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10 agosto 2010

A EC nº 66/2010: SEMELHANÇAS, DIFERENÇAS E INUTILIDADES ENTRE SEPARAÇÃO E DIVÓRCIO E O DIREITO INTERTEMPORAL-2

Parte 2/3




Rodrigo da Cunha Pereira
Advogado em Belo Horizonte; Mestre (UFMG); Doutor em Direito Civil (UFPR); Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.


1 Separação Judicial/Administrativa ainda Vigora no Brasil? A Emenda Constitucional nº 66/2010


O sistema dual para romper o vínculo legal do casamento, como já se disse, tem suas raízes e justificativas principalmente em uma moral religiosa. Não se justifica mais em um Estado laico manter esta duplicidade de tratamento legal. A tendência evolutiva dos ordenamentos jurídicos ocidentais é que o Estado interfira cada vez menos na vida privada e na intimidade dos cidadãos. Se não há intervenção do Estado na forma e no modo de as pessoas se casarem, por que ele interfere tanto quando o casamento termina? Os ordenamentos jurídicos de países cuja interferência religiosa é menor não têm em seu corpo normativo a previsão deste sistema dual.

A moral condutora da manutenção deste arcaico sistema, assim como a da não facilitação do divórcio, é a preservação da família. Pensa-se que se o Estado dificultar ou colocar empecilhos, os cônjuges poderão repensar e não se divorciarem; ou, se apenas se separarem, poderão se arrepender e restabelecerem o vínculo conjugal. Em 1977, o argumento usado para se manter na lei o instituto da separação judicial como alternativa ao divórcio era puramente religioso. Tinha-se a esperança de que os católicos não se divorciariam, apenas se separariam judicialmente. A realidade, diferente do que se temia, foi outra: católicos se divorciam, não houve uma "avalanche" de divórcios, e as famílias não se desestruturaram por isso. Ao contrário, as pessoas passaram a ter mais liberdade e conquistaram o direito de não ficarem casadas. Ora, o verdadeiro sustento do laço conjugal não são as fórmulas jurídicas. O que garante a existência dos vínculos conjugais é o desejo.

É preciso separar o "joio do trigo", para usar uma linguagem bíblica, isto é, se separarmos as razões jurídicas das razões e motivações religiosas, veremos claramente que não faz sentido a manutenção do instituto de separação judicial em nosso ordenamento jurídico. Ele significa mais gastos financeiros, mais desgastes emocionais e contribui para o emperramento do Judiciário, na medida em que significa mais processos desnecessários. Um dos maiores juristas brasileiros, o alagoano Paulo Luiz Netto Lôbo, mesmo antes da aprovação da referida Emenda Constitucional, já era enfático quanto à insustentabilidade dessa duplicidade de tratamento legal:

"(...) A superação do dualismo legal repercute os valores da sociedade brasileira atual, evitando que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias sejam reveladas e trazidas ao espaço público dos tribunais, com todo o caudal de constrangimento que provocam, contribuindo para o agravamento de suas crises e dificultando o entendimento necessário para a melhor solução dos problemas decorrentes da separação 2."

Os professores Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald, em livro escrito a quatro mãos, também já faziam ferrenha crítica ao sistema binário de dissolução do casamento. Exemplificando com os ordenamentos jurídicos da Áustria, Grã Bretanha e Alemanha, que adotam apenas o divórcio, realçam que é totalmente ilógica a manutenção da separação judicial:

"É evidente a dificuldade conceitual existente em compreender, com precisão, o caráter dualista do sistema de dissolução matrimonial. Não há justificativa lógica em terminar e não dissolver um casamento. Escapa à razoabilidade e viola a própria operabilidade do sistema jurídico 3."

Realmente não faz mais sentido a manutenção do instituto da Separação Judicial. Foi com este intuito que o Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM apresentou Proposta de Emenda Constitucional - PEC, através do seu sócio, o Deputado Federal Sérgio Barradas Carneiro (PT/BA), para dar nova redação ao § 6º do art. 226, que em Julho de 2010 se transformou na Emenda Constitucional nº 66, que diz:

"§ 6º O casamento pode ser dissolvido pelo divórcio."

E assim foi abolido o texto:

"(...) após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos."

