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29 julho 2009

CNJ E CNMP NA VISÃO DE UM EX-CONSELHEIRO



VIGIANDO OS VIGIAS

(Uma breve história dos novos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público) ([1])

Antonio Umberto de Souza Júnior ([2])

Desde que os filósofos começaram a dedicar-se ao tema do poder político, dois aspectos intercomplementares sempre mereceram especial atenção: a distribuição das funções essenciais dos Estados entre seus agentes políticos e as limitações ao exercício destas funções. Iludidos pela expressão lingüística, não foram poucos os pensadores e parlamentos que endossaram a idéia de separação de poderes, atribuída, em especial, às obras de ARISTÓTELES, LOCKE e, sobretudo, MONTESQUIEU.([3])

A herança da famosa expressão tatua o próprio texto constitucional brasileiro em vigor (CF/88, art. 2º), renovando o prestígio a uma tradição de retórica constitucional inventada já no Império (Constituição Imperial de 1824, art. 9º) e de resto presente nas constituições dos demais países, como regra.

Fala-se em ilusão e em retórica constitucional porque, bem vistas as coisas, não se consagra na nossa realidade constitucional a concepção separatista, salvo sob uma perspectiva estritamente orgânica. Ao oposto, o que se extrai do conjunto normativo que estabelece os parâmetros fundamentais de funcionamento da república brasileira é um intrincado esquema de – lembrando O Federalista – freios e contrapesos no tocante às funções estatais essenciais, na esteira, aliás, do que já defendia MONTESQUIEU, ao ponderar que, porque “todo homem que possui poder é levado a dele abusar [...], é preciso que pela disposição das coisas o poder limite o poder”([4]).

Em outras palavras: à idéia de divisão funcional do poder não se pode dissociar, sob pena de propiciar insuportável desequilíbrio institucional, a idéia de limitação do poder jurídico.

Dentro do espírito de um móbile com funções reciprocamente limitadas e limitadoras o poder político tem sido distribuído entre várias agências estatais, ou seja, as agências estatais, concentradas entre os “três poderes”([5]) são, simultaneamente, sujeito e objeto de controle. São inúmeros os exemplos de tais mecanismos recíprocos de controle: o direito de veto e de editar medidas provisórias pelo Executivo, a liberdade para edição de regimentos internos e a reserva exclusiva de iniciativa de projetos de lei do interesse do Judiciário e a fiscalização da execução orçamentária pelo Parlamento são, dentre muitos, bons exemplos destas intrusões constitucionalmente adequadas.

Neste contexto de fartura de mecanismos recíprocos de controle, assume grande protagonismo o Poder Judiciário. Afinal, a partir da previsão constitucional, explicitada na Constituição redemocratizadora de 1946, de que lei nenhuma poderá cogitar de retirar do Judiciário a incumbência de examinar lesões ou ameaças (CF/88, art. 5º, XXXV), o sistema brasileiro de distribuição funcional do poder parece concentrar neste “sempre menos perigoso”([6]) poder o direito à dicção da última palavra.

Contudo, tal primazia constitucional impõe controle também, sob pena de ser a Constituição brasileira surda à advertência de MONTESQUIEU. Tal controle se dá, em verdade, por diversos modos:

a) internamente, pelo manejo dos recursos pelas partes ou terceiros insatisfeitos (controle técnico), pela ação fiscalizadora das corregedorias (controle disciplinar), pela captação das queixas pelas ouvidorias judiciárias (controle eclético), pelos órgãos internos de controle (controle administrativo e financeiro) e, ainda, pela atuação dos diversos conselhos locais ou especializados (de que são exemplos o Conselho da Justiça Federal e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho);

b) externamente, pela participação do Executivo e, para cargos judiciais de maior relevo, do Senado Federal na designação de membros dos tribunais (controle político), pela possibilidade de impeachment de Ministros do Supremo Tribunal Federal a ser processado e julgado no Parlamento da União (controle jurisdicional), pela ação fiscalizadora do Ministério Público (controle eclético) e das cortes de contas (controle administrativo e financeiro) e, ainda, pelo controle social desempenhado pela mídia e pela opinião pública.

