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23 fevereiro 2010

CONTO RUSSO

KÓSTIA


Arcádio Averchenko
Arcádio Avertchenko (1881-1924) foi um grande humorista e satírico russo. Seu jornal O satírico teve grande repercussão em seu país. Foi cognominado "rei do humorismo russo". (wikipédia).

I
Os outros garotos não gostavam do pequeno Kóstia, que era mole, tinha o rosto transparente e usava sempre seus cachos castanhos despenteados… Não, não gostavam dele.

Por quê?

Certamente devido à mesma causa por que os maiores não gostam dos menores semelhantes a Kóstia, pensativo e de olhos claros. Um e outro grupo se diferenciam apenas pela idade; contudo, a antipatia subsiste…

Quase todos os meninos repeliam igualmente Kóstia; quando se aproximava de um grupo de meninos e meninas, um grito uníssono era ouvido:

– Rua, fora! Saia daqui, não gostamos de ti!

Depois de permanecer um instante junto deles, suspirava e experimentava puxar conversa,começando de modo suave e indeciso:

– Nosso porteiro estava no patamar, fazendo um buraquinho para plantar uma árvore, e a enxada bateu contra uma coisa dura. Olharam, e eram ossos, uma caveira e uma caixinha de ferro… Abriram-na, e nela…

– Some-te, não nos interessa sabê-lo… sempre estás querendo misturar-te conosco!…

De novo suspirava submissamente, retirava-se a um lado e, assentando-se em um banco do parque onde batesse o sol, ensimesmava-se…

Um senhor ocioso, que estava ao seu lado, comovido pelo seu aspecto melancólico, deixou cair a pesada mão sobre a sua cabeça, quebradiça como casca de ovo, e perguntou-lhe amavelmente:

– Como te chamas, menino?

– Jim…

– Ora, vamos! Acaso não és russo?

– Não, inglês, sir.

– Vamos, vamos! E como falas tão bem o russo?

– É que fugimos de Londres quando eu era ainda muito pequeno.

– Fugiste? Que dizes? Quem te obrigou a fugir?

Os olhos pensativos do menino elevaram-se para o céu. Acompanhavam a passagem das nuvens que flutuavam a imensurável altura.

– Oh! É uma história difícil, sir; o caso é que meu pai matou um homem…

O senhor começou a inquietar-se e afastou-se uns quantos centímetros do melancólico menino, que falava em tom simples de coisas horrorosas.

– Matou um homem? E por quê?

– O senhor sabe o que é a City, sir?

– Sei muito bem! E que aconteceu?

– Na City havia um Banco, que existe ainda, e se chama… “Deutsche Bank”… Meu pai era empregado lá, e depois, graças à sua honorabilidade, foi nomeado tesoureiro. Uma noite, quando ia pôr em ordem algumas contas atrapalhadas, viu uma figura que, às furtadelas, deslizava pelo corredor em direção aos subterrâneos onde era guardado o ouro… Meu pai escondeu-se, disposto a segui-lo. E quem julga o senhor que era aquele homem? O diretor do Banco! Este desceu ao sótão, encheu a carteira de ouro e notas e, quando saiu, como uma flecha, zás, meu pai agarrou-o pelo pescoço e apertou-lhe a garganta. Papai compreendeu que, se o outro conseguisse escapar, toda a culpa recairia sobre ele… O desespero deu-lhe forças. Engalfinharam-se numa luta feroz e conseguiu asfixiar o canalha… Chegou a casa naquela mesma noite, tomou-me nos braços, atravessamos o Tamisa num barquinho, e viemos para a Rússia…

– Pobre cabecinha! — disse o senhor com alguma pena, dando-lhe palmadinhas no ombro. – E onde está tua mãe?

– Morreu queimada, sir.

– Como morreu queimada?

– Uma vez, os garotos de Londres embeberam de petróleo uma ratazana e atearam-lhe fogo; naquele momento, passava minha mãe pela rua, com as compras que tinha feito; a ratazana, que estava ardendo, meteu-se debaixo do abrigo de minha mãe e, ao cabo de um minuto, ela parecia uma tocha…

O menino abateu tristemente a cabeça, sem dizer mais nada; faltou pouco ao compassivo senhor para se ter desfeito em lágrimas, profundamente afetado: como tanta desgraça podia ter caído sobre o pobre orfãozinho!

– Coitadinho! Vem, vou acompanhar-te até a tua casa; não vá acontecer-te alguma coisa…

Jim sorria docemente.

