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22 julho 2009

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DIRETA - PARTE 1



Carlos Eduardo Cabral Beloti
Especialista em Direito Processual; Pós-graduando em Gestão Jurídica da Empresa; Advogado.

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo discutir sobre a possibilidade, ou não, de o Ministério Público realizar diretamente a investigação de cunho criminal, função que alguns defendem ser exclusivamente policial. O artigo apresentará as formas de investigações criminais legalmente permitidas, principalmente o inquérito policial. Estudar-se-á também qual o sistema de investigação adotado pela Constituição de 1988. Serão demonstradas, ainda, as funções do Ministério Público frente a esse sistema e as variadas teses, argumentos e posições existentes sobre a problemática apresentada; tudo para ao fim demonstrar que não pode haver um super poder, excedente aos dos demais órgãos dentro de um Estado democrático de direito, o que acarretaria o desequilíbrio do sistema processual penal caso o Ministério Público conduzisse diretamente, vale dizer, sem a fiscalização de nenhum órgão, a investigação criminal.

Palavras-chave: Ministério Público. Investigação criminal direta.

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. O inquérito policial. 2.1. O inquérito policial e a Constituição Federal de 1988. 2.2. O inquérito e o código de processo penal. 2.3. Outras formas de investigação. 3. O Ministério Público. 3.1. História. 3.1.1. O Ministério Público antes da Constituição de 1988. 3.1.2. O Ministério Público depois da Constituição de 1988. 3.2. Funções do Ministério Público. 4. O sistema processual penal brasileiro. 4.1. Sistema acusatório. 4.1.1. Sistema de freio e contrapeso. 5. O Ministério Público e a investigação criminal direta. 5.1. Argumentos a favor. 5.1.1. Ineficiência/ineficácia das instituições policiais. 5.1.2. O membro do Ministério Público possui independência funcional, inamovibilidade e vitaliciedade. 5.1.3. O Ministério Público possui autonomia funcional. 5.1.4. Quem pode o mais, pode o menos. 5.1.5. Autorização constitucional e infraconstitucional para investigar. 5.2. Argumentos contra. 5.2.1. Ausência de previsão constitucional e infraconstitucional expressa. 5.2.2. Monopólio da investigação criminal pela polícia. 5.2.3. Desvio de função. 5.3. Posição da Ordem dos Advogados do Brasil. 5.4. A posição do Supremo Tribunal Federal. 6. A investigação criminal pelo Ministério Público e o (des)equilíbrio do sistema processual penal. 7. Conclusões.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal estabeleceu às polícias, Federal e Civil, as funções de investigar e servir de órgão auxiliar do Poder Judiciário na atribuição de apurar a ocorrência e a autoria de crimes e contravenções penais (art. 114, CF). Ao Ministério Público foi reservada a titularidade da ação penal, exceto nos casos de ação penal privada e quando a ação penal não for intentada no prazo legal (art. 5º, LIX, CF). Mesmo com a falta de previsão legal, o Ministério Público reclama a prerrogativa de realizar a investigação criminal diretamente.

Consoante a mais moderna orientação do processo penal, deve-se agilizar a investigação criminal. Estudar e entender as conseqüências da aplicação que cada posicionamento sobre o tema pode causar ao equilíbrio do sistema processual penal, e compreender as necessidades, dificuldades e problemas que o processo penal brasileiro enfrenta, é assegurar a aplicação das garantias constitucionais dentro do processo penal, possibilitando a criação de mecanismos eficazes para a busca da agilização e simplificação da atividade investigatória.

Torna-se imperioso mostrar que tanto a Polícia Judiciária quanto o Ministério Público, ao desempenharem suas atividades essenciais, cada qual no mister que a Constituição Federal lhes outorgou, contribuirão para a concretização do regime democrático e assegurarão o equilíbrio ao sistema processual penal.