Portanto, o novo texto constitucional suprimiu a prévia separação como requisito para o divórcio, bem como eliminou qualquer prazo para se propor o divórcio, seja judicial ou administrativo (Lei nº 11.441/07). Tendo suprimido tais prazos e o requisito da prévia separação para o divórcio, a Constituição joga por terra aquilo que a melhor doutrina e a mais consistente jurisprudência já vinha reafirmando há muitos anos, a discussão da culpa pelo fim do casamento, aliás, um grande sinal de atraso do ordenamento jurídico brasileiro.

É possível que haja resistência de alguns em entender que a separação judicial foi extinta de nossa organização jurídica. Mas, para estas possíveis resistências, basta lembrar os mais elementares preceitos que sustentam a ciência jurídica: a interpretação da norma deve estar contextualizada, inclusive historicamente. O argumento finalístico é que a Constituição da República extirpou totalmente de seu corpo normativo a única referência que se fazia à separação judicial. Portanto, ela não apenas retirou os prazos, mas também o requisito obrigatório ou voluntário da prévia separação judicial ao divórcio por conversão. Qual seria o objetivo de se manter vigente a separação judicial se ela não pode mais ser convertida em divórcio? Não há nenhuma razão prática e lógica para a sua manutenção. Se alguém insistir em se separar judicialmente, após a Emenda Constitucional nº 66/10, não poderá transformar mais tal separação em divórcio, se o quiser, terá que propor o divórcio direto. Não podemos perder o contexto, a história e o fim social da anterior redação do § 6º do art. 226: converter em divórcio a separação judicial. E, se não se pode mais convertê-la em divórcio, ela perde sua razão lógica de existência. O sentido jurídico da manutenção da separação judicial era convertê-la em divórcio, repita-se. Paulo Lôbo, em assertivo e conclusivo texto para a Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, não deixa sombra de dúvidas sobre a extinção do antiquado instituto da separação judicial e das normas infraconstitucionais que a regulavam:

"(...) a Constituição deixou de tutelar a separação judicial. A consequência da extinção da separação judicial é que concomitantemente desapareceu a dissolução da sociedade conjugal, que era a única possível, sem dissolução do vínculo conjugal, até 1977. Com o advento do divórcio, a partir dessa data e até 2009, a dissolução da sociedade conjugal passou a conviver com a dissolução do vínculo conjugal, porque ambas recebiam tutela constitucional explícita. Portanto, não sobrevive qualquer norma infraconstitucional que trate da dissolução da sociedade conjugal isoladamente, por absoluta incompatibilidade com a Constituição, de acordo com a redação atribuída pela PEC do Divórcio. A nova redação do § 6º do art. 226 da Constituição apenas admite a dissolução do vínculo conjugal 4."

As outras possíveis argumentações são apenas de ordem moral e religiosa. Deve-se respeitar a religião, a crença e as convicções morais. Elas mais que fazem sentido, dão sentido à vida, ajudam a colocar limites, direcionam valores, alimentam esperanças e fé. Entretanto, não podemos misturar Direito com valores morais particulares e religiosos. A história do Direito de Família já nos mostrou todas as injustiças provocadas por esses valores, tais como a exclusão de determinadas categorias do laço social, ilegitimando filhos, famílias, em nome de uma moral sexual civilizatória. Não podemos continuar repetindo essas injustiças. E é por isso que os argumentos de ordem moral-religiosa não podem prescrever as regras jurídicas.

O Direito Civil Constitucional tão bem sustentado pelos juristas Luiz Edson Fachin, Gustavo Tepedino, Paulo Lôbo, Maria Celina Bodin de Moraes, dentre outros, vem exatamente na direção que aqui se argumenta, ou seja, a legislação infraconstitucional não pode ter uma força normativa maior que a própria Constituição. Em outras palavras, se o novo texto do § 6º do art. 226 retirou de seu corpo a expressão separação judicial, como mantê-la na legislação infraconstitucional? É necessário que se compreenda, de uma vez por todas, que a hermenêutica Constitucional tem que ser colocada em prática, e isso compreende suas contextualizações política e histórica.