– Oh, não, sir; não me vai acontecer nada! Está vendo este talismã? Protege-me de tudo e contra todos!

A criatura tirou do bolso um apito e mostrou-o confiante ao seu interlocutor.

– Que talismã é esse?

– Deu-mo na Criméia uma velha tártara. Recordo quando estávamos trepados num altíssimo penhasco, junto do mar. E que aconteceu? Quando o tive em minhas mãos, deslizou a pedra debaixo dos seus pés e… pum! Ela e a pedra ao mar…

– Milagre, um verdadeiro milagre! De modo que é esta a casa onde moras? Bem; adeus, Jim; que sejas feliz, meu bom menino!

Jim subiu alegremente as escadas e o senhor acompanhou com a vista o admirável menino.

Permaneceu abstrato tanto tempo, que a porteira, com as fraldas apanhadas, aproximou-se, interrogando-o:

– Por quem procura o senhor?

– Por ninguém, não senhora… Diga-me… Quem é este garoto que acaba de entrar?

– É Kóstia, o filho dos Cherepitsin. Por que o pergunta?

– Como? Então não é inglês?

– Valha-me Deus, meu senhor. É um garoto, e nada mais… Certamente lhe mentiu, não é? Sua mãe faz todo o possível por curá-lo desse defeito; mas qual! Não o consegue…

– Ele tem mãe? É viva?

– É viva, sim senhor! Mas, pelo visto, vai acabar com ela se continuar com suas mentiras; já vê o senhor. Que menino mais embusteiro! É surpreendente! Já o conhecem em toda a rua, louvado seja Deus!

II

Após um tinido prolongado da campainha, abriu-lhe a porta a empregada Uliacha.

– Onde estiveste, Kóstia, até estas horas?

– Distraí-me na rua; um automóvel acaba de atropelar nosso porteiro. Vê se tenho sangue nas botas…

– Como,como? Atropelaram Estêvão? Mataram-no?

– Sim… Foi o seguinte. Os cavalos desenfrearam; ia uma senhora muito linda no carro… e Estêvão meteu-se na frente para segurar os animais pelas rédeas…

– Por que você é tão mentiroso, Kóstia? Primeiro, um automóvel, agora, um cavalo… Sempre inventa bobagens.

– Não, não é bobagem; essa condessa disse que quando ficar boa se casará com ele.

– Está bem, está bem; chega de embustes. A comida já esfriou; sua mãe saiu e a vovó o espera.

Balançando-se sobre suas pernas esguias, Kóstia fez um muxoxo misterioso e dirigiu-se à sala de jantar.

– Por que vens tão tarde? – disse-lhe a avozinha, indo ao seu encontro. – Onde estiveste metido?

– Há uma hora tenho estado perto da nossa porta; mas tive que voltar. Uma história muito interessante…

– Que foi?

– A senhora verá. Acabava de chegar em frente à nossa porta, olhei e… dois sujeitos estavam fazendo não sei o que em nossa fechadura; um dizia: “A cera está muito dura, não sai o molde”, e o outro, que era mais baixinho, respondeu: “Aperta, aperta, que sairá!”

– Kóstia! – gritava a avozinha –, não mintas, menino! Outra vez, criatura, outra vez!…

– Está bem, se acha que são mentiras… – disse sorrindo sarcasticamente –; mas deixe que entrem dentro de casa e nos carreguem tudo e nos cortem o pescoço…; e então verás se são mentiras ou verdades!… Que me importa? Minha obrigação é dizer o que vi…

A avó desesperava-se:

– Kóstia, estás mentindo! Leio em teus olhos que acabas de inventar essa história…

– Inventar, eu? – disse Kóstia lentamente, dando às suas palavras um tom sibilado, que fazia crispar os nervos – E se eu lhe mostrar o pedaço de cera, dirá também que é inventado por mim?

– E como o tens em teu poder?

– Pois muito simplesmente; eles subiram num carro; montei na traseira e,quando chegamos ao subúrbio, passei correndo perto do homem mais baixinho, dei-lhe um empurrão e tirei-lhe a cera do bolso. Aqui está ela!…

Puxou pela segunda vez aquele apito que tinha mostrado no jardim e mostrou-o de longe à avozinha, que já tinha a vista bem curta…

A dúvida destroçava o coração desta: “Está visto que mente; mas… e se por acaso é verdade o que ele diz? Costuma dar-se casos em que tiram moldes das fechaduras, entram nas casas e estrangulam uma família… Precisamente ontem li um caso idêntico num jornal… É preciso dizer a Uliacha que corra o ferrolho da porta!…

– Chama Uliacha!

