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10 setembro 2010

NOTAS SOBRE ALGUNS FATORES EXTRAJURÍDICOS NO JULGAMENTO COLEGIADO-3

Parte 3-Final


José Carlos Barbosa Moreira

Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro


4. O modo do julgamento


a) Publicidade ou sigilo

O aspecto formal dos julgamentos é aquele de que em geral se ocupam mais extensa e pormenorizadamente as leis e os regimentos internos dos tribunais.

Fiéis ao programa traçado de início, concentraremos aqui a nossa atenção menos na problemática de ordem técnico-jurídica que semelhante disciplina suscita do que no influxo que a respectiva solução pode exercer de fato sobre o teor das decisões colegiadas. Dificilmente lograremos evitar, contudo - nem poremos nisso especial empenho -, referências ocasionais àquela problemática, na medida em que se mostrem necessárias ou úteis à clareza da exposição.

Uma das primeiras questões que reclamam aqui a atenção do observador é a da opção entre o sistema da deliberação pública e o sistema da deliberação secreta.

Como se sabe, predomina largamente o segundo os ordenamentos continentais europeus, o primeiro no direito anglo-saxônico e no brasileiro (10). Em nosso país, a publicidade dos atos processuais é hoje mandamento constitucional (Carta da República, arts. 5º, LX, e 93, IX, initio); mas, ainda antes, já a consagravam, em linha de princípio, as leis processuais (CPC, art. 155, caput, 1ª parte; CPP, art. 792, caput).

As exceções nelas previstas (CPC, art. 155, caput, 2ª parte; CPP, art. 792, § 1º) afiguram-se compatíveis com as ressalvas constantes do próprio texto da Constituição; ponto controvertido é o da utilização da “sala secreta” pelos jurados (CPP, arts. 480 e 481), que para alguns não pode subsistir à luz da vigente Constituição (11).

Não é este o lugar adequado para a discussão de problemas do gênero. O que no momento nos interessa é a possível influência da sistemática adotada sobre o teor dos votos. No caráter secreto da deliberação costuma enxergar-se uma proteção dos juízes contra pressões exteriores: sem ela, com maior facilidade os induziriam a tomar esta ou aquela posição - eventualmente diversa da que lhes sugerisse a convicção racional – sentimentos como o temor de uma vingança, o desejo de não desagradar a um amigo, a uma autoridade administrativa, a um magistrado de hierarquia superior, a um partido político...

Votando “coram populo”, o juiz pode sem dúvida ver-se tentando a “jogar para a platéia”, a preocupar-se em excesso com a repercussão do voto junto aos assistentes – e, para além deles, junto à opinião pública, ou àquilo que passe por ser a opinião pública no dizer dos meios de comunicação social...

Agrava-se o perigo em se tratando de processo concernente a assunto de grande relevância política (no sentido estrito da palavra), ou propício a suscitar emoções fortes, que se expressam em juízos apaixonados; ainda maior se torna quando o julgamento se realiza na presença de repórteres e - sobretudo! - de câmeras de televisão; atingirá o ápice, bem se compreende, se inundarem o recinto, ou de qualquer sorte estiverem em condições de acompanhar de perto os trabalhos, interessados diretos ou indiretos, dos quais haja motivos para temer manifestações de aprovação ou de desaprovação, quando não intervenções mais enérgicas. Em tais circunstâncias, não é remota a probabilidade de que algum juiz, ao votar, se deixe guiar menos por aquilo que realmente pensa, na intimidade de sua consciência, do que por aquilo que, segundo lhe parece, o resto do mundo gostaria que ele pensasse.

Mas o caráter público da deliberação pode também exercer outro tipo de influência, máxime quando, por imposição legal ou regimental, ou por pressão das circunstâncias, tenha de ser fundamentado o pronunciamento de cada votante. Bem se concebe que, exposto ao controle da assistência, o juiz dedique maior atenção ao exame das questões discutidas, a fim de melhor justificar a posição que tome, prevenir o risco de objeções desconcertantes - ou até desmoralizantes, voluntariamente ou não -, em apartes ou em votos subseqüentes, e preservar assim sua “imagem” de julgador consciencioso e capaz.

Não é impossível que seu voto acabe por ser diferente do que ele proferiria sem o aludido controle.

