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26 fevereiro 2010

REGISTRO CIVIL- DA POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO NOME E SEXO DO TRANSEXUAL NO REGISTRO CIVIL

Parte 4-Final


Aline Dias de França

Advogada; Especialista em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Mestranda na Faculdade de Direito da USP. Membro do IBDFAM.


3.6 AS ALTERAÇÕES DO REGISTRO DO TRANSEXUAL E OS DEMAIS RAMOS DO DIREITO

As eventuais alterações no registro de um transexual também podem repercutir em outros ramos do direito. No ramo do direito previdenciário, aplicaríamos as regras quanto à concessão dos benefícios de acordo com o sexo atual ou com o sexo originário? Ou deveríamos fixar regras próprias a ser aplicadas à estes indivíduos? E na seara penal, aplicar-se-ia como aplicar as regras dos crimes contra os costumes, sexuais, etc.?

E no ramo do direito do trabalho, seria discriminação a dispensa do transexual após a cirurgia? E antes? Há tipos de trabalhos para os quais estes indivíduos não estão capacitados?

Como nossa CF veda, em seu artigo 3º, IV e a CLT, em seus artigos 5º e 461, a discriminação em razão do sexo, a resposta a estas questões podem ser respondidas sem a necessidade de lei especifica, cabendo a doutrina e a jurisprudência dar a melhor e mais adequada interpretação.

3.7 O PROJETO DE LEI 6.655/06

Originalmente apresentado pelo Deputado José Coimbra do PTB/SP sob o nº 70/1995, o PL 6.655/06 do Deputado Luciano Zica do PT/SP, cuja redação final foi aprovada em 16 de Agosto de 2007 na Câmara e atualmente tramita no Senado Federal sob a relatoria da senadora Fatima Cleide da CDH - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, prevê a alteração do artigo 58 da Lei 6.015/73, para dar-lhe a seguinte redação:

"Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição, mediante sentença judicial, nos casos em que:

I – o interessado for:

a) conhecido por apelidos notórios;

b) reconhecido como transexual de acordo com laudo de avaliação médica, ainda que não tenha sido submetido a procedimento médico-cirúrgico destinado à adequação dos órgãos sexuais;

II – houver fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime por determinação, em sentença, de juiz competente após ouvido o Ministério Público.

Parágrafo único. A sentença relativa à substituição do prenome na hipótese prevista na alínea b do inciso I deste artigo será objeto de averbação no livro de nascimento com a menção imperativa de ser a pessoa transexual."

O projeto, contrariamente a legislação estrangeira sobre o tema, permite a alteração do prenome com expressa menção da transexualidade da pessoa. Na justificação apresentada assinala o autor do projeto que os "registros públicos devem se pautar sempre pela veracidade, clareza, certeza, publicidade e segurança" e que a "modificação da identidade (substituição do prenome) tem sua razão essencial na necessidade de exteriorizar a verdadeira situação do identificado", mas "a fim de se evitar equívocos que podem, eventualmente, até ter reflexos tanto no campo do direito privado quanto no campo da responsabilidade do Estado face à eventual possibilidade de a situação sexual objeto do registro civil de nascimento exercer influência em questões que envolvam a sexualidade" deve ser dada publicidade à condição de transexual do individuo.

A solução legislativa que tramita no Senado Federal, ao determinar a averbação no registro civil da condição de transexual do indivíduo e permitir a alteração do seu prenome, afasta o principal argumento utilizados pela doutrina e jurisprudência pátria para negar o pleito de alteração registral formulado pelos transexuais que gira em torno do casamento posterior e decorre da alteração do sexo.

Todavia, a publicidade da condição de transexual do individuo constará apenas no Registro Civil, e a ela terá acesso o pretendente a cônjuge, e não em seus demais documentos como Cédula de Identidade, como previa o projeto antecedente 30. Mas sem regramento legislativo permaneceriam ainda as questões relativas à filiação e adoção.

No entanto, se aprovado, a legislação brasileira adotará um terceiro sexo jurídico, e ao lado do feminino e masculino acrescentará o transexual – é o Direito em sintonia com a ciência médica? Certamente é a adequação do registro civil a realidade fática e biológica do individuo registrado.

4 CONCLUSÃO

O nome é a expressão máxima do princípio da dignidade da pessoa humana, indispensável para nossa identificação em relação aos outros e nós mesmos, nos conferindo um lugar no mundo e um espaço necessário para a construção de nossa identidade e personalidade.

Como sinal identificador da pessoa humana, tão necessário na Pós-modernidade em razão da complexidade das relações humanas e do tamanho da população mundial, ele é tutelado e protegido, sendo, em nosso sistema jurídico, em regra imutável o prenome e permitida a alteração excepcional e justificada do sobrenome.

