Translate

13 setembro 2010

TUTELA JURISDICIONAL DAS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA-1

Parte 1/2


José Rogério Cruz e Tucci
Advogado em São Paulo. Ex-Presidente da AASP. Sócio benemérito da AASP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Ex-Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP. Assessor ad hoc da FAPESP.

“A mesma tutela geral da personalidade, singularizada no ser do respectivo titular, nos parece valer para qualquer portador de deficiência física ou psíquica”
(Radindranath V. A. Capelo de Sousa, O direito geral da personalidade, Coimbra, Coimbra Ed., 1995, p. 174)

Sumário: 1. Proporcionalidade e igualdade substancial. 2. Positivação dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. 3. Atribuições correlatas do Ministério Público. 4. Aspectos processuais e meios adequados de tutela. 5. Considerações conclusivas.

1. Proporcionalidade e igualdade substancial

Segundo o enfático enunciado do art. 5º, e seu inc. I, da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Pela incidência do decantado princípio da proporcionalidade, a compreensão da verdadeira igualdade de todos perante a lei deve, necessariamente, considerar as diversidades existentes entre os homens, uma vez que o tratamento igual a pessoas que se encontram em situações diferentes constituiria autêntica iniqüidade.

Daí, a célebre e difundida doutrinação de Rui Barbosa, ao traçar a discrepância ontológica entre igualdade formal e igualdade substancial: “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. Com efeito, “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. A igualdade e a desigualdade são ambas direito, conforme as hipóteses e situações...”.

Dentre as múltiplas “hipóteses e situações” emergentes da vida social, assevera Hugo Nigro Mazzilli que, desde tempos imemoriais, faz parte da inerente condição do ser humano conviver com limitações próprias ou alheias, tanto na área sensorial, motora, intelectual, funcional, orgânica, comportamental ou de personalidade. Na verdade – continua -,“constituem contingente muito expressivo da sociedade as pessoas que ostentam alguma forma de limitação, seja congênita ou adquirida. As guerras, a subnutrição, o subdesenvolvimento social e econômico, os acidentes ecológicos, pessoais, de trânsito ou do trabalho, o uso indevido de drogas e a falta de uma política pré-natal ou sanitária adequada – tudo isso contribui para o surgimento de diversas limitações ao ser humano, limitações essas que, infelizmente, acabam tornando-se verdadeiras condições marginalizantes dos indivíduos, afastando-os de uma vida social na sua plenitude”.(1)

2. Positivação dos direitos das pessoas portadoras de deficiência

Na esteira de outras legislações modernas, a nossa Constituição Federal em vigor, em vários dispositivos,conferiu expressa proteção às pessoas portadoras de deficiência, com o inescondível escopo de integrá-las, tanto quanto possível, no convívio social.

O legislador constituinte, como é cediço, norteou-se pelo direito fundamental da dignidade da pessoa humana.(2)

Em seguida, para reduzir as desigualdades existentes nesse horizonte, foi editada a Lei 7.853, de 24 de outubro de 1989, que regrou o apoio aos deficientes, reconhecendo-lhes o direito à educação, à saúde, à formação profissional e à inclusão no trabalho, e, ainda, disciplinou a respectiva tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos em relação a tais pessoas, inclusive no que concerne à relevante atuação do Ministério Público.

Verifica-se, pois, que, acerca desse importante tema, a legislação brasileira coloca-se em perfeita sintonia com as resoluções da Organização das Nações Unidas-ONU referentes aos direitos das pessoas portadoras de alguma espécie de deficiência.(3)

Cumpre esclarecer, a esse propósito, que o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Dec. 3.956/2001).(4)

3. Atribuições correlatas do Ministério Público

Em simetria com a ampliação institucional das funções do Ministério Público introduzida pela Constituição Federal de 1988, os arts. 3º e 6º da Lei 7.853/89 atribuem ao parquet, no que toca às posições jurídicas subjetivas dos deficientes, legitimidade para instaurar inquérito civil, com poder de requisição de informações a quaisquer órgãos, e,outrossim, aforar ação civil pública, destinada à proteção de interesses coletivos ou difusos de tais pessoas.

Cumpre observar que o regime procedimental da ação civil pública instituído pelo referido diploma legal extravagante autoriza a intervenção incidental de quaisquer outros legitimados (art. 3º, § 5º).

Como bem lembra Hugo Mazzilli, “deve, ainda, o Ministério Público zelar para que os Poderes Públicos e os serviços de relevância pública observem os princípios constitucionais de proteção às pessoas portadoras de deficiência, como o acesso a edifícios públicos ou o preenchimento de empregos públicos (CF, art. 129, II; Lei 8.625/93, art. 27, IV; LC 75/93, art. 6º, XX). No exercício dessa atividade de ombudsman, pode a instituição, entre outras providências, realizar audiências públicas e expedir recomendações a respeito”.(5)

Aduza-se que nas causas, individuais ou coletivas,nas quais são questionados direitos relacionados à portadores de deficiência, consoante o disposto no art. 5º da apontada Lei 7.853/89, a intervenção do Ministério Público, quando este não figurar como autor, irrompe obrigatória.

Não provocada a sua intervenção na condição de custos legis, impõe-se a declaração de nulidade do processo. Foi,aliás, esse entendimento que prevaleceu no julgamento da Apelação n. 1999.01.1.029545-6, da 4ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, ao patentear que: “a presença de interesses relacionados àdeficiência das pessoas impõe a intervenção obrigatória do Ministério Público, nos termos do art. 5º da Lei 7.853/89 c/c inc. III do art. 82 do Código de Processo Civil, sob pena de nulidade, que aqui se declara, com base no art. 264 do mesmo diploma processual...”.

Notas do Autor:

1. Cf. Hugo Nigro Mazzilli, O Ministério Público e a pessoa portadora de deficiência, Revista de direitos difusos, v. 4, p. 445.
2. V., sobre o tema, Luiz Antônio Rizzatto Nunes, O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, São Paulo, Saraiva, 2002.
3. A Resolução XXX/3.447, de 1975, teve a prudência de conceituar a expressão “pessoa deficiente”, como sendo aquela “incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais” (apud Mazzilli, op. cit., p. 447).
4. Consulte-se, sobre esse assunto, Sylvia Helena F. Steiner, A proteção internacional das pessoas portadoras de deficiência, Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência, obra coletiva coord. por Luiz Alberto David Araújo, São Paulo, Ed. RT, 2006, p. 295 ss.
5. O Ministério Público e a pessoa portadora de deficiência, cit., p. 457

Extraído da Revista Eletrônica do Conselho Federal da OAB, Nov/dez/2009, no. 08

Nenhum comentário: