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17 setembro 2010

REFLEXÕES SOBRE O DANO SOCIAL-3

Parte 3-Final

Flávio Tartuce
Doutorando em Direito Civil pela USP e Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Coordenador e professor dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito (EPD, São Paulo). Professor convidado em outros cursos de pós-graduação, na ESA-OAB/SP e em Escolas da Magistratura. Autor da Editora Método. Advogado e Consultor Jurídico em São Paulo.


4. O DANO SOCIAL E A QUESTÃO DAS BALAS PERDIDAS


Nosso País vive uma triste realidade social. Nos grandes centros urbanos, a violência e a miséria se alastram. Turbas armadas, e até organizadas, causam terror e medo. Mesmo pequenas cidades do interior se vêem invadidas por quadrilhas de criminosos profissionais, dispostos a assaltar os bancos locais. E o Estado Oficial nada faz. Em algumas cidades, já há o Estado Paralelo, disputando poder com aquele que antes detinha o monopólio.[35]

Nesse cenário, balas traçam o ar. Algumas vezes atingem os alvos. Outras, atingem outros destinatários. Vivemos a realidade das balas perdidas. Algumas vezes, na verdade, balas achadas, como se quer denominar.[36] Além de atingirem pessoas determinadas, não há dúvida de que as balas perdidas causam um enorme dano social.[37]

Diante dessa triste realidade contemporânea, parece-nos que a idéia de dano social pode servir para um novo dimensionamento à responsabilidade civil do Estado (no caso do Estado Oficial). Ora, se a responsabilidade civil tem um intuito pedagógico – ou punitivo como querem alguns -, deve trazer impacto àquele que não está fazendo a lição de casa. E pode-se dizer que, no quesito segurança – como também em outros -, o Estado não vem cumprindo as suas obrigações assumidas perante a sociedade. A sua conduta, nessa área, pode ser tida como socialmente reprovável.

Assim, deve ser imediatamente revista e repensada a aplicação da tese da responsabilidade civil do Estado por omissão e, portanto, subjetiva e dependente de culpa, nos casos de falta de segurança.[38] Além do âmbito doutrinário, essa tese também deve ser repensada no âmbito jurisprudencial.[39]

Especificamente no tocante às balas perdidas, o que se vê, também infelizmente, são julgados apontando para a não reparação dos danos delas advindos.[40] Em alguns casos, todavia e felizmente, se faz justiça, aplicando-se a regra da responsabilização objetiva, independentemente de culpa, do Estado.[41]

Para essa nova forma de pensar a responsabilidade civil do Estado, entra em cena o conceito de responsabilidade pressuposta, tão bem desenvolvido por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua tese de livre-docência, defendida na Universidade de São Paulo.[42] É preciso visualizar novos horizontes para a responsabilidade civil, muito além da discussão de culpa (responsabilidade subjetiva) ou da existência de riscos (responsabilidade objetivo). Assim, deve-se pensar, antes de qualquer coisa e em primeiro lugar, em indenizar as vítimas, para depois se verificar, em um segundo plano, quem foi o culpado ou quem assumiu os riscos de sua atividade. Essa é a essência, em nossa opinião, da responsabilidade pressuposta.

A partir dessa idéia, os danos assumem o papel fundamental na teoria geral da responsabilidade civil. Do ponto de vista das categorias jurídicas, anteriormente, poderia-se pensar ser inviável que a existência de danos pudesse gerar a responsabilidade civil sem que estivesse muito clara a existência do nexo de causalidade. A tese não mais prospera na realidade contemporânea com base na idéia de responsabilidade pressuposta.

Em suma, o que propomos, refletindo sobre a idéia de dano social, é que seja dado um novo dimensionamento para a questão em debate. Como nos casos de balas perdidas há um dano a toda a sociedade, o Estado deve ser responsabilizado. O dano social entra em cena para reverter a antiga tese. A responsabilidade do Estado, por atos inoperantes de seus agentes, os quais não se preocupam com a segurança em sentido amplo ou estrito, deve ser objetiva. Além disso, pode-se até pensar que a responsabilidade do Estado é pressuposta: as vítimas devem ser reparadas, para depois se investigar quem é o culpado.