Situação similar vive, institucionalmente o Ministério Público: recebeu enormes tarefas do texto constitucional, que apostou suas fichas na coletivização das tutelas judiciais como atalho para o combate à crise da morosidade judicial e, ao mesmo tempo, para propiciar efetiva proteção a direitos difusos e coletivos quase nunca defensáveis individualmente. E, em ambiente de ampla autonomia e independência, também emerge a necessidade de aprimoramento dos sistemas de controle.

A constatação de que a autonomia e independência dos tribunais e dos órgãos do Ministério Público acabaram por produzir ilhas de poder formou o caldo argumentativo necessário para que se concebesse a idéia de criação de novos órgãos constitucionais que concentrassem, sem prejuízo da manutenção do rico manancial de possibilidades de controle e fiscalização, as funções de monitoramento e planejamento das atividades destes importantes atores da atividade jurisdicional.

Em tal perspectiva, após intensos (e tensos) debates, especialmente no âmbito da magistratura, medrosa pelo risco de ingerência externa à sua atuação funcional, foram criados o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que introduziu ao texto vigente os arts. 103-B ([7]) e 130-A.([8])

Tais conselhos, a par de modestas diferenças no número de membros (quinze no CNJ e quatorze no CNMP) e no índice de concentração de membros oriundos das carreiras respectivas (60% de magistrados no CNJ e 57% de promotores estaduais e procuradores da União no CNMP), receberam atribuições constitucionais praticamente idênticas:

a) zelar pela autonomia administrativa e financeira dos órgãos a eles vinculados, inclusive mediante poder regulamentar, de cunho autônomo como já admitiu o STF ([9]);

b) controlar a observância dos princípios constitucionais regentes da Administração Pública, no âmbito dos órgãos a eles vinculados, com poderes para desconstituir e rever atos praticados e determinar providências saneadoras;

c) exercer a competência disciplinar em caráter originário, avocatório e revisional, inclusive quanto a seus serviços auxiliares e, no caso do CNJ, às serventias extrajudiciais de registros e de notas;

d) elaborar relatórios de suas atividades e dos órgãos a eles vinculados, a serem apresentados ao Congresso Nacional.

O fato de nascerem como irmãos gêmeos do poder constituinte derivado revela enorme afinidade de preocupações, a começar pela auto-afirmação institucional. Momento crucial para tal auto-afirmação foi a rejeição do pedido de declaração de inconstitucionalidade, em ação direta que questionava a criação do Conselho Nacional de Justiça, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros([10]).

Tal julgamento acabou por consolidar a existência, à época tão controvertida, da nova instituição, frustrando o aborto desejado por certos segmentos da magistratura.

Ambos conselhos experimentaram trajetória similar, dedicando-se a atacar, por meio da edição de resoluções, os focos de imoralidade administrativa (nepotismo, exageros remuneratórios e exercício paralelo de outras atividades, profissionais ou não) e a assegurar o imediato e pleno vigor das principais inovações da Emenda 45 mais diretamente ligadas às respectivas carreiras (clareza e objetividade dos critérios de promoção por merecimento, lisura nos concursos públicos, definição de atividade jurídica como requisito constitucional de ingresso na magistratura e no ministério público), afora intensa atividade de processamento e julgamento de demandas de controle oriundas de dentro e de fora das instituições.

O futuro próximo aponta para a priorização de outros objetivos: o planejamento estratégico e o combate multidirecional à ineficiência das atividades jurisdicionais e ministeriais, em mais um capítulo dessa ainda breve história de duas instituições que, ao cabo, agem sempre no intuito de resgatar a respeitabilidade do sistema de justiça, tornando-o, a um só tempo, mas ágil, transparente, moderno e ético.