Caso que merece registro especial é o das partes. Já se aludiu à eventualidade de manifestações coletivas de interessados diretos ou indiretos; mas o problema nem sempre ganha essa dimensão: com maior freqüência, diz respeito ao comparecimento individual de um ou outro litigante isolado. A parte – qualquer das partes – tem, normalmente, acesso ao recinto e pode assistir à deliberação, inclusive nos feitos que corram “em segredo de justiça”. Não são unânimes as opiniões acerca da eventual repercussão de sua presença; objeto de valorações discordantes, ela com certeza varia muito de intensidade, em função da natureza da causa, da índole das questões discutidas e, desnecessário ajuntar, da sensibilidade dos julgadores. É possível que impressione e até comova algum juiz a figura viva e próxima da vítima do acidente, ou a da mulher que alega maus-tratos por parte do marido (12). Em compensação, haverá quem ache de mau gosto, quando não francamente demagógica, semelhante exibição.

Cabe notar “a latere” que a presença da parte sem dúvida influi quase sempre no arrazoado oral do advogado: ao menos o tom será provavelmente diverso do que ele usaria na ausência do cliente (13).

b) O procedimento

Todo julgamento de órgão colegiado é um ato complexo, que se realiza mediante procedimento disciplinado por normas legais e regimentais. À lei processual cabe traçar grandes linhas, ao passo que dos pormenores cuida o regimento interno. Sob variantes de alcance quase sempre reduzido, pode-se identificar um itinerário padrão,que comporta basicamente as seguintes etapas: anúncio do julgamento pelo presidente da sessão; relatório, a cargo do juiz designado (relator); arrazoados orais dos advogados das partes; pronunciamento do Ministério Público, se funciona no feito; colheita e computação dos votos, pelo presidente; proclamação do resultado. Quanto à votação, começa-se em regra por tomar o voto do relator, em seguida (se houver) o do revisor, e depois o(s) do(s) outro(s) membro(s) do colegiado que participe(m) do julgamento; sendo vários, a ordem geralmente adotada no Brasil é antigüidade: votam primeiro os juizes que, desse ponto de vista, se seguirem ao relator (ou, se for o caso, ao revisor), voltando-se eventualmente ao(s) mais antigo(s) do órgão, após o voto do mais novo.

O esquema sujeita-se a alterações que ora o tomam mais simples, ora mais complexo. São hipóteses do primeiro tipo: a de não se abrir oportunidade para quem falem os advogados (o que acontece em uns poucos recursos) (14), a de não oficiar no processo o Ministério Público, a de não haver revisão. Hipótese do segundo tipo ocorre, v. g., quando, no início do julgamento (ou mesmo antes), ou no respectivo curso, se suscita preliminar e para decidi-la, se protela ou se interrompe a votação sobre a matéria principal. Em determinados casos, podetornar-se imperiosa a suspensão do julgamento, em conseqüência de pedido de vista dos autos, formulado por algum juiz, ou da superveniente necessidade de suprir-se deficiência de “quorum” (15) etc. Normalmente, aquele se completará na sessão seguinte, ou noutra que logo depois se realize. Todas essas vicissitudes, por motivos óbvios, são capazes de influir no resultado. A uma ou duas voltaremos com mais vagar; antes, porém, cumpre sublinhar a importância que assume nesta perspectiva a própria ordem da tomada dos votos.

É fora de dúvida que os primeiros votos proferidos – independentemente, em certa medida, da solidez dos argumentos em que se apóiem – costumam exercer maior influência sobre o sentido da deliberação do que os proferidos mais para o fim. Isso se acentua notavelmente quando a marcha da votação desde logo revela tendência nítida ao prevalecimento de qualquer das teses em jogo; mais ainda, quando se atinge determinada altura sem divergência alguma. Não poucos juízes inclinam-se de hábito a aderir à corrente predominante, e são em número ainda maior os que hesitam em adotar posição totalmente isolada. Variadíssimas as razões: timidez; insegurança; comodismo; desejo de não retardar o desfecho do julgamento; convicção sincera de que, na dúvida, o melhor é ficar com a maioria, cujo entendimento se presume digno de confiança; sentimento da inutilidade prática da discordância; escassa disposição para redigir voto vencido, por estar o votante sobrecarregado de trabalho, ou por motivo menos sério... Alguém que, noutras circunstâncias, provavelmente votaria em certo sentido talvez prefira acompanhar os diversos pronunciamentos já emitidos em sentido contrário, se parece selada, em virtude deles, a sorte do processo. Caso especialíssimo - porém de jeito nenhum despiciendo – é o de magistrado que ainda não integre o órgão, mas aspire a integrá-lo e, nesse ínterim, seja convocado para nele temporariamente atuar; porventura jamais o influenciará o temor de ficar “mal visto” se divergir da maioria (ou de todo o resto) do colegiado, correndo por isso o risco de não entrar na próxima listapara promoção por merecimento? Em última análise, tudo pode depender do lugar que, na ordem da votação, toque a juiz ou juízes em situações como as indicadas.

c) A presidência

À presidência do órgão cabe, antes de mais nada, a responsabilidade pela pauta da sessão. Se bem que na prática a tarefa de elaboração costume ficar a cargo da secretaria, é perfeitamente normal que o presidente, dentro dos critérios legais e regimentais, imprima sua marca pessoal na seriação dos processos. Aí já se configura uma primeira ocasião de influir: salientou-se acima a relevância da ordem dos julgamentos para os respectivos desfechos. É dado ao presidente em certa medida, incluir tal ou qual feito na pauta de determinada sessão, ou, ao contrário, excluí-lo dela; ora, segundo também já se assinalou, muito depende de julgar-se a causa neste ou naquele dia.