5. CONCLUSÕES FINAIS SOBRE O DANO SOCIAL

Do que foi exposto no presente artigo, pode-se chegar às seguintes conclusões:

a) Tem razão Antonio Junqueira de Azevedo quando propõe a idéia do dano social como nova modalidade de dano reparável entre nós, cumulável com o dano material, o dano moral e o dano estético.

b) O dano social é aquele que repercute socialmente, podendo gerar prejuízos de ordem patrimonial ou imaterial aos membros da coletividade. Há um rebaixamento moral, uma perda de qualidade de vida. O dano social está caracterizado, por exemplo, nas condutas socialmente reprováveis, que fazem mal ao coletivo, movidas pelo intuito egoísta.

c) A tendência de alargamento dos legitimados a pleitear indenização, particularmente por danos imateriais, reforça a idéia do dano social como dano reparável.

d) Esse reforço também pode ser suscitado com o debate acerca dos danos morais coletivos, cuja viabilidade também deve ser reconhecida. Apesar de não se confundir com os danos sociais, os danos morais coletivos com eles mantêm tênue relação.

e) Como repercussão prática da idéia do dano social, deve-se refletir novamente no tocante à responsabilidade civil do Estado por omissão, particularmente pelas balas perdidas, triste realidade brasileira. O dano social pode servir de apoio para uma maior responsabilidade estatal pela segurança. Mais do que isso, a responsabilidade pressuposta pode entrar em cena para responsabilizar o Estado por tais ocorrências.

f) O dano social, aliado à idéia de responsabilidade pressuposta, representa um novo e importante dimensionamento que deve ser dado à teoria geral da responsabilidade civil.

Notas do Autor:

[35] Sobre o tema, tratando de uma cidade em específico, no caso a Cidade Maravilhosa desse País: PEREIRA DE AGUIAR, Carlos Alberto. A miséria e a criminalidade no Rio de Janeiro. In: Couto, Antonio; Slaibi Filho, Nagib; Alves, Geraldo Magela. A responsabilidade civil e o fato social no século XXI. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 159-169.

[36] Sobre a expressão balas achadas, pode ser citado texto de Ivan Lessa, constante do site da BBC Brasil: “Quando sugeri a meus conterrâneos tomarem nota, não foi por maldade nem insinuando nada. Foi apenas confirmando aberta e corajosamente a fama que temos de sermos não só o país do samba e do futebol, das favelas e das balas achadas e perdidas, mas também o ‘país capital mundial do suborno’, sendo que essas aspas aí são mero cacoete ou figa contra mau olhado ou processo. Culpa minha não, essa fama. Vocês aí que cuidem desse troço.” (Buraco quente. Disponível em: . Acesso em: 5 jun. 2007).

[37] Quanto aos danos patrimoniais, podem ser citadas a desvalorização de algumas áreas urbanas, a diminuição de investimentos privados, a perda de mão-de-obra jovem, a fuga das grandes cidades. Do ponto de vista imaterial, podem ser citados o medo, a sensação de insegurança, os traumas urbanos, a perda de pessoas da família, a descrença em relação à juventude, a perda da esperança etc.

[38] Essa visão, na doutrina, é atribuída, entre outros a Celso Antonio Bandeira de Melo (Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 976-981). Com máximo respeito, não contestamos toda a genialidade da contribuição do eminente jurista para a construção do Direito Administrativo Brasileiro. Apenas propomos, na atual e infeliz realidade, que a tese seja repensada e refletida diante daquilo que vivemos. Por óbvio que o Estado não é a cura de todos os males, mas deve assumir o mínimo de suas obrigações, de acordo com a idéia de Estado Social, o que não vem ocorrendo. Há, na verdade, um Estado Ausente e Assistencialista, nada mais do que isso.

[39] No âmbito do Supremo Tribunal Federal, pode ser transcrito o seguinte julgado, com o qual não se pode concordar: “CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS PÚBLICAS. ATO OMISSIVO DO PODER PÚBLICO. LATROCÍNIO PRATICADO POR APENADO FUGITIVO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. CULPA PUBLICIZADA. FALTA DO SERVIÇO. CF, art. 37, § 6º. I – Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, esta numa de suas três vertentes, a negligência, a imperícia ou a imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. II – A falta do serviço – faute du service dos franceses – não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre a ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. III – Latrocínio praticado por quadrilha da qual participava um apenado que fugira da prisão tempos antes: neste caso, não há falar em nexo de causalidade entre a fuga do apenado e o latrocínio. Precedentes do STF: RE 172.025/RJ, Ministro Ilmar Galvão, ‘DJ de 19.12.96; RE 130.764/PR, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 143/270. IV – RE conhecido e provido RE 369820 / RS – RIO GRANDE DO SUL, RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator(a): Min. Carlos Velloso  Julgamento: 04/11/2003 Órgão Julgador: Segunda Turma).