2. O INQUÉRITO POLICIAL

O inquérito policial pode ser definido como um procedimento investigatório prévio, constituído por uma série de diligências, cuja finalidade é a obtenção de indícios para que o titular da ação penal possa propô-la contra o autor da infração penal.

No mesmo sentido está o ensinamento de Fernando Capez (1998, p.64).

A primeira definição de inquérito policial no Brasil surgiu com a edição da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto-lei 4.824, de 28 de novembro de 1871, onde se lia da mencionada lei, em seu artigo 42 o seguinte: "O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito".

Em 1882, propôs-se a extinção do inquérito policial, argumentando-se que era um procedimento que dificultava a defesa do acusado, o que não ocorreu devido ao advento da República. (BITTENCOURT, 2002).

Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho, "Inquérito Policial é o conjunto de diligências realizadas pela Polícia visando a investigar o fato típico e a apurar a respectiva autoria". (2004, p. 27).

Para Guilherme de Souza Nucci (2006, p.125) o inquérito policial é "o principal instrumento investigatório no campo penal, cuja finalidade principal é estruturar, fundamentar e dar justa causa à ação penal".

Para Luiz Alberto Machado apud Nestor Sampaio Penteado Filho (2002), o inquérito não pode ser visto somente como mera coleta de informações que embasarão a denúncia do Ministério Público. A atividade policial não é subordinada, e sim, antecipada.

Como é cediço, o Estado tomou para si a exclusividade do poder de punir o indivíduo. Mesmo no caso de ação penal exclusivamente privada, o Estado somente delega ao ofendido a legitimidade de dar início ao processo, conservando consigo a exclusividade do jus puniendi.

Sendo o Estado o titular do direito de punir, ele instituiu dois organismos dedicados a essa atividade: a Polícia e o Ministério Público.

Pode-se afirmar que o persecutio criminis se desenvolve em dois instantes. No primeiro, o Estado representado pela Polícia investiga o fato, apurando quem o cometeu. Para essa primeira etapa dá-se o nome de inquérito.

O inquérito policial não é o único meio previsto constitucionalmente como alicerce da ação penal, como será estudado mais adiante. Contudo, conforme o próprio nome já diz, o inquérito policial é atividade investigatória da polícia judiciária – federal e estadual.

Concluídas as investigações, será o inquérito encaminhado a outro órgão do Estado, o Ministério Público, a quem cabe promover a ação penal, isto é, levar ao conhecimento do juiz a notícia do cometimento de um crime, juntamente com o autor do fato e pedindo-lhe o julgamento. Estamos nos referindo à segunda etapa da persecutio criminis.

Anota Fernando da Costa Tourinho Filho (2004, p. 29) que, como essa etapa se desenvolve em Juízo, é chamada de persecutio criminis in judicio.

Neste primeiro instante, somente nos interessa a definição de inquérito policial e suas características, uma vez que o Ministério Público será tratado mais adiante neste trabalho.

O inquérito será sempre um procedimento escrito ou datilografado, atendendo à sua finalidade, que outra não é senão a de prestar as devidas informações ao titular da ação penal, conforme ensina Fernando da Costa Tourinho Filho (1994, p.187).

Será também sigiloso, nos termos do artigo 20 do Código de Processo Penal. Tal medida visa evitar que a publicidade em relação às provas já colhidas e àquelas que a autoridade pretende obter prejudiquem a apuração do ilícito.

O inquérito policial é uma atividade oficial, não podendo ficar a investigação a cargo do particular, mesmo que seja o ofendido o titular da ação penal.

Por ser um procedimento realizado por órgãos oficiais, será presidido por autoridade pública, no caso, o delegado de polícia.

Após iniciado o inquérito, a autoridade policial não poderá arquivá-lo, residindo aí sua indisponibilidade, conforme preceitua o artigo 17 do Código de Processo Penal.

Por fim, o inquérito policial é inquisitivo, ou seja, não permite ao indiciado ou suspeito a ampla oportunidade de defesa, direito que, como regra, encontra-se presente durante a instrução judicial.