Ninguém ignora, ademais, que o desenrolar dos trabalhos de qualquer colegiado varia muitíssimo em função da maneira pela qual são eles dirigidos. Um presidente mais atento, mais enérgico ou mais habilidoso logrará normalmente imprimir-lhes ritmo mais constante e curso mais desembaraçado. Bastaria essa consideração para evidenciar a importância que o modo de exercer a função é passível de assumir para o desfecho do(s) julgamento(s) (16). Algumas facetas de tal influência revestem-se de colorido predominantemente técnico-jurídico. Por exemplo: compete ao presidente indicar ao colegiado a matéria que, em determinado momento, se encontra em discussão ou vai ser objeto de deliberação. Inclui-se nessa competência o mister de submeter especificadamente aos votantes cada uma das preliminares acaso suscitadas (ou suscitáveis pela própria presidência) e velar para que não se misturem umas com as outras, nem, “a fortiori”, qualquer delas com o mérito. Eventuais descuidos ou equívocos do presidente a tal respeito geram mal-entendidos e confusões suscetíveis de tumultuar o julgamento de forma irremediável a exatidão do resultado. É o que sucede, v. g., se acabam por somar-se quantidades heterogêneas, para dar por não conhecido recurso em relação ao qual se tinham argüido várias preliminares, ou para dizer vitorioso pleito de anulação de ato jurídico, formulado com invocação de diversos fundamentos, quando na verdade cada uma das preliminares, ou cada um dos fundamentos, obtivera votos insuficientes para conduzir ao respectivo acolhimento, embora suficientes, caso adicionados (indevidamente!), para criar a falsa impressão da existência de maioria no sentido da inadmissibilidade do recurso, ou da invalidade do ato (17).

Prossigamos. Incumbe ao presidente colher, um por um, os pronunciamentos dos juízes que devam participar da deliberação. Para isso, é óbvio, precisa ele saber com certeza quais, dentre os presentes, têm voto em cada julgamento. Precisa também convidá-los, no momento próprio e em voz clara, a votar, e fazer a competente anotação. Precisa, enfim, computar os votos emitidos, num sentido ou noutro, a fim de proclamar, uma vez encerrada a votação, o resultado. Nesses vários momentos, pode o presidente, como é natural, valer-se do auxílio de funcionários; não há de esquecer, contudo, que é sua, pessoal, a responsabilidade pela correção do procedimento - da qual pode depender, à evidência, o desfecho.

São coisas bem diferentes um julgamento presidido com atenção constante e um julgamento presidido por juiz que só de vez em quando (ou nunca...) se interessa realmente pelo que esteja acontecendo.

Outra atribuição muito relevante do presidente – inclusive na perspectiva que mais importa aqui - é a de resolver questões de ordem. Basta pensar que da solução de alguma delas decorrerá, por exemplo, a inclusão ou a exclusão de tal ou qual juiz do colégio judicante, ou a seqüência em que se vai proceder aos diversos julgamentos, e assim por diante. Igualmente importante é o grau de tolerância do presidente na fiscalização do prazo concedido para alguma fala; se, por exemplo, o advogado se vê interrompido, sem contemplação, ao fim do 15º minuto, não é inconcebível que a interrupção o colha justamente em ponto capital de seu arrazoado e com isso o iniba de fazer valer, ao menos com a força necessária, argumento essencial (18).

Também compete ao presidente velar pela manutenção da ordem durante a sessão. No exercício dessa competência, pode ele advertir quem não esteja guardando o devido decoro no uso da palavra, eventualmente cassá-la, coibir manifestações a seu ver impróprias, expulsar do recinto o espectador que se porte de modo inconveniente...

É intuitiva a possibilidade de que qualquer de tais medidas repercuta na marcha e no destino de um julgamento: por exemplo, a pessoa expulsa estava a ponto de influenciar, por gestos ou palavras, o voto de algum juiz, que agora, na ausência dela, talvez se pronuncie em sentido diverso.