A interpretação das normas secundárias, ou seja, da legislação infraconstitucional, deve ser compatível com o comando maior da Carta Política. O conflito com o texto constitucional atua no campo da não recepção. Essa é a posição de nossa Corte Constitucional, em julgamento de 2007, que traduz exatamente essa assertiva: "O conflito de norma com preceito constitucional superveniente resolve-se no campo da não-recepção" 5. Vê-se, portanto, mais uma razão da desnecessidade de se manter o instituto da separação judicial, pois, ainda que se admitisse a sua sobrevivência, a norma constitucional permite que os cônjuges atinjam seu objetivo com muito mais simplicidade e vantagem. Ademais, em uma interpretação sistemática, não se pode estender o que o comando constitucional restringiu. Toda legislação infraconstitucional deve apresentar compatibilidade e nunca conflito com o texto constitucional. Assim, estão automaticamente revogados os arts. 1.571, III, 1.572, 1.573, 1.574, 1.575, 1.576, 1.577 e 1.578 do Código Civil. Da mesma forma, e pelo mesmo motivo, os artigos da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos) e da Lei nº 10.406/02 (Divórcio por Escritura Pública), bem como os artigos adiante mencionados deverão ser lidos desconsiderando-se a expressão "separação judicial", à exceção daqueles que já detinham este estado civil anteriormente a EC nº 66/10, mantendo seus efeitos para os demais aspectos: 10, I, 25, 27, I, 792, 793, 980, 1.562, 1.571, § 2º, 1.580, 1.583, 1.683, 1.775 e 1.831.

Como se não bastassem todos os princípios jurídicos e argumentativos da extirpação da anacrônica separação judicial, é necessário considerar a pretensão do legislador e o "espírito das leis", como dizia Montesquieu. Isso pode ser constatado na exposição de motivos da referida Emenda Constitucional, que se vê abaixo, ipsis literis, que contextualiza, traduz o real e verdadeiro sentido do novo comando constitucional.

"Como corolário do sistema jurídico vigente, constata-se que o instituto da separação judicial perdeu muito da sua relevância, pois deixou de ser a antecâmara e o prelúdio necessário para a sua conversão em divórcio; a opção pelo divórcio direto possível revela-se natural para os cônjuges desavindos, inclusive sob o aspecto econômico, na medida em que lhes resolve em definitivo a sociedade e o vínculo conjugal.

(...)

Com efeito, se é verdade que não se sustenta a diferenciação, quanto aos prazos, entre a separação judicial e a separação de fato, tendo em vista a obtenção do divórcio, é verdade ainda mais cristalina que o próprio instituto da separação não se sustenta mais no ordenamento jurídico pátrio. De fato, deve-se ter em mente que o antigo desquite, hoje separação judicial, foi mantido no direito brasileiro, possível a adoção do divórcio entre nós. Tratou-se de uma fórmula que agradasse àqueles frontalmente contrários à dissolução do vínculo matrimonial, e que, portanto, contentavam- se com a possibilidade de pôr termo, apenas e tão somente, à sociedade conjugal.

Hoje, contudo, resta claro que a necessidade da separação dos cônjuges, seja judicial ou de fato, como pressuposto para o divórcio, apenas protrai a solução definitiva de um casamento mal sucedido.

Deve-se sublinhar que a necessidade de dois processos judiciais distintos apenas redunda em gastos maiores e também em maiores dissabores para os envolvidos, obrigados que se veem a conviver por mais tempo com o assunto penoso da separação, penoso, inclusive, para toda a família, principalmente para os filhos.

Não menos importante é a constatação prática de que apenas uma parcela realmente ínfima das separações reverte para a reconciliação do casal.

(...)

Para esta relatoria, salta aos olhos que os representantes da advocacia, do Poder Judiciário e do Ministério Público foram unânimes em afirmar que o instituto da separação judicial deve ser suprimido do Direito brasileiro 6." (Grifo nosso)

Notas do Autor:

2 - LÔBO, Paulo. Direito Civil - Famílias. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 127.
3 - FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 282.
4 - LÔBO, Paulo. A PEC do Divórcio: Consequências jurídicas imediatas. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, v. 11, pp. 05-17, Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, p. 8, ago./set. 2009.
5 - STF, RE 387.271, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 08.08.07, DJE 01.02.2008.
6 - Parecer da Comissão Especial quando da análise da PEC 413/05 e 33/07, ministrado na Câmara dos Deputados, Diário da Câmara dos Deputados, quinta-feira, 29.11.07.

Extraído de Editora Magister/doutrina, pub. 03/08/2010

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