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26 agosto 2010

RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABUSO DE DIREITO-1

Parte 1/2



Nehemias Domingos de Melo
Advogado militante em São Paulo. Especialista em Direito Civil, pós-graduado pela UniFMU/SP. Professor de Direito Civil na Universidade Paulista - UNIP


Sumário: I - Introdução. II - Exemplos de abuso de direito. III - A Questão Indenizatória. IV - Conclusão. V - Bibliografia.

I - INTRODUÇÃO

A teoria do abuso do direito, como instrumento hábil a ensejar indenização como decorrência de responsabilização civil, é matéria das mais controversas, exatamente por situar-se numa linha muita tênue entre o exercício regular de um direito e o exercício abusivo deste mesmo direito. Por ser questão eminentemente ética, a sua medida e quantificação é de difícil enquadramento, o que não significa dizer que seja impossível(1).

A questão do abuso de direito não era expressamente previsto no Código Civil de 1916, porém, os estudiosos encontravam sua existência na dicção do art. 160, porquanto tal artigo dizia que "não constituía atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido". Desta forma, deixava antever que os atos praticados em dissonância com aqueles preceitos poderiam ser enquadrados como atos abusivos e passíveis de indenização, se produzisse dano.

Assim, segundo a grande maioria de nossos doutrinadores, o abuso de direito, numa interpretação a contrario sensu, sempre esteve contemplado no Código de 1916. Dentre estes, o sempre festejado Clovis Bevilaqua dizia que "no exercício do nosso direito, desde que não transponhamos o círculo de ação, que ele nos traça, devemos ser garantidos pela ordem jurídica. Há, entretanto, limitações, que essa mesma ordem impõe ao exercício do nosso direito, como sejam, por exemplo, as que são estabelecidas para o direito de propriedade imóvel em atenção às necessidades públicas, ou ao interesse dos vizinhos". O insigne Mestre nos dá um exemplo deste seu pensar ao mencionar que "as servidões devem ser utilizadas de modo a não prejudicar o prédio serviente nem o seu proprietário".(2)

Na interpretação de Wilson de Souza Campos Batalha, após fazer uma longa análise do instrumento, remontando até o direito romano e passando pelas teorias de Josserand, Ripert, Planiol e Lacambra dentre outros, o ilustre pensador brasileiro conclui afirmando que "temos, portanto, a seguinte escala das limitações ao exercício dos direitos: os atos ilegais, que violam os limites objetivos do direito, que infringem a letra da lei; os atos abusivos, que não violam a letra da lei, mas violam o seu espírito, a finalidade da instituição, transpondo seus limites subjetivos; os atos excessivos, exercidos nos termos da lei e dentro do espírito da instituição, mas que provocam prejuízos excepcionais a terceiros, acarretando responsabilidade puramente objetiva, sem atenção ao requisito da culpa"(3).

O novo Código Civil corrigiu a falha do anterior e inseriu expressamente em seu corpo normativo a previsão do abuso de direito ao preceituar que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes" (art. 187), de tal sorte que, na sistemática atual, a norma civil condena expressamente o exercício abusivo de qualquer direito subjetivo. O novo Civile Codex nada mais fez do que positivar aquilo que a doutrina de há muito preconizava, tal qual o filósofo e jurista Paulo Gusmão Dourado, que prelecionava: "há os prejuízos anormais produzidos pelo uso anormal do direito. Tal ocorre, de modo muito amplo, quando o titular usa o direito com o fim exclusivo de causar prejuízo a outrem, sem obter qualquer vantagem ou utilidade, bem como quando o exerce de má-fé"(4).

Abordando a questão, o saudoso mestre Silvio Rodrigues é enfático quando afirma: "Acredito que a teoria (do abuso do direito) atingiu seu pleno desenvolvimento com a concepção de Josserand, segundo a qual há abuso de direito quando ele não é exercido de acordo com a finalidade social para a qual foi conferido, pois como diz este jurista, os direitos são conferidos ao homem para serem usados de uma forma que se acomode ao interesse coletivo, obedecendo à sua finalidade, segundo o espírito da instituição"(5).

II - EXEMPLOS DE ABUSO DE DIREITO

Diversos exemplos de abuso de direito podem ser encontrados na legislação pátria, autorizando o ofendido a buscar indenização a título de responsabilidade civil, ou a obtenção de medida que obrigue o desfazimento de ato e de coisas.