Mas há maneiras menos formalizadas e mais sutis pelas quais se mostra possível à presidência influir na sorte de um processo. Se está a exercê-la, v.g., juiz de autoridade intelectual incomum, que a respeito do assunto em foco tem posição doutrinária bem conhecida, não é acadêmica a hipótese de que um (ou mais de um) votante sinta constrangimento em pronunciar-se no sentido oposto. Esse tipo de influência naturalmente comporta variadíssimos graus de intensidade, dependente, entre outras coisas, da atitude do presidente mesmo durante a deliberação: concebe-se, com efeito, que ele tome a liberdade de manifestar, direta ou indiretamente, por expressões fisionômicas, quando não por palavras, aprovação ou desaprovação; ou, ao contrário, que mantenha total impassibilidade. Certo é, porém, que às vezes sua influência se torna sensível ainda que ele nenhum esforço, ao menos consciente e voluntário, faça para exercê-la. Observe-se, “a latere”, que em alguns casos tão marcada é a ascendência do presidente sobre os outros membros do colegiado, que no funcionamento deste, e não menos que alhures no teor de suas deliberações, se torna fácil discernir traços típicos, por assim dizer, da personalidade daquele. Quando uma presidência desse calibre dura o bastante, o órgão tende a revestir-se, como umtodo, de características diversas das que provavelmente apresentaria sob outra liderança: adotará, por exemplo, orientação mais progressista ou mais conservadora em questões de índole política ou social. Basta lembrar, v. g., o que foi a Corte Suprema norte-americana sob a presidência de Earl Warren (19).

d) O relator

Importantes como são as funções do relator (20), é compreensível que influam poderosamente no julgamento a personalidade do juiz nelas investido e o modo por que as exerça. Em determinadas hipóteses, a própria escolhado relator já ministra dados para um juízo de probabilidade acerca do futuro resultado. É realmente muito o que depende, antes de mais nada, da clareza e exatidão do relatório; em seguida, do voto; e – “last but not least” – do comportamento do relator no curso restante da deliberação.

Daí a relevância do critério de escolha do relator e de possíveis vicissitudes como a respectiva substituição, por exemplo em virtude de licença, ou, de impedimento superveniente.

Elaborar o relatório, sobretudo em feitos complexos, é tarefa de inexcedível delicadeza. O relatório pode ser longo ou breve, minucioso ou resumido, bem ou malordenado, cristalino ou obscuro, objetivo ou tendencioso: em qualquer caso marcará, de uma forma ou de outra, o julgamento. Além do texto escrito, que em geral se lança nos autos, há as características da exposição oral, feita na sessão; e mil aspectos podem aí assumir relevo, da dicção mais ou menos clara do relator à maior ou menor ênfase com que assinale algum tópico. Teoricamente, o relatório nunca deveria prenunciar o voto de quem dele se incumba; na prática, não raro algo transparece, e a influência pode começar a fazer sentir-se desde esse instante.

A importância do voto do relator varia em função de inúmeros fatores, além do mais óbvio, que é a solidez ou a fragilidade de sua fundamentação. Há relatores, que gozam de maior confiança do que outros; isso sem dúvida se reflete na probabilidade de que o voto respectivo venha a ser acompanhado pelos demais julgadores, sobretudo - mas não exclusivamente! - se se trata de juízes desatentos, inseguros ou momentaneamente impossibilitados, por esta ou aquela circunstância, de formar convicção pessoal a respeito do problema em foco. Cabe acrescentar que certos relatores podem ser conhecidos por idiossincrasias muito salientes, como v. g., o pendor para favorecer o cônjuge mulher em ações de separação ou relativas à guarda de filhos menores; ou a queda para votar, em matéria tributária, a favor do fisco, ou contra ele etc. Em casos assim, o voto do relator, no sentido costumeiro, suscitará eventual desconfiança em algum colega e poderá acarretar um pedido de vista (quiçá uma divergência), que a propósito de outro assunto provavelmente não se concretizaria.

Até as relações afetivas entre cada um dos outros votantes e o relator podem assumir aqui relevo considerável. Juiz ligado ao relator por laços de amizade muito fortes talvez hesite em discordar de voto em que ele tenha posto grande ênfase, mormente se se cuida de questão de particular relevância, acerca da qual o relator tem posição firme e escassa tolerância para com opiniões diferentes.

A hesitação aumentará caso o votante já haja divergido do relator noutro julgamento da mesma sessão; “a fortiori”, no julgamento imediatamente anterior. Desnecessário advertir o leitor de que neste ponto reencontramos, em perspectiva especial, o tema da colocação dos feitos na pauta.