[40] “EMBARGOS INFRINGENTES. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO POLICIAL. BALA PERDIDA. NEXO CAUSAL INCOMPROVADO. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. PROVIMENTO DO RECURSO. A responsabilidade do Estado, ainda que objetiva em razão do disposto no art. 37, § 6º da Constituição Federal, exige a comprovação do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano. Não havendo nos autos prova de que o ferimento causado a vítima tenha sido provocado por disparo de uma das armas utilizada pelos Policiais Militares envolvidos no tiroteio, por improcedente se mostra o pedido indenizatório. Daí, em sem mais delongas, a razão de não existir fundamento justo para se imputar ao Estado a responsabilidade pelo evento danoso, por mais trágico que tenha sido o ocorrido na vida do autor postulante”. (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2006.005.00292 – Embargos Infringentes, Des. Maldonado de Carvalho – Julgamento: 30/01/2007 – Primeira Câmara Cível). “RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. INDENIZAÇÃO. PRETENSÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E ESTÉTICO. BALA PERDIDA. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. NÃO PODE O ESTADO SER RESPONSABILIZADO POR BALA PERDIDA QUE ATINGIU A APELANTE, QUANDO NÃO TRAZIDO AOS AUTOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS QUE A TANTO CONDUZAM. INEXISTÊNCIA NOS AUTOS DE COMPROVAÇÃO DE QUE O PROJÉTIL DE ARMA DE FOGO QUE CAUSOU O FERIMENTO SOFRIDO PELA RECORRENTE TENHA PARTIDO DE ARMAS UTILIZADAS PELOS POLICIAIS MILITARES, NÃO HÁ COMO SE IMPUTAR AO APELADO A RESPONSABILIDADE PELO DANO A ELA CAUSADO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA QUE SE MOSTROU CORRETA E QUE SE MANTÉM. RECURSO NÃO PROVIDO” (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2006.001.35996 - Apelação Cível, Des. Ismenio Pereira de Castro – Julgamento: 13/12/2006 - Décima Quarta Câmara Cível). “RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. APELANTE ATINGIDO POR BALA PERDIDA. FERIMENTO NO TORNOZELO DIREITO. NÃO HÁ PROVA QUANTO A ORIGEM DO DISPARO, NÃO ESTANDO CONFIGURADO O LIAME CAUSAL. NÃO HÁ QUALQUER CONDUTA OU OMISSÃO DE AGENTE DO ESTADO A ENSEJAR DEVER DE INDENIZAR. IMPOSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. IMPROVIMENTO DO RECURSO” (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2006.001.36441 – Apelação Cível, Des. Luis Felipe Salomão – Julgamento: 17/10/2006 – Sexta Câmara Cível).

[41] “EMBARGOS INFRINGENTES EM APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ARTIGO 37, § 6º DA CF. TIROTEIO. VÍTIMA ATINGIDA POR BALA PERDIDA. CONFRONTO ENTRE POLICIAIS MILITARES E TRAFICANTES, RESULTANDO NA AMPUTAÇÃO DA PERNA DIREITA DA AUTORA. AO CONTRÁRIO DO SUSTENTADO PELO EMBARGANTE REVELA-SE DEMASIADO EXIGIR DA PARTE AUTORA A PROVA MATERIAL INDICATIVA DA ARMA DE FOGO DE ONDE TERIA PARTIDO O PROJÉTIL, SENDO SUFICIENTE A DEMONSTRAÇÃO DO CONFRONTO. COMPROVAÇÃO DO FATO, DO DANO E DO NEXO DE CAUSALIDADE. DANOS MORAIS FIXADOS EM R$ 52.000,00 (CINQUENTA E DOIS MIL REAIS). MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO PELOS SEUS PRÓPRIOS E JUDICIOSOS FUNDAMENTOS. CONHECIMENTO DOS RECURSOS PARA NEGAR PROVIMENTO” (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2005.005.00486 – Embargos Infringentes, Des. Siro Darlan de Oliveira – Julgamento: 21/02/2006 – Décima Sexta Câmara Cível).

[42] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

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Extraído de EVOCATI Revista nº 47 (17/11/2009)

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