No direito processual civil, tais práticas são mais visíveis e o Código de Processo Civil fornece instrumentos eficazes aos juizes para que reprimam tais atitudes das partes que poderão ser condenados a ressarcir não somente por perdas e danos (CPC, art. 16), como poderão ser multados em percentual sobre o valor da causa, além de arcar com custas e honorários advocatícios (CPC, art. 18). Como diz o grande processualista José Frederico Marques, "quem se comportar como 'improbus litigator', usando de má-fé ou práticas antijurídicas, responderá por perdas e danos e a outras sanções especificas (arts. 16 a 18), uma vez que compete às partes e aos seus procuradores proceder com lealdade e boa-fé (art. 14, II)", para ao depois concluir que "o novo Código de Processo Civil, na esteira do que o antecedeu, e impregnado de alto sentido ético, procura impor aos litigantes uma conduta condigna para que as atividades processuais se desenvolvam imunes de abusos"(6).

No processo executivo, as sanções também são expressas e claras, no sentido de apenar aquele que no uso abusivo de seu direito vier a propor execução, pois se ao final, for a obrigação declarada inexistente, lhe gerará por via de conseqüência, a obrigação de indenizar pelos danos que tenha causado ao demandado (CPC, art. 574). Ainda no processo de execução, a nossa codificação processual determina que o devedor, não cometa "ato atentatório à dignidade da justiça" (CPC, art. 599, II), sob o risco de o fazendo ficar exposto às sanções que, a teor do que dispõe art. 601, do Código de Processo Civil, poderá significar uma severa multa que, a critério do juiz, poderá ser "em montante não superior a 20% (vinte por cento) do valor atualizado do débito em execução, sem prejuízo de outras sanções...".

Pode-se afirmar com segurança que, no âmbito do processo civil, o abuso de direito é muito mais visível, mas não é somente aí que se pode encontrar a figura do abuso de direito. Conforme se verá a seguir, outros exemplos existem nos campos mais variado do direito.

Assim como no processo civil, também no direito civil encontramos diversos exemplos nos quais o legislador buscou regular a matéria. Dentre outros exemplos, veja-se o art. 1.277 do Código Civil que, regulando as relações de vizinhança, autoriza o proprietário ou possuidor a fazer cessar qualquer interferência que prejudiquem sua segurança, sossego ou saúde. Da mesma forma, os arts. 939 e 940 que trata do demandado por dívida já paga ou ainda não vencida, ou ainda os arts. 1.637 e 1.638 que regula o abuso de direito no que diz respeito ao poder familiar.

Também o art. 1.289 e seguintes, ainda do novo Código Civil, que disciplinando o uso da águas, estabelece que o proprietário pode fazer uso, desde que não prejudique a terceiros, pois, se assim o fizer, nascerá para o prejudicado o direito de reagir ao exercício abusivo dos poderes do titular do domínio. Da mesma forma as seções seguintes, que tratam dos limites entre prédios e do direito de tapagem (arts. 1.297 e segs.) e, do direito de construir (arts. 1299 e segs.)(7).

Há ainda, diversos outros artigos do novo Código Civil, nos quais estão presentes, de maneira direta ou indireta, normas contrárias ao exercício irregular de um direito. Maria Helena Diniz nos dá conta que no nosso ordenamento jurídico existem "normas que, implicitamente, são contrários ao exercício anormal de certos direito". Daí menciona o art. 153 que, a contrário sensu, estaria condenando a coação como ameaça e a qualificando como um exercício anormal de direito. Ou ainda, o art. 188 que, ao tratar das cláusulas excludentes da responsabilidade, deixa antever que "serão atos ilícitos os praticados no exercício irregular de qualquer direito"(8).

Em seara trabalhista não é diferente. Tomemos o exemplo do empregador que, tendo pleno direito de demitir seu empregado, seja por justa ou injusta causa, promove a demissão sob a falsa alegação de pratica ilícita. Neste caso, houve abuso de direito e o patrão poderá, inclusive, ser condenado por danos morais, porquanto seu ato configura uma das situações típicas a ensejar este tipo de reparação.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) também abordou a questão ao preceituar: "O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração" (art. 28).

Da mesma forma, a Lei Antitruste (Lei 8.884/94), em seu artigo 18, também prevê a desconsideração da personalidade jurídica por abuso de direito, nos seguintes termos: "A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração".

Tratando deste tormentoso tema, a promotora Heloisa Carpena, citando Fernando Cunha de Sá, aborda uma questão que não envolve nenhum dano material palpável, pois se trata tão somente do exercício da liberdade de ir e vir, e como exemplo discorre sobre a "hipótese de um sujeito circular numa via pública aos encontrões com as pessoas que com ele cruzam, no deliberado propósito de as importunar. Nesta situação, ainda que o sujeito possa estar exercendo a liberdade que lhe assiste como prerrogativa jurídica, seu comportamento evidentemente se choca com o valor que lhe serve de fundamento e será tido como abusivo"(9).