Duas palavras, enfim, sobre o comportamento do relator após a emissão de seu voto. Relatores há que demonstram pouco interesse pelo que venha a suceder daí em diante; outros, ao contrário, procuram sustentar, até com veemência, a correção do pronunciamento emitido, e fazê-lo prevalecer na deliberação, utilizando-se de apartes aos colegas ou pedindo de novo a palavra para contraditar votos discordantes – possibilidades que, ao menos em teoria, dependem, é claro, da disciplina consagrada no regimento. A insistência do relator é faca de dois gumes: pode produzir o efeito desejado (na medida em que logre vencer objeções) ou o oposto (se expõe os argumentos do relator a cotejo desfavorável, ou se, por excessiva ou inábil, provoca em algum outro juiz sentimento de irritação bastante para bloquear-lhe no espírito eventual tendência a aderir).

Com o clássico grão de sal, as considerações que acabamos de fazer a propósito do relator aplicam-se em parte, quando é o caso, ao revisor. Existem hipóteses, de resto, em que o voto deste assume preponderante importância, por exemplo se o do relator se afigura manifestamente inconsistente (ou o próprio relatório pouco esclarecedor).

e) Os advogados

Na maioria dos recursos e ações da competência originária de tribunais, os advogados das partes têm oportunidade de fazer-se ouvir. Podem ter até mais de uma oportunidade: assim, por exemplo, se se lhes faculta usar da palavra após o voto do relator (21), ou a qualquer tempo, no curso da deliberação, para determinados fins (22). A sustentação oral das razões destina-se, obviamente, a influir nos votos, e sem dúvida é suscetível de fazê-lo: menos, em regra, quanto ao relator e, se houver, ao revisor, que se presume hajam examinado com atenção a causa e formado convencimento antes de virem para a sessão; mais, com referência aos juízes que não tiveram contacto direto com os autos. É evidente que muito vai depender das qualidades pessoais do profissional: há sustentações orais que praticamente determinam a sorte do pleito – nem sempre, registre-se, no sentido visado por quem as faz...

Fácil compreender que a influência poderá ser maior, em princípio, se se permite ao advogado falar depois do voto do relator, cujos argumentos, sendo o caso, se lhe abrirá o ensejo de refutar. No entanto, aqui tampouco é desprezível o risco de que a insistência se mostre contraproducente: pode acontecer que o próprio relator reaja às críticas enrijecendo mais ainda em vez de modificá-la ou atenuá-la - a posição que adotara. Ao advogado, vale a pena observar, tanto é dado influir falando quanto calando...Este não é o lugar adequado para dissertar sobre problemas de tática advocatícia; mas não há como deixar de consignar o fato, já que, bem ou mal, ele se inclui entre os suscetíveis de repercutir no julgamento. Não nos estamos referindo só às hipóteses de inabilidade (ou mesmo inépcia) no arrazoado oral – por vezes tão desastrosa que aliena nos juízes toda e qualquer simpatia pela causa. Há outros casos menos ostensivos: v.g., usar da palavra nos últimos instantes da sessão, e com isso acarretar-lhe o prolongamento (sobretudo no dia “nefasto” da sexta-feira!), pode não constituir o melhor meio de predispor favoravelmente o colégio judicante. A menos que o advogado tenha algo novo e muito relevante a dizer, deve pensar duas vezes antes de submeter os juízes a uma inútil maçada, que em regra os levará a desinteressar-se da oração, quando não a retirar-se pura e simplesmente do recinto. A contenção – pelo menos em dose suficiente para limitar a fala ao essencial, se não for possível omiti-la – talvez se veja, nessa e noutras ocasiões, mais bem recompensada... (23). É claro que, “de iure”, o órgão julgador tem o dever de consentir que o advogado fale por todo o tempo que a lei ou o regimento lhe assegura; mas aqui não nos interessa tanto discutir o aspecto jurídico do problema, quanto descrever o que transparece da realidade dos tribunais.

Por outro lado sob certas circunstâncias assumirá grande importância a diferença entre um comportamento desenvolto e um excesso de timidez do advogado em pedir a palavra, por exemplo, para esclarecer equívoco acerca de questão de fato (vide, supra, a nota 22). O voto de algum juiz, principalmente dentre os que não tiveram contacto direto com os autos, talvez seja influenciado pelo esclarecimento, ou pela falta dele. Como todas, a medalha tem seu reverso: uma interrupção ociosa, ou sujeita a destemido convincente por parte do relator, ou de quem quer que esteja a votar, produzirá seguramente o efeito de um tiro pela culatra.

f) Outros aspectos

Já aludimos, mais de uma vez, a eventualidade de que algum juiz (ou mais de um), no curso da deliberação, peça vista dos autos. É pouco freqüente, porém não impossível, que o faça o próprio relator (ou o revisor), surpreendido por argumento que porventura suscite qualquer dos colegas, ou o(s) advogado(s), e que não lhe haja ocorrido ao estudar o processo.