O prenome corresponde ao primeiro elemento do nome, também conhecido como nome próprio ou de batismo e vulgarmente conhecido como nome, pode ser alterado nas seguintes hipóteses legais: a) de erro gráfico evidente, para evitar expor seu portador ao ridículo ou para adotar apelido público e notório, em substituição ao prenome ou acréscimo a ele (Lei 6.015/73, com as alterações realizadas pela Lei 9.708/98); b) adoção (artigo 7, § 5º da Lei 8.069 e 1627 do CC); c) tradução ou adaptação à língua portuguesa de nome de estrangeiro (artigo 43 da Lei 6.815/90) e d) vítimas ou testemunhas de crime (Lei 9.807/99).

O sobrenome, também conhecido como nome ou apelido de família, patronímico ou cognome, serve para designar a estirpe a que o sujeito pertence, seus ascendentes paternos e maternos, pode ser alterado nas seguintes hipóteses: a) modificação do estado de filiação, nos casos de reconhecimento ou negativa de paternidade/maternidade ou adoção; b) no casamento, quando qualquer um dos cônjuges pode adotar o sobrenome do outro e na separação ou divórcio, caso um dos ex-cônjuges perca ou renuncie o direito de utilizar o sobrenome do outro, c) na união estável através do pedido de qualquer um dos conviventes (artigo 1.627 do CC); d) com a alteração do sobrenome de qualquer um dos genitores, que acarreta conseqüente a alteração do nome do filho e e) acréscimo do sobrenome do padrastro ou madrasta pelo enteado ou enteada (lei 11.924/09).

A possibilidade da alteração do prenome de transexual não está prevista em lei e a regra da imutabilidade do mesmo, salvo expressa previsão legal, justificou por muito tempo a negativa judicial do pedido de modificação. Todavia, com a legalização da realização de cirurgia de transgenitalização no Brasil ocorrida em 1997 através da Resolução 1482 do Conselho Federal de Medicina, o Judiciário brasileiro teve que rever sua posição, afinal incoerente é o mesmo Estado permitir a readequação cirúrgica do sexo do transexual e negar a alteração do nome e sexo em seus documentos.

A ausência de norma torna a questão ainda mais controvertida porque o que pleiteia o transexual não é só a mudança de seu prenome, o que sem dúvida o expõe a situações vexatórias, mas a de seu sexo o que traz conseqüências para direitos e obrigações do indivíduo que decorrem de seu sexo jurídico e geram inúmeras questões que ficam a cargo da doutrina e jurisprudência responder.

Ao buscarmos compreender a condição do transexual de modo interdisciplinar e sob o ponto de vista de outras ciências, especialmente da Medicina e Psiquiatria, verificamos ser imprecisa a classificação dicotômica do sexo já que a análise da sexualidade humana somente do ponto de vista biológico não representa a totalidade da realidade deste aspecto da condição humana.

Três são os componentes da sexualidade humana: o biológico, psicológico e sexual, e da combinação destes resultam a existência de múltiplos e não apenas dois sexos, consenso entre os estudiosos do tema, a afirmação que responde mais adequadamente a questões resultantes da alteração no registro do transexual.

Aceitar o reconhecimento da adequação do nome e sexo do transexual é garantir-lhes o direito a identidade e saúde, permitindo o resgate de sua cidadania e dignidade. No entanto, a mudança do sexo no registro civil repercurte em direitos e obrigações decorrentes do sexo jurídico e necessária é uma adequada regulamentação do tema.

Reconhecer a existência de um terceiro sexo jurídico, tal como projeto de lei 6.655/06, determinando que essa modificação seja feita através de averbação no Registro Civil devendo constar neste a condição de transexual do individuo é a adequação do registro civil a realidade fática do indivíduo registrado.

Tal solução, em consonância ao demonstrado pelas ciências biológicas, afasta os problemas relativos ao casamento. A resposta as demais questões envolvendo o transexualismo serão adequadamente respondidas se os profissionais do Direito compreenderem a condição sui generis destes indivíduos sob o ponto de vista de outras ciências. Juntos com médicos, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais responderemos adequadamente as questões relativas à filiação e adoção, de forma a atender o melhor interesse da criança e do adolescente, basta nos despirmos de nossos preconceitos e nos vestir de conhecimento, bom-senso e sensibilidade.

Notas da Autora:
30 - O Projeto 70/1995 do Deputado José de Castro Coimbra previa a averbação no Registro e Civil e no documento de identidade da condição de transexual da pessoa.

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Extraído de Editora Magister/doutrina, 06.01.2010

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