Para evitar acusações infundadas, serve também o inquérito de filtro processual.

Vimos que o inquérito é procedimento destinado à apuração de infrações penais, inclusive a sua autoria, possuindo como características a escrita, o sigilo, a oficialidade, a autoritariedade, a indisponibilidade e a inquisição, desempenhando, ainda, a função de filtro processual. Para melhor elucidação do tema, passaremos a estudar o inquérito policial na Constituição Federal de 1988.

2.1. O INQUÉRITO POLICIAL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O termo inquérito policial somente aparece na Constituição Federal de 1988 uma única vez, no artigo 129, inciso VIII, que trata das funções do Ministério Público.

Contudo, a mesma Carta Política, em seu artigo 144, § 1º, inciso I, estabeleceu que a Polícia Federal destina-se a:

apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei.

Um pouco mais adiante, no § 4º do já mencionado artigo, a Carta Política de 1988 estabelece:

Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

Ainda neste capítulo, em subtítulo próprio, será tratado de outras formas de investigação que não a feita pela polícia através do inquérito, que é um procedimento administrativo, inquisitivo, sigiloso, escrito e foi outorgado pelo constituinte à polícia judiciária.

Complementando este capítulo, estudaremos o inquérito policial à luz do Código de Processo Penal.

2.2. O INQUÉRITO E O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

O inquérito policial está regulado no Código de Processo Penal, no Livro I, título II, do artigo 4º ao artigo 23.

Logo no artigo 4º, fica estabelecido que a polícia judiciária, exercida pelas autoridades policiais, terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Contudo, o parágrafo único do artigo retro mencionado estabelece que aquela competência (apuração das infrações penais e da sua autoria) não excluirá a de autoridades administrativas, a quem a lei comine a mesma função.

Em seguida, o artigo 5º e seus incisos e parágrafos, estabelecem as condições para que o inquérito seja iniciado.

Os artigos 6º e 7º trazem as diligências que podem ser realizadas pela autoridade policial. Destacam-se os incisos III, IV e V do artigo 6º, os quais estabelecem que a autoridade policial deverá colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato, bem como ouvir o ofendido e o indiciado.

O inquérito deverá terminar no prazo de dez dias, se o indiciado estiver preso, ou, em trinta dias, caso esteja ele solto, com ou sem fiança, conforme prevê o artigo 10. Caso seja o fato de difícil elucidação, poderá a autoridade policial requerer ao juiz a devolução dos autos para ulteriores diligências, é o que indica o parágrafo 3º do artigo 6º do Código de Processo Penal.

Outra incumbência à autoridade policial será a de realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público, conforme dispõe o artigo 13, inciso II, do Código de Processo Penal.

Prega o artigo 16 que o Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis para o oferecimento da denúncia.

A autoridade policial não poderá arquivar o inquérito policial, e este, após decisão de autoridade judiciária que ordenar o seu arquivamento, não poderá ser reaberto, caso não haja notícias de novas provas. Estas regras estão consagradas nos artigos 17 e 18.

Encontramos no artigo 20 do Código de Processo Penal a regra de que a autoridade assegurará o sigilo do inquérito.

De todo o apurado no inquérito policial, a autoridade fará relatório, que será remetido ao juiz competente.

São estas as regras, pelo menos as principais, referentes ao inquérito policial dentro do Código de Processo Penal, que como já dito, é um procedimento investigatório.

Para encerrar o estudo deste capítulo, ainda que superficialmente, analisaremos outras formas de investigações consagradas, seja pela Constituição Federal de 1988 ou em legislação infraconstitucional.

2.3. OUTRAS FORMAS DE INVESTIGAÇÃO

O legislador previu que outras autoridades podem realizar investigações criminais, não sendo, portanto, a investigação criminal uma exclusividade da polícia judiciária.

É o que se vê esculpido no art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, já mencionado neste trabalho.