O pedido de vista é incidente capaz de influir de várias maneiras no resultado do julgamento. Antes de mais nada, provoca a suspensão deste, com a possibilidade de que, na sessão de prosseguimento, esteja modificada a composição do colégio. A ausência de juiz que ainda não votara será talvez fatal para a parte cujo favor ele se teria pronunciado; a de juiz que já tinha votado preexclui a eventual reconsideração do voto.

O mero fato de pedir-se vista já costuma imprimir nova feição ao itinerário do julgamento. Que este possa continuar, mediante a colheita dos voto(s) restante(s), depende do regimento. Em geral, a continuação é possível, mas raramente se evita nos juízes remanescentes certa tendência a declarar que preferem aguardar o pronunciamento de quem pediu vista, máxime se se trata de juiz de grande prestígio, cuja opinião goza de particular autoridade - ou então, mais simplesmente, se, faltando pouco tempo para a hora regular de encerramento, todos estão ansiosos por ver acabar a sessão...

Ao prosseguir o julgamento interrompido – sob condições, repita-se, sempre diferentes -, toma-se de início o voto de quem haja pedido vista. Semelhante pronunciamento pode, é claro, influir por força dos bons argumentos que contenha; mas há outras formas de influência, de índole menos técnico-jurídica. De ordinário, alguns juízes, sobretudo aqueles que tinham declarado aguardá-lo, ouvirão o voto com atenção; dentre os outros, haverá quem o ouça, embora em geral com atenção menor (ou sem nenhuma atenção), e até, provavelmente, quem nem sequer o ouça. Variará muito, por conseguinte, a repercussão das razões invocadas. Se o juiz que pedira vista vem a acompanhar o relator, é quase automática, em geral, a concordância dos que tinham permanecido na expectativa, principalmente se no mesmo sentido já se havia pronunciado a maior parte dos votantes na sessão originária. Se aquele, ao contrário, diverge do relator, a possível influência de seu voto dependerá bastante, na extensão, do número de juízes que o estejam aguardando: é entre esses, com efeito, que ele tem maior probabilidade de angariar adesões, relativamente raro como é que algum dos outros tome a iniciativa de reconsiderar o voto antes proferido.

Outro incidente suscetível de exercer influência no resultado do julgamento é a conversão deste em diligência, para correção de vício, suprimento de omissão ou melhor esclarecimento de fatos. Algumas das conseqüências geradas pela conversão equiparam-se às do pedido de vista. Também aqui se interrompe o julgamento, que apenas se completará noutra sessão. Daí as mesmas possibilidades de alteração das circunstâncias, até eventualmente aumentadas, visto que a realização da diligência exigirá talvez lapso de tempo maior que o intervalo entre duas sessões consecutivas, e portanto só em data já mais ou menos distante daquela em que se iniciara estará o julgamento em condições de prosseguir. Significa isso que dificilmente se poderá contar, no prosseguimento, com recordações muito vivas na memória dos participantes da sessão anterior; e com toda a probabilidade haverá quem esteja tomando conhecimento do assunto pela primeira vez.

Aspecto sem dúvida importantíssimo é o da contribuição que a diligência porventura traga ao material da causa. Não nos deteremos no ponto, que melhor se situa no plano técnico-jurídico. Aludiremos unicamente, de passagem, à possível existência de circunstâncias idôneas para condicionar o grau de influência a ser exercido pelos novos dados: assim, por exemplo, a intercorrente substituição do relator, em virtude de licença, aposentadoria ou falecimento.

Ainda mais vistosos que os supramencionados são os incidentes da uniformização da jurisprudência e da declaração da inconstitucionalidade de lei ou outro ato normativo sobre cuja aplicação se discuta, como premissa lógico-jurídica do julgamento. Eles têm, é óbvio, um aspecto eminentemente técnico, na medida em que a deliberação do órgão maior, recebida pelo que suscitara a questão, vai predeterminar, ao menos em parte, o teor da decisão final deste (24). Outros ângulos despertam interesse de espécie diversa. Por exemplo: deferido que seja o requerimento de uniformização, ou acolhida pela maioria do órgão fracionário a prejudicial de inconstitucionalidade, suspende-se, aqui também, o julgamento, e em geral por tempo superior ao resultante de pedido de vista ou de conversão em diligência. Não é preciso repetir o que já se disse acerca das conseqüências que tal demora pode gerar. Aliás, se se reconhecer ao órgão fracionário alguma discrição ao apreciar o requerimento de uniformização da jurisprudência (25), fica patente a influência do maior ou menor rigor empregado em tal apreciação: dependerá dele que se dê ou não seguimento ao incidente, e portanto que o órgão fracionário venha ou não a ficar vinculado a tal ou qual tese jurídica no momento de julgar a causa.

