamente da oitiva de testemunha diretamente pelo Ministério Público, ficou consignada a possibilidade da realização da diligência.

No mesmo ano, em 07 de dezembro, a mesma Segunda Turma julgou o Habeas Corpus 77.770/SC, relatado pelo Ministro Néri da Silveira, onde mais uma vez, a Corte Suprema decidiu pela ampla liberdade de investigação do Ministério Público.

Apenas uma semana depois, em 15 de dezembro de 1998, no julgamento do Recurso Extraordinário 205.473-9/AL, relatado pelo Ministro Carlos Mario Velloso, a mesma Segunda Turma pronunciou-se contrariamente aos entendimentos anteriores. Neste julgamento, decretou-se a inocorrência de ofensa ao artigo 129, inciso VIII, da Constituição Federal, pelo fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público, no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade competente para tal.

Em 18 de maio de 1999, foi julgado o Recurso Extraordinário 233.072/RJ. Neste caso, determinado Procurador da República, acreditando na ocorrência de irregularidades em procedimento licitatório de órgão do Ministério da Fazenda, requisitou o respectivo processo administrativo e convocou pessoas para serem ouvidas diretamente. Com base em tais elementos, ofereceu denúncia contra os envolvidos. O Tribunal Regional Federal da Segunda Região concedeu Habeas Corpus para trancamento da ação penal, sob o fundamento de que o Ministério Público exorbitara de sua função. Os Ministros Néri da Silveira e Maurício Corrêa conheceram e deram provimento ao recurso, para que se desse prosseguimento à ação penal. Os Ministros Nelson Jobim e Marco Aurélio não conheceram do recurso, por entenderem que o Ministério Público não tinha competência para promover inquérito administrativo para apurar conduta criminosa de servidor público. Na seqüência, o Ministro Carlos Mário Velloso não conheceu do recurso por razão totalmente diversa. Assim ficou a ementa do acórdão:

O Ministério Público não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos, nem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos, pode propor ação penal sem o inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Recurso não conhecido (STF, 2002).

Em 06 de maio de 2003, o Ministro Nelson Jobim relatou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus 81.326-7/DF, citado na introdução deste trabalho. Neste processo, o Supremo Tribunal Federal reformou a decisão do Superior Tribunal de Justiça para tornar insubsistente convocação de delegado de polícia para depor junto ao Ministério Público do Distrito Federal.

Até hoje, as decisões somente foram tomadas em turmas. Inexiste decisão plenária sobre o tema com a atual composição da Suprema Corte.

Conhecidas as teses, posições e os argumentos utilizados por aqueles que discutem sobre a investigação criminal conduzida pelo Ministério Público diretamente, encerrando o artigo, passaremos a estudar as conseqüências de tais posições no sistema processual penal brasileiro.

Extraído de Newsletter Magister Edição n. 931 - 21.jul.2009

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