Em muitas situações o abuso de direito não necessariamente causará um prejuízo material àquele ao qual a ação tenha sido dirigida. No exemplo acima temos apenas a causação de um incomodo. De ser lembrado também as demandas decorrentes de direito de vizinhança que, no mais das vezes, envolvem disputas que somente visam impor à parte adversa constrangimentos e, não necessariamente resolver uma lide, assim como as questões envolvendo condôminos, dentre outras.

Pesquisando nos julgados do 2º TACivil de São Paulo, foi possível localizar diversos arestos decorrentes do chamado direito de vizinhança e, por exemplar, trazemos à colação voto do Juiz Relator, Dr. Amorim Cantuária que serve para demonstrar à exaustão, o quão difícil é a tarefa de identificar até onde vai o direito de um e, até onde este direito não colide com o direito de outro. Veja-se trecho colacionado do julgado: "é evidente que qualquer reforma de imóvel para que se realize, produzirá ruídos. Na hipótese, não se verificou o abuso de direito do proprietário do apartamento em reforma, que realizava as obras apenas nos dias de semana e em horários compreendidos entre as 08:00 e 17:00 horas, fato incontroverso. Os ruídos são inevitáveis e para que se estabeleça relações harmoniosas entre vizinhos é necessário que haja reciprocidade e tolerância mútuas. Os transtornos decorrentes da obra (também suportados pela ré) não ultrapassaram os limites do suportável, decorrente da situação normal que envolve relações de vizinhança, em especial, em condomínio de apartamentos"(10).

Por oportuno, deve ser também lembrado, as ações que versam sobre demandas condominiais, principalmente aquelas que discutem reformas, mudanças de fachadas e alterações na destinação do prédio, principalmente naquilo que diz respeito ao quorum exigido em assembléia para aprovação ou não de tais mudanças. Neste aspecto, de se abordar a questão dos direitos das minorias que, em certos casos, se vê sufocada pelo direito da maioria. De todo sorte, ainda que a maioria possa ser transformada numa ditadura para impor à minoria tudo o que bem lhe aprouver, é de se observar o outro lado da moeda que, registre-se, pode também ser objeto de abusos. É importante observar que da mesma forma que o direito das minorias deve ser reconhecido, não se pode olvidar que esse direito não pode ser transformado em abuso. Nascimento Franco e Nisske Gondo com meridiana clareza afirmam: "não se esqueça, todavia, de que a minoria também pode abusar do seu direito, negando número para deliberações urgentes e necessárias. Nesse caso, só resta a intervenção judicial para coibir o abuso da minoria, tão nocivo, quanto o da maioria"(11).

Não é sem razão que o magistrado Carlos Roberto Gonçalves afirma que "o instituto do abuso do direito tem aplicação em quase todos os campos do direito, como instrumento destinado a reprimir o exercício anti-social dos direito subjetivos. As sanções estabelecidas em lei são as mais diversas, podendo implicar imposição de restrições ao exercício de atividade e até a sua cessação, declaração de ineficácia de negócio jurídico, demolição de obra construída, obrigação de ressarcimento dos danos, suspensão ou perda do pátrio poder e outras"(12).

De toda sorte, foi possível demonstrar que os exemplos proliferam e seria necessário estender este tópico por infindáveis laudas para exaurir a questão. O importante a considerar é que, o abuso de direito, enquanto figura jurídica assemelhada ao ato ilícito, está presente na vida social em todas as suas facetas, com fartos exemplos em todos os ramos do direito, cabendo assim aos operadores do direito saber identificá-los, quantificá-los, para então, buscar a tutela judicial que os reprimam.

Notas do Autor:
(1) Cf. afirmamos em nossa obra sobre dano moral, p. 33.
(2) Teoria geral do direito civil, p. 247.
(3) Introdução ao direito, v. II, p. 856.
(4) Introdução ao estudo do direito, p. 257.
(5) Direito civil, v. 1, p. 311.
(6) Manual de direito processual civil, p. 373, v. l.
(7) Todos os artigos citados são do Código Civil 2002 (lei 10.406/02).
(8) Curso de direito civil brasileiro, v. 7, p. 495.
(9) Abuso do direito nos contratos de consumo, p. 63
(10) 2º TACivil, Ap. c/ Rev. 562.073-00/0 - 1ª Câm. - J. 14.12.99.
(11) Condomínio em edifícios, p. 141.
(12) Comentários, p. 297.

Elaborado em novembro de 2002 - revisado em dezembro de 2004 e publicado em 28.02.2005 no site do Boletim Jurídico, de onde foi extraído.

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