5. Observações finais

Está longe de exaurir-se com o que ficou dito até agora a enumeração dos fatores extra jurídicos suscetíveis de influir nas decisões dos órgãos colegiados. Por mais de um motivo abstemo-nos de prolongá-la.

O primeiro é o receio de, prosseguindo, alarmar algum leitor além de toda medida razoável. Não desejamos dar a ninguém a impressão de que os julgamentos desse tipo se resolvem, afinal de contas, numa espécie de loteria, onde o que menos importa é o direito da parte. Nossa experiência de magistrado não nos autoriza em absoluto a insinuar que em qualquer hipótese sobrepaire a tudo mais a temperatura reinante na sala de sessões, ou a hora em que se examina a causa, ou alguma vicissitude fisiológica de juiz ou de advogado... Tais fatores atuam, é certo; mas, à evidência, não atuam todos ao mesmo tempo, nem com igual intensidade. Em muitos casos, sua influência será tão pequena a ponto de tornar-se praticamente irrelevante.

É bom tomarmos consciência de que o fenômeno existe; evitemos, porém, exagerar-lhe o alcance, convertê-lo em pretexto para uma sorte de mania persecutória.

Soma-se a isso a percepção clara de nossas próprias limitações. Não obstante as leituras que possamos ter em ambos os setores, falta-nos formação técnica especializada em sociologia da Justiça e em psicologia judiciária (26). Semelhante carência, com certeza óbvia para quem quer que haja lido as páginas precedentes, aconselhava (e aconselha) muita cautela e nenhuma pretensão. Inspirou-nos mesmo, entre outras coisas, uma atitude mais descritiva que valorativa em relação aos fatos apresentados. É verdade que, aqui e ali, não conseguimos deixar de emitir juízos de valor; mas a perspectiva em que nos quisemos colocar decididamente não foi a de um estudo essencialmente crítico de aspecto algum do funcionamento dos tribunais. os dados com que lidamos provêm, em grandíssima parte, de observações pessoais feitas ao longo de treze anos e meio de exercício da judicatura no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Algo, contudo, deve ficar bem claro: se em algum ponto o leitor identificar referência a comportamento menos recomendável para um julgador, esteja certo de que ela não reflete necessariamente o resultado da contemplação de qualquer dos juízes com quem nos honramos de conviver naquela corte. Pode muito bem suceder - e sem dúvida mais de uma vez sucederá - que observado haja sido... o próprio autor do trabalho. Só me permito aditar que essa auto-observação não se cingiu a comportamentos efetivamente manifestados, senão que também abrangeu estados de espírito, movimentos interiores, inclinações psíquicas - ou, se quiserem palavra mais forte e talvez mais exata, tentações. Sinceramente esperamos que, na maior parte dos casos, sobre essas haja prevalecido a voz da consciência que, implacável, nos chamava a cumprir com zelo os deveres do cargo. É o máximo que nos achamos em condições de dizer sem incorrer em presunção temerária...