Com proficiência, Fernando da Costa Tourinho Filho ensina que o parágrafo único do artigo 4º deixa entrever que essa competência atribuída inicialmente à polícia não lhe é exclusiva, podendo outras autoridades administrativas, dentro de suas respectivas áreas de atividade, realizar investigações. (2004, p.32).

Guilherme de Souza Nucci (2006, p.128/129), cita como exemplo, quando um juiz é investigado.
Segundo dispõe o art. 33, parágrafo único, da Lei Complementar 35/1979, ‘quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao tribunal ou Órgão Especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação’.

O mesmo se dá, quando no curso de investigação, houver indícios da prática de infração penal por parte de membro do Ministério Público.

Discorrendo sobre o tema ‘Inquéritos extrapoliciais’, Fernando Capez (1998, p.67/68) assevera:

O art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal deixa claro que o inquérito realizado pela polícia judiciária não é a única forma de investigação criminal. Há outras, como por exemplo, o inquérito realizado pelas autoridades militares para a apuração de infrações de competência da Justiça Militar (IPM); (...); as investigações efetuadas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), as quais terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (...); o inquérito civil público, instaurado pelo Ministério Público para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, III), e que, eventualmente, poderá apurar também a existência de crime conexo ao objeto da investigação; o inquérito em caso de infração penal cometida na sede ou dependência do Supremo Tribunal Federal (RISTF, art. 43); o inquérito instaurado pela Câmara dos Deputados ou Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências (...).

Lembra Guilherme de Souza Nucci (2006, p.129) que

é possível admitir-se a produção de provas por quem não está autorizado legalmente a colher elementos para dar fundamento à ação penal, como, por exemplo, colher ‘declarações de pessoas’ em notários, que não têm atribuição legal para isso.

Tanto o inquérito policial, quanto as demais investigações, ambos presididos por autoridades, têm por finalidade apurar as infrações penais e suas respectivas autorias, para que, mais tarde, o titular da ação penal, seja o Ministério Público, seja o particular, possa, com base nessas investigações, dar início à ação penal.

A Constituição Federal garante ao Ministério Público a competência para expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência. Esta é a inteligência do inciso VI do artigo 129 da Constituição Federal.

É de se ressaltar que tais procedimentos administrativos são civis. Em algumas legislações infraconstitucionais existe o permissivo que garante ao Ministério Público requisitar informações, exames, perícias e documentos da administração direta e indireta, bem como promover inspeções e diligências investigatórias. É o que se dá nas Leis nº. 8.069/1999 e 10.741/2003, denominadas, respectivamente, Estatuto da Criança e do Adolescente e Estatuto do Idoso.

Fernando Capez (2005) leciona que a atividade investigatória não é atividade exclusiva da polícia, existindo no ordenamento outros órgãos encarregados da atividade de investigar, tais como: a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), o Ministério da Justiça, por meio do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), as Corregedorias da Câmara e do Senado Federal, os Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos Municípios, onde houver, a Receita Federal, o STF (Supremo Tribunal Federal), o STJ (Superior Tribunal de Justiça), os Tribunais Federais e os Tribunais de Justiça dos Estados.


Na mesma esteira de pensamento é a lição de Fernando da Costa Tourinho Filho (2004, p. 32) que ensina que a competência atribuída à Polícia não lhe é exclusiva, nada impedindo que autoridades administrativas outras, possam, também, dentro de suas respectivas áreas de atividades, proceder investigações.

Analisados os elementos de maior relevância a respeito do inquérito policial e das demais formas de investigação legalmente previstas em nosso ordenamento, ressalte-se, sobre os quais não tivemos a pretensão de esgotar o assunto, cumpre-nos, agora, trazer à baila a história do Ministério Público antes e depois da Constituição Federal de 1988, e suas funções.

Extraído de Newsletter Magister Edição n. 931 - 21.jul.2009

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