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11 agosto 2010

A EC nº 66/2010: SEMELHANÇAS, DIFERENÇAS E INUTILIDADES ENTRE SEPARAÇÃO E DIVÓRCIO E O DIREITO INTERTEMPORAL -3

Parte 3 - Final



Rodrigo da Cunha Pereira
Advogado em Belo Horizonte; Mestre (UFMG); Doutor em Direito Civil (UFPR); Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM


2 Direito Intertemporal e as Questões Transitórias


O art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República 7 assegura e preserva o ato jurídico perfeito 8, o direito adquirido 9 e a coisa julgada 10. Portanto, as novas disposições sobre o divórcio têm sua força e eficácia a partir da entrada em vigor do novo texto constitucional. Como já se disse, a Emenda Constitucional nº 66/10, ao revogar a maior parte da redação do § 6º do art. 226, alterou não apenas as regras, mas, principalmente, os princípios constitucionais sobre o divórcio no Brasil.

Está ultrapassado, e não se discute mais, a eficácia imediata da norma constitucional (art. 5º, § 1º)11, nem mesmo a ineficácia de todas as regras infraconstitucionais que contrariem os novos princípios instalados. Se assim não fosse, as normas constitucionais seriam transformadas em meros enunciados e estariam despidas de seu conteúdo propositivo e de eficácia plena.

Por se tratar de uma nova redação da Constituição que eliminou expressamente prazos para o divórcio e instalou novas concepções sobre a dissolução do vínculo conjugal, é necessário examinarmos algumas situações especiais e transitórias, em nome da segurança das relações jurídicas. Afinal, não se pode obrigar alguém a se submeter a novas regras e princípios se já tinha uma situação jurídica consolidada pelas leis vigentes à época. Isso seria o mesmo que instalar a obrigatoriedade de submissão às leis que ainda não existem, isto é, tornar caótico o sistema jurídico 12.

O novo texto constitucional, além de acabar com todo e qualquer prazo para o divórcio, pelas razões aqui já expostas, tornou a separação judicial e as regras que a regiam incompatíveis com o sistema jurídico. Entretanto, há quatro situações transitórias que devem ser consideradas em relação à situação daqueles que já estavam separados judicialmente (ou administrativamente) na data da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 66/10: se continua existindo o estado civil de "separado judicialmente"/administrativamente; se eles ainda podem converter a separação em divórcio; se poderiam restabelecer o casamento; e se os processos judiciais ou administrativos de separação poderão continuar tramitando para se alcançar o seu objetivo proposto 13.

O estado civil daqueles que já eram separados judicialmente continua sendo o mesmo, pois não é possível simplesmente transformá-los em divorciados. Portanto, o estado civil "separado judicialmente/administrativamente" continua existindo para aqueles que já o detinham quando o novo texto constitucional entrou em vigor. É uma situação transitória, pois, com o passar do tempo, naturalmente, deixará de existir. Caso queiram transformá-lo em estado civil de divorciado poderão, excepcionalmente, converter tal separação em divórcio ou simplesmente propor Ação de Divórcio, o que na prática tem o mesmo resultado. São exceções, necessárias e justificáveis, para compatibilizar com o respeito aos princípios constitucionais da coisa julgada e do ato jurídico perfeito. Neste mesmo raciocínio poderão ainda usar a faculdade que lhes oferecia o art. 1.577 e a Lei nº 11.441/07: restabelecerem a sociedade conjugal. Obviamente que a partir daí já estarão submetidos às novas regras e princípios decorrentes da instalação da Emenda Constitucional nº 66/10.

Os processos judiciais em andamento, sejam os consensuais ou litigiosos, ou os extrajudiciais, isto é, os administrativos (Lei nº 11.441/07), deverão readequar seu objeto e objetivos às novas disposições legais vigentes, sob pena de arquivamento.