Nota de Rodapé
10. Para extensas indicações de direito comparado e ampla discussão de vários aspectos da matéria, vide Barbosa Moreira, Publicité et secret du délibéré dans la Justice bresilienne, in Temas de Direito Processual (Quarta Série), S. Paulo, 1989, p. 193 e s.
11. Assim, v. g., James Tubenchlak, Tribunal do júri - Contradições e soluções, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1990, p. 110 e s., com o apoio de René Ariel Dotti. Publicidade dos julgamentose a “sala secreta” do júri, in Livro de Estudos Jurídicos, n. 4, Rio de Janeiro, 1992, p. 319 e s., espec. 325 e s. A jurisprudência, entretanto, não tem abonado a tese: vide, na primeira obra cit, p. 296 e s., a transcrição de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, de 22/5/89, no Habeas corpus n. 280/89, o qual anulou julgamento levado a cabo com votação dos quesitos em sessão pública.
12. Da possível influência dos atributos físicos da parte sobre o comportamento dos julgadores fornece a tradição exemplo clássico do famoso julgamento da cortesã Frinéia: determinou-lhe o desfecho, assim se narra, o gesto do advogado Hipérides, que, para vencer a resistência dos juízes, simplesmente desnudou a ré em pleno tribunal.
13. Conforme anota Stern, ob. Cit. em a nota 8, supra, p.441, não falta quem receie “that counsel will tend to tailor his argument to what the client rather than the court wants to hear”.
Não poucos advogados, vale a pena assinalar, opõem-se com energia a que os respectivos clientes assistam ao julgamento.
14. Os mais importantes são o agravo de instrumento e os embargos de declaração, no processo civil, consoante o disposto no art. 554 do respectivo Código.
15. Exemplo notório e ainda recente: o do julgamento, em dezembro de 1993, do mandado de segurança impetrado pelo ex-Presidente da República Femando Collor, contra a decisão do Senado Federal, que lhe impusera a penalidade de inabilitação para o exercício de função pública pelo prazo de oito anos (CF, art. 52, parágrafo único). Como amplamente divulgado, dos oito Ministros não impedidos do STF quatro votaram pela concessão e quatro pela denegação da ordem; diante disso, o Presidente da Corte convocou três Ministros do STJ, a fim de que, noutra sessão, se completasse o julgamento.
16. “The individual with potentionally the greatest influence on the oral interchange is the presiding Law Lord”, escreve, com referência à Seção Judiciária da Câmara dos Lords, PATERSON, ob. cit. em a nota 9, supra, p. 66. Consoante se põe de manifesto em nosso texto, o alcance da observação pode ser estendido a outros aspectos.
17. Cf. Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, v. V, 6ª ed., Rio de Janeiro, 1993, p. 504, 602/3 (com outras indicações bibliográficas em a nota 59); O Novo processo civil brasileiro, 15ª ed., Rio de Janeiro, 1993, p. 193.
18. Nota pitoresca: diz-se que, em certa sessão da Corte Suprema norte-americana, o Chief Justice Hughes, fiscal zeloso da observância do prazo, chegou ao requinte de interromper eminente advogado (líder do New York Bar) no meio da palavra if (Stern-Gressman, Supreme Court Practice, 5ª ed., Washington, 1978, p. 745, nota 24).
19. É habitual, nos Estados Unidos, designar pelo nome do Chief Justice o colegiado tal como atua sob a respectiva presidência. Vejam-se, por exemplo, as referências à Warren Court em Woodward-Armstrong, The Brethren -Inside the Supreme Court, Nova Iorque, 1979, p. 10, 62,179, 223, 443, 444).
20. Para uma enumeração pormenorizada, vide BARBOSA MOREIRA, Coment. cit., v.V, p. 561 e s.
21. Como dispunha, entre nós, a Lei n. 2.970, de 24/11/1956 (apelidada de Lei Castilhos Cabral, nome do
deputado autor do projeto), a qual modificava a redação do art. 875 do Código de Processo Civil de 1939, então vigente, mas foi declarada inconstitucional pelo STF e teve suspensa sua execução pela Resolução n. 23 do Senado Federal, de 26/10/1959.
22. Nos termos do art. 89, ns. X, XI e XII, respectivamente, da Lei n. 4.215, de 27/4/1963 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), são direitos do advogado: “pedir a palavra, pela ordem, durante o julgamento, em qualquer juízo ou Tribunal, para, mediante intervenção sumária e se esta lhe for permitida a critério do julgador, esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam ou possam influir no julgamento”; “ter a palavra, pela ordem, perante qualquer juízo ou Tribunal, para replicar a acusação ou censura que lhe sejam feitas, durante ou por motivo do julgamento”; e “reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo ou Tribunal, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento”.
23. “(...) Que les proces viennent en abondance, / Et je passe avec vous le reste de mes jours. / Mais que les avocats soient désormais plus courts.” (Racine, Les Plaideurs, 3º ato, cena IV): nessas palavras do juiz Dandin - ou quando nada, para sermos realistas, na parte final delas... - ninguém que haja exercido a judicatura em tribunal deixará de reconhecer a expressão de um desejo muitas e muitas vezes ternamente
acalentado.
24. Para um estudo pormenorizado da disciplina jurídica de ambas as matérias, e bem assim para outras indicações bibliográficas, vide Barbosa Moreira, Coment. cit., v. V, p. 4 e 27 e s., respectivamente.
25. Como hoje nos parece razoável: vide Barbosa Moreira, Coment. cit., v. V, p. 17.
26. São áreas científicas, aliás, em que a produção nacional não se tem distinguido nem pela quantidade, nem - com as exceções de praxe - pela qualidade. Veja-se em Gilles, Der Beitrag der Sozialwissenschaften zur Reform des Prozessrechts, no v. cit. em a nota 3, supra, a impressionante enumeração das principais obras publicadas na República Federal da Alemanha, nos anos imediatamente anteriores a 1983 (hoje, a lista seria sem dúvida muito mais longa), no campo da investigação sociológica em temas relacionados, de forma direta ou indireta, com o processo. Oxalá os elementos que aqui singelamente alinhamos possam ser úteis a algum especialista pátrio, porventura disposto a dedicar ao assunto a atenção que ele merece.

Artigo escrito em Maio de 1994 e publicado no Caderno de Doutrina e Jurisprudência da Ematra XV, v.1, n.3, mai./jun. 2005 e retirado da Biblioteca Digital Jurídica do STF. (BDJur).

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