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31 agosto 2010

UMA PETIÇÃO

Alphonse Allais*



Há muito pouco tempo, o Sr. Onésimo Lahilat, pacato morador de Pourd-sur-Akayre IHayte-Toucque), que vivia de pequenas rendas, vinha da estação onde fora ver a passagem do trem de Paris e comprar o jornal. Ao chegar à altura do funileiro colado ao Café do Correio, o Sr. Onésimo Lahilat experimentou um inconveniente de certa gravidade. Uma espécie de terrina veio a se quebrar contra a barriga de sua perna direita, e todo o seu conteúdo (líquido gorduroso e detritos orgânicos) se espalhou pelo culote de camurça do pobre cavalheiro. Uma mulher de certa idade, a própria esposa do funileiro, responsável pela catástrofe, não encontrou nada de melhor para fazer, frente a esse desagradável incidente, do que colocar todas as suas mãos disponíveis nas cadeiras. Enquanto isso, um aprendiz ria às gargalhadas, mostrando os dentes de jovem lobo.

Indignado, menos ainda pelo infortúnio de que fora vítima do que pela alegria intempestiva que despertara naquela gente de baixa capacidade intelectual, o Sr. Onésimo Lahilat limpava s vestígios do desastre com seu lenço xadrez, enquanto ia balbuciando:

-Bem, acho que vocês deveriam ter prestado mais atenção...

Surgiu então o funileiro em pessoa, enfrentando-o de um modo brusco:

-Mas, olha aqui, velho de uma figa, quando se esvazia um vaso numa calçada, você só precisa passar para a outra calçada!

-É o que eu vou fazer de agora em diante - contentou-se em dizer, perfeitamente enxovalhado, o Sr. Onésimo Lahiat.

E foi o que fez dali em diante: exatamente como havia dito. Ele, que tinha o hábito de ir à estação pela calçada da direita da Grand-Rue e de voltar pela calçada da esquerda, tomou a brava decisão de adotar a calçada da direita, quando ia u quando voltava. Mais tarde, no entanto, seu coração foi perturbado por um caso de consciência. Tinha ele realmente o direito de adotar, em conseqüência de uma raiva súbita, um dos lados da rua em vez do outro? Se havia duas calçadas, oferecida aos passos de todos os cidadãos, não seria de sua obrigação passar pelas duas? Tal como um destroço ao sabor das ondas, balançava seu senso moral de cidadão, de eleitor, de contribuinte. Em breve, ele não conseguiu mais se conter e, um belo dia, sobre uma branca e espaçosa folha de papel ofício ele redigiu uma petição ao Sr.Carmpt, presidente da República. Longamente fundamentada e respeitosamente formulada, a redação concluía que: “...em consequência dos fatos anunciados acima, o signatário pede humildemente autorização ao chefe de Estado para passar unicamente sobe a calçado do lado direito da Grand-Rue, de Pourd-sur-Alaure (Haute-Toucque).

A França, para sua felicidade, tem à frente do Governo o Sr. Carnot, um rapaz sério que se ocupa de seus assuntos, fazendo questão de que tudo passe pelas suas mãos, como ele mesmo diz, em sua linguagem metafórica. Isso não é bem melhor, cá entre nós, para a saúde da magistratura suprema, assim como para com os interesses da pátria, do que colocar na Presidência da República um desses sujeitos que ficam bebericando até às três da manhã nos cafés de Montmartre? À leitura da petição do Sr. Onésimo Lahilat, o Sr. Carnot não conseguiu reprimir um vvo movimento de interesse:

-O que pensa a respeito disso, Kornrobst?

-Mas – respondeu polidamente seu assessor – sobre esta questão o meu parecer é exatamente o mesmo de Vossa Excelência, senhor Presidente...

-Pois o que eu acho é que esse assunto é mais da alçada do Loubert do que da minha.

Sr; Kornprobost bateu no gongo e um guarda republicano a cavalo logo apareceu.

-Leve isso ao ministro do Interior – ordenou o Sr. Kornprobost com aquela arrogância que os oficiais da Marinha se vêem afetados quando diante de um membro das forças terrenas. E acrescentou:

-Diga a Loubert que encaminhe depressa este problema. É assunto urgente.

O guarda republicano, a cavalo, não precisou importunar sua montaria para uma corrida tão curta. Se do Champs Elysées à Place Beauvau houvesse mais de cinqüenta metros pareceria o fim do mundo.

O Sr. Loubert tomou conhecimento da petição do Sr. Onésimo Lahilat.

-Sr. Carnot é muito gentil – murmurou ele -, mas às vezes me encarrega de tarefas com as quais nada tenho a ver. Essa história é um problema a ser resolvido pelo prefeito do Departamento de Haute-Toucque.

E, pedindo com o que escrever, o Sr. Loubert dirigiu-se ao funcionário mencionando a petição em questão, e pedindo-lhe que fosse diligente ao dar-lhe solução. O prefeito de Haute-Toucque estava quase a ponto de fazer outra espécie de diligência com uma cocote de Paris, quando lhe chegou às mãos a mensagem de seu superior hierárquico.

-Mas – interrompeu ele – uma chatura dessas só podia acontecer comigo! O que é que eu tenho com isso? É coisa para o administrador municipal de Pourd-sur-Alaure. Mandem me chamar logo esse gendarme.

-Presidente! – ouviu-se uma voz marcial. Era o gendarme.

-E sobretudo, gendarme, peça ao maire que não durma sobre esse estratagema, heim?

Empregara a palavra “estratagema” só para impressionar o gendarme.

Ao receber a missiva, a fisionomia do Maire ficou pálida como a de uma serpente.

-Oxalá – disse ele – que esse assunto não venha a atrapalhar a condecoração que espero receber dia primeiro de janeiro.

Era tarde.

Todo mundo importante de Pourd-sur-Alaure tinha saído para jantar.

Tomar ele próprio uma decisão era cosa que o maire nem pensava.

Mandou subir ao seu escritório um agente de polícia (um intimador, como eram chamados) e lhe confiou uma quinzena de pequenos ofícios convocando os conselheiros municipais da cidade para uma reunião extraordinária. Ninguém faltou, vivos ou mortos.

Era quase meia-noite quando a sessão terminou. Temos a boa fortuna de fornecer aos nossos leitores os últimos “considerandos” da decisão do Conselho:

Considerando etc., etc.;

Considerando que os motivos invocados pelo Sr. Onésimo Lahilat não parecem suficientemente justificados e que tal exemplo abriria um precedente caprichoso e inoportuno;

Considerando que o legislador fez colocar duas calçadas nas ruas para que elas fossem igualmente usadas;

Considerando que se a população de Pourd-sur-Alaure adquirisse o hábito de passar por uma só calçada em detrimento da outra e reciprocamente etc.; etc.;

O Conselho Municipal de Pourd-sur-Alaure não autoriza o Sr. Onésimo Lahilat a passar exclusivamente pela dreita da Grand-Rue.”

Extraído de Os 100 Melhores Contos de Humor da Literatura Universal/Flávio Moreira da Costa (org.) – Rio de Janeiro:Ediouro, 2001.

*Alphonse Allais. Escritor e humorista francês, nascido em 20/10/1854 e falecido em 28/10/1905 em Paris.

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