Notas do Autor:

7 - “Art. 5º. (...) XXXVI: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”
8 - LICC. “Art. 6º. (...) § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.”
9 - LICC. “Art. 6º. (...) § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.”
10 - LICC. “Art. 6º. (...) § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”
11 - “§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
12 - A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, em situação semelhante, analisando as doutrinas brasileira e estrangeira, sobre aplicação de regras do CCB de 1916 e de 2002 a respeito do regime de bens, assim também se posicionou: “A doutrina fez uma distinção fecunda entre a retroatividade máxima, que alcança o direito adquirido e afeta negócios jurídicos findos; a retroatividade média, que alcança direitos já existentes, mas ainda não integrados no patrimônio do titular; e a retroatividade mínima, que se confunde com o efeito imediato da lei e só implica sujeitar à lei novas consequências à, ela posteriores de atos jurídicos praticados na vigência da lei anterior” (In: Curso de Direito Civil Brasileiro. 5. ed. v. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 82). Ainda, com base no Direito Comparado, elucidativas as palavras, respectivamente, dos mestres franceses Planiol e Roubier, verbis: “(...) a lei é retroativa quando ela se volta para o passado, seja para apreciar as ‘condições de legalidade de um ato’, seja para modificar ou suprimir os ‘efeitos de um direito já realizado’. Fora daí, não há retroatividade, e a lei pode modificar os ‘efeitos futuros’ de fatos ou atos anteriores, sem ser retroativa” “(...) la loi est rétroactive quand elle revient sur le passe soit pour aprécier lês ‘conditions de légalité d’um acte’, soit pour modifier ou supprimer lês leffets d’un droit déjà réalisés’. Hors de là il n’y a pás de rétroactivité, et la loi peut modifier lês ‘effets futurs’ de faits ou d’actes Memes antérieurs, sans êtres rétroactive”. (Traité Élémentaire de Droit Civil, v. I, 4. ed., n. 243, Paris: Libraire Générale de Droit & de Jurisprudence, 1906. p. 95) Se a lei pretende aplicar-se aos fatos realizados (facta praeterita), é ela retroativa; se pretende aplicar-se a situações em curso (facta pendentia), convirá estabelecer uma separação entre as partes anteriores à data da modificação da legislação, que não poderão ser atingidas sem retroatividade, e as partes posteriores, para as quais a lei nova, se ela deve aplicar-se, não terá senão efeito imediato; enfim, diante dos fatos a ocorrer (facta futura), é claro que a lei não pode jamais ser retroativa “(Si la loi prétend s’appliquer à des faits accomplis (facta praeterita), elle est rétroactive; si elle prétend s’appliquer à des situations em cours (facta pendentia), il faudra établir une séparation entre les parties antérieures à separala date du changement de législation, qui ne pourraient être atteintes sans rétroactivité, et lês partis postérieures, pour lesquelles la loi nouvelle, si elle doit s’appliquer, n’aura jamais qu’um effet imédiat; enfin, vis-à-vis des faits à venir (facta futura), il est clair que la loi ne peut jamais être rétroactive’. (Le Droit Transitoire - Conflits des Lois dans le Temps, 2. ed., n. 38, Éditions Dalloz et Sirey, 1960, p. 177). Destarte, consoante a orientação doutrinária ora em apreço, quanto aos casamentos celebrados sob a égide do CC/1916, em curso quando da promulgação da nova disciplina jurídica civil, em razão da própria dinâmica do matrimônio, cujos efeitos, quanto ao regime de bens (contrato especial de Direito de Família de prestação contínua), não se exauriram sob a vigência deste, projetando-se, ao revés, sob a vigência do CC/02, aplicam-se imediatamente as novas regras legais, perfazendo-se possível a alteração do regime patrimonial mediante decisão judicial. (...)” (STJ, Resp nº 730.546-MG, Rel. Min. Jorge Scartezzini, public. 03.10.2005, DJ).
13 - O STF cita Vicente Rao, que em seu livro de 1952, O Direito e a vida dos direitos, abordou o Direito intertemporal sob o seguinte enfoque: “O autor primeiramente distinguiu os direitos pessoais puros, dos direitos pessoais relativos ou patrimoniais. Segundo ele, quanto aos primeiros, por envolverem normas de Direito público, têm aplicação imediata (v.g. relações pessoais entre cônjuges, normas sobre pátrio poder, alimentos tutela, curatela). No que concerne à segunda categoria (Direitos pessoais, relativos ou patrimoniais), mas vinculados ao Direito de Família ou dele decorrentes, biparte sua qualidade: uns, cuja constituição deixava ao livre arbítrio das partes, por predominarem os interesses individuais; outros, são direitos em que prepondera o interesse social. Aí apresenta a solução: “Os primeiros continuam submetidos à lei sob o qual nasceram, ao passo que os últimos são atingidos, em seus efeitos, pela lei nova, desde o momento em que esta entre em vigor. (STF. RE. Rel. Min. Moreira Alves, j. 24.11.88).

Extraído de Editora Magister/doutrina, pub. 03/08/2010

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