Kóstia obedeceu e foi correndo à ante-sala, onde gritou estridentemente a Uliacha, que falava com alguém pelo telefone:

– Uliacha! Esqueceu-se outra vez de fechar a torneira da cozinha! E está toda cheia de água, e os cachorros já estão saindo pela janela!…

Uliacha solta imediatamente o fone, que bate estrepitosamente contra a parede, corre a toda pressa à cozinha, tropeçando e derrubando os móveis que encontra à sua passagem…

Ao cabo de um minuto, desenrola-se uma cena horrível.

– Kóstia! Mentiu outra vez! Já não posso agüentar mais, não quero continuar servindo nesta casa…; vou-me embora…

– Pareceu-me que a água estava correndo – dizia Kóstia, justificando-se timidamente, enquanto olhava com olhos súplices a enfurecida rapariga – Pensei que…

Só Deus sabe o que era este doce e inofensivo menino. Talvez lhe tenha parecido realmente que dois senhores que estavam fumando calmamente na calçada de sua casa tentassem de fato tirar o molde em cera da fechadura.

III

De noite, estava Kóstia no escritório de seu pai, junto à escrivaninha, e com os olhos muito abertos fitava as mãos do seu progenitor, que moviam e removiam rapidamente uns papéis.

– Onde estiveste hoje, Kóstia?

– No parque.

– E que viste de bom por lá?

– Vi a mãe de Lidochka Priaguina.

– Que estás dizendo, menino? A mãe de Lidochka morreu…

– Pois é isso justamente o assombroso; estava sentado num banco e, de súbito, por debaixo das árvores, começou a surgir e aproximar-se algo assim como uma espessa nuvem cinzenta… mais perto, mais perto. Olho e… era a mãe de Lidochka! Estava tão triste… Aproximou-se rapidamente de mim, colocou a mão em minha cabeça, ameaçou-me com um dedo… e foi embora, sem dizer-me uma palavra…

– Sim, sim!… – exclamou o pai, olhando seu filho com semblante risonho. – Acontece às vezes cada coisa!

– Que papel é este, papai? – perguntou Kóstia, olhando por cima do ombro do seu progenitor. – Tem uma pistola desenhada…

– Isso? A conta de uma casa de armas; comprei um revólver para nosso Banco.

– Um revólver?

– Sim, para o caixa.

– Um revólver?

Kóstia, com os olhos muito abertos, olhava fixamente o rosto sorridente de seu pai. Já tinha voado muito longe, sua imaginação… pelo seu rosto perpassavam sombras de pensamentos.

Estremeceu, levantou-se de um salto e a passinhos miúdos, foi saindo do gabinete. Como um tufão, atravessou as duas salas e, como um tufão, com os cabelos desgrenhados, entrou na saleta de sua mãe, que trabalhava pacificamente junto à mesa.

– Mamãe, papai está passando mal!

– Que foi? Que foi?

– Ao entrar em seu gabinete, vi-o tombado no tapete, junto à mesa, e ao seu lado um revólver… Na testa, uma pequena mancha e, na sala, há um cheiro algo estranho…

Um grito selvagem, espantoso…

 – Que hei de fazer com este menino? – dizia a mãe, chorando e fitando, quase com ódio, Kóstia, que, assustado, tímido como um passarinho durante um mau tempo, estreitava-se contra o ombro forte do pai. – Com suas mentiras e invencionices, este garoto fará com que todos nós enlouqueçamos. A empregada não pode nem vê-lo e os outros meninos escorraçam-no como a um cão tinhoso… É uma criança que dá pena. Imagina o que será quando crescer!…

– Infelizmente o imagino. – disse a meia voz o pai, estreitando contra seu ombro a cabecinha encacheada de seu defeituoso filhinho. – Crescerá e todo mundo se afastará dele, como agora; não o compreenderão e… zombarão dele.

– E que será dele quando for maior?

– Querida – disse tristemente o pai, movendo a cabeça, que já tinha começado a encanecer –, será poeta…

*Primores do conto universal. Contos russos. Seleção e organização Jacob Penteado. São Paulo: Edigraf. s/d. (p. 267-274).

Extraído de Kingston

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