Notas do autor:
1. Artigo adaptado de texto destinado à apresentação da Oficina O PAPEL DO CNJ E DO CNMP E OS RESULTADOS PRÁTICOS, no CONGRESSO BRASILEIRO DE CARREIRAS JURÍDICAS DE ESTADO, realizado em junho/2008, em Brasília.
2. Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (biênio 2007/2009). Juiz Titular da 6ª Vara do Trabalho de Brasília/DF. Mestre em Direito e Estado pela Faculdade de Direito da UnB – Universidade de Brasília. Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor universitário. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT/TST.
3. Para uma visão histórica e crítica da evolução do conceito de separação de poderes: SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto de. O Supremo Tribunal Federal e as questões políticas. Porto Alegre: Síntese, 2004, p. 27-54.
4. MONTESQUIEU. O espírito das leis. Trad. Cristina Murachco, 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 166.
5. Em aritmética imprecisa, pois certas instituições não se acomodam confortavelmente em nenhum dos 3 (por exemplo, o Ministério Público).
6. MADISON, James; HAMILTON, Alexander, e JAY, John. Os artigos federalistas, 1787-1788: edição integral. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 479.
7. “Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo:
I – um Ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo respectivo tribunal;
II – um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal;
III – um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal;
IV – um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
V – um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
VI – um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VII – um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VIII – um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;
IX – um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;
X – um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República;
XI – um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual;
XII – dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
XIII – dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.
§ 1º. O Conselho será presidido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, que votará em caso de empate, ficando excluído da distribuição de processos naquele tribunal.
§ 2º. Os membros do Conselho serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
§ 3º. Não efetuadas, no prazo legal, as indicações previstas neste artigo, caberá a escolha ao Supremo Tribunal Federal.
§ 4º. Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:
I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;
III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade;
V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;
VI – elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;
VII – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.
§ 5º. O Ministro do Superior Tribunal de Justiça exercerá a função de Ministro-Corregedor e ficará excluído da distribuição de processos no Tribunal, competindo-lhe, além das atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura, as seguintes:
I – receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços judiciários;
II – exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral;
III – requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios.
§ 6º. Junto ao Conselho oficiarão o Procurador-Geral da República e o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
§ 7º. A União, inclusive no Distrito Federal e nos Territórios, criará ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça.”
8. “Art. 130-A. O Conselho Nacional do Ministério Público compõe-se de quatorze membros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para um mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo:
I – o Procurador-Geral da República, que o preside;
II – quatro membros do Ministério Público da União, assegurada a representação de cada uma de suas carreiras;
III – três membros do Ministério Público dos Estados;
IV – dois juízes, indicados um pelo Supremo Tribunal Federal e outro pelo Superior Tribunal de Justiça;
V – dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VI – dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.
§ 1º. Os membros do Conselho oriundos do Ministério Público serão indicados pelos respectivos Ministérios Públicos, na forma da lei.
§ 2º. Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo-lhe:
I – zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência dos Tribunais de Contas;
III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Ministério Público da União ou dos Estados, inclusive contra seus serviços auxiliares, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
IV – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de membros do Ministério Público da União ou dos Estados julgados há menos de um ano;
V – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias sobre a situação do Ministério Público no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar a mensagem prevista no art. 84, XI.
§ 3º. O Conselho escolherá, em votação secreta, um Corregedor nacional, dentre os membros do Ministério Público que o integram, vedada a recondução, competindo-lhe, além das atribuições que lhe forem conferidas pela lei, as seguintes:
I – receber reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos membros do Ministério Público e dos seus serviços auxiliares;
II – exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e correição geral;
III – requisitar e designar membros do Ministério Público, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de órgãos do Ministério Público.
§ 4º. O Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil oficiará junto ao Conselho.
§ 5º. Leis da União e dos Estados criarão ouvidorias do Ministério Público, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Ministério Público, inclusive contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional do Ministério Público.”
9. ADC-MC 12, Rel. Min. CARLOS BRITTO, j. 16.2.2006, DJU 1.9.2006.
10. STF, ADI 3367, Rel. Min. CÉZAR PELUSO, j. 13.4.2005, DJU 17.3.2006.


Extraído do Boletim Mensal de Doutrina e Jurisprudência do CNJ, número 03, abril